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Diáspora

Da Ribeira de Flamengos à Assembleia Municipal de Sesimbra em Portugal

A vida não tem receitas. O lema é da higienista oral e activista social Andredina Cardoso, cabo-verdiana nascida na Ribeira de Flamengos, no Município de São Miguel (interior de Santiago), com muitos anos de vida em Portugal, onde integra a Assembleia Municipal de Sesimbra. Agraciada pela Associação das Mulheres Empreendedoras Europa-África, Cardoso tem “uma carteira repleta de projectos” para Cabo Verde, à espera de oportunidades para a sua concretização.  

 

O eleito da Assembleia Municipal (AM) de Sesimbra é um interlocutor junto do Poder Local, que tem a oportunidade de levar, directamente ao Município, os anseios da população, e propôr respostas adequadas para repôr o equilíbrio onde este não se verifique.

A tese é de Andredina Cardoso, que tem como prioridade o melhoramento das condições de vida dos munícipes – muitos deles, cabo-verdianos –, a par da dinamização do emprego local e um melhor aproveitamento dos recursos disponíveis.

Saúde: prioridade maior

“A saúde é uma prioridade maior, pois, há um número elevado de utentes sem médico de família, e as estruturas físicas estão desfasadas das necessidades”, sustenta ao  A NAÇÃO, realçando que Sesimbra é um município com características um pouco diferentes das que o rodeiam, composta por três freguesias, com particularidades distintas.

A Comunidade Migrante – incluindo a cabo-verdiana – está dispersa e diluída na paisagem, bem integrada, vivendo em condições idênticas aos demais, sendo que uma parte significativa, tal como os outros residentes, trabalham fora do município.

“A Quinta do Conde, particularmente, foi acolhendo desde a sua génese, pessoas de várias paragens do território português – e não só –, que harmoniosamente partilham esta zona geográfica. Além disso, não tem bairros sociais de grande dimensão, como acontece em outros municípios da Margem Sul de Lisboa – a Capital de Portugal”, explica Cardoso, para quem, “há ganhos transversais”, porquanto não concebe a Comunidade, “senão como um todo, em intensa partilha”.

 Em tempos de Covid-19…

 Em Portugal, uma parte considerável da população migrante trabalha nos lares, na restauração, na higienização dos espaços, na construção, mas, também, nas artes, cabeleireiros e estética e muitos são empresários individuais. Resumindo: laboram nos sectores mais sujeitos ao trabalho precário.

Com a pandemia de Covid-19, um número significativo deixou de trabalhar, e, de repente, viu-se em casa, sem os seus direitos garantidos, com gastos acrescidos de energia, água e alimentação.

“Outrossim, com o acréscimo da responsabilidade do acompanhamento directo à ‘Escola em Casa’, para quem tem filhos, o que implica Internet estável, equipamento informático compatível e disponível, por vezes para conciliar entre várias crianças de níveis de Ensino diferentes”, avança Cardoso, notando que muitos são os que, devido à supressão de transportes, deixaram de ir trabalhar, por não terem como fazer o trajecto, ficando, assim, muitas famílias, sem o seu rendimento semanal ou mensal.

Noutros casos – prossegue –, ficaram, literalmente, na luta corpo-a-corpo com a pandemia, sem direito a recuar um passo, quando se olha para os casos dos auxiliares que trabalham na higienização dos espaços nos lares e hospitais.

Os pedidos de apoio – aponta – têm aumentado, à medida que o tempo de confinamento vai aumentando, e, em determinados locais, as associações têm dificuldade em dar uma resposta à altura do que a situação exige.

 Vida associativa

 A vida associativa não aconteceu de forma intencional ou programada na vida de Andredina Cardoso.

“Decorre da circunstância, do ‘modus vivendi’ de uma diáspora que mantém fortes laços entre si, e uma saudável identidade com a cultura do seu país de origem, que, aliás, outrora também foi território português”, explica ao  A NAÇÃO, acrescentando que a inter-acção e entre-ajuda sempre foram características peculiares dentro da família alargada nas comunidades de origem africana.

Em Portugal há 45 anos

Em Portugal desde 1975, numa altura de grande imigração, a casa dos pais de Cardoso foi sempre, uma “Casa de Acolhimento”, pela qual passaram pessoas distintas e famílias nucleares oriundas de Cabo Verde, da Guiné Bissau, do Senegal, da Mauritânia e até de países de Leste.

“Cada uma delas presentearam-nos com um pouco da sua Cultura e dos seus saberes, enquanto procuravam enquadrar, condignamente, as suas vidas no país de acolhimento”, reconhece.

Na adolescência integrou a Associação Cabo-Verdiana do Seixal, numa altura em que as organizações de migrantes eram ainda poucas, mas que trabalhavam de forma coordenada, labutando com um sem-número de dificuldades para pôr cobro a inúmeros desafios, cujo expoente máximo era a irregularidade documental comum a muitos migrantes, com tudo o que daí advém.

Aliás, esta matéria, até hoje, continua em destaque na Agenda das organizações.

Com 17 anos ingressou no I Curso de Base da Cruz Vermelha Portuguesa, ministrado na Quinta do Conde, passando a colaborar com a Associação Cabo-Verdiana de Setúbal.

Mais tarde, pertenceu ao Fundo de Apoio de Cabo-Verdianos em Portugal e à Associação Cabo-Verdiana de Lisboa,  a par da Associação Cabo-Verdiana de Sines.

“Todas elas formaram um pilar inequívoco na construção da pessoa que sou hoje”, remarca.

 “Pontes de diálogo”

Cardoso dispõe de facilidades em estabelecer “pontes de diálogo” entre pessoas e instituições, condição imprescindível no contexto das migrações – e não só.

Actualmente, por força dessas “pontes criadas”, existem três associações da Diáspora Africana, sediadas em Portugal, como membros da “Africa-Europe Diaspora Development Platform” (ADEPT).

Esta Instituição foi considerada pela União Africana como representante da VI Região de África, e trabalha no sentido de capacitar a Diáspora Africana, para que ela possa ser mais eficaz na sua actuação junto dos países de origem.

“A minha caminhada junto desta Organização iniciou-se em 2008, onde tive oportunidade de trabalhar com representantes de organizações africanas sediadas por toda a Europa, assim como com a União Africana, e governos de cinco países africanos, representando as cinco regiões de África”, destaca Cardoso.

Actualmente, faz diligências junto de outras organizações da Diáspora Africana em Portugal, no sentido de facilitar a sua entrada para a ADEPT, com a qual, neste momento, colabora, também, Luíza Soares, “uma conterrânea plena de energia, que está a fazer um excelente trabalho”.

 Alteração da Lei da Nacionalidade

Confrontada com a possibilidade de alteração da Lei da Nacionalidade Portuguesa, em debate na Assembleia da República (Parlamento), Cardoso responde que “nunca saiu da ordem do dia”, pois, é condição essencial para o exercício de cidadania plena.

“A Sociedade Portuguesa não parece ainda estar preparada para o ‘jus solis’, o que outrora foi uma realidade, ou seja, que quem nasce em Portugal, tenha a nacionalidade originária portuguesa”, manifesta, augurando esperar que, em Sede de Comissão, se possa trabalhar para facilitar o fluir do que se encontra expresso na intenção da Lei, e que não surjam novos “obstáculos de secretaria” que, por vezes, inviabilizam o concretizar do pretendido.

Potencialidades inaproveitadas

Na leitura desta activista social, higienista oral e eleita municipal, os saberes, conhecimentos e possibilidades dos cabo-verdianos na emigração exercerem influência junto dos seus círculos académicos, sociais, profissionais, entre outros, não estão a ser bem aproveitados pelos governantes do Palácio da Várzea.

“Basta olharmos para a Cooperação: quem são os parceiros e quantos cabo-verdianos fazem parte ou dirigem essas estruturas? O tecido empresarial em Cabo Verde. Qual a percentagem de empresas cujos dirigentes têm origem na Diáspora? Os protocolos de geminação. De que forma são dinamizados…ou não?”, questiona, para frisar que,  apesar das boas relações entre Portugal e Cabo Verde, “do facto de sermos a Comunidade mais antiga em Portugal e, provavelmente, a mais qualificada”, ainda que se encontram dispersos em todas as esferas da sociedade, apesar de todo o conhecimento técnico e científico adquirido pela Diáspora, Cabo Verde beneficia, ainda, de forma muito tímida desse potencial.

O que está faltando? “Maior ousadia por parte dos governantes, em estreitar um diálogo franco e sem tabus, que se pode consubstanciar em acções práticas conjuntas”, responde Andredina cardoso.

Esta activista defende que deve-se acarinhar, de forma mais concreta, “as investidas da Diáspora para contribuir com o seu saber para o desenvolvimento sustentável” do Arquipélago.

 Projectos em carteira

 Cardoso que tem como lema: “A vida não tem rceitas”, dispõe de “uma carteira repleta de projectos para Cabo Verde”, procurando oportunidades para a sua concretização.

“Já ministrei formação em Cabo Verde, no âmbito da Saúde Oral, numa parceria com o Município de Santa Cruz, tanto para profissionais de Saúde como para os de Educação e a população em geral”, revela, frisando que, na ocasião, foram também abrangidos profissionais de outros municípios da Ilha de Santiago.

Cardoso confessa que, na altura, teve a oportunidade de conhecer, mais de perto, a realidade da Saúde Oral em Cabo Verde.

Em tempos, concorreu com um Projecto de Saúde Oral junto da ICASE (actual FICASE – Fundação Cabo-Verdiana para a Acção Social Escolar), que “não chegou a bom porto”.

No  ano passado, por seu intermédio, “foi possível facilitar a doação de dois equipamentos dentários”, para os municípios de Santa Cruz e de São Miguel.

“Em Cabo Verde, salvo lapso da minha parte, não existe um Programa de Saúde Oral Nacional estruturado, e que funcione de forma transversal. Há intervenções esporádicas locais e projectos de organismos internacionais”, avalia, para considerar “imprescindível o desenho de um programa” que absorva essas mais-valias e crie maior qualificação no terreno.

Entretanto, Cardoso deixa claro que o “materializar de seja o que for”, dependerá, sobretudo, daquilo que Cabo Verde entender ser a sua prioridade e da forma como se enceta a colaboração da Diáspora.

  “Cabo Verde tem ainda tudo para dar”

 A grande aposta de Cabo Verde deve ser o de “trabalhar o desenvolvimento sustentável, ancorado na capacitação e criação de valor”, para consumo interno e externo, e não tanto nas doações externas.

“Cabo Verde tem ainda tudo para dar. Para dar a Cabo Verde, para dar à Nação Cabo-Verdiana e para dar ao Mundo”, considera, desafiando a Diáspora a não se conformar com o que lhes é apresentado, mas que “sejam parte da solução ou das soluções”.

E não fica por aqui: devem conhecer mais a sua História. “Principalmente, que desenvolvam uma cultura de trabalho estrategicamente concertada, de forma a convergir para a melhoria das condições de vida dos seus pares e dos locais onde se movem e, que tal como é pedido no Pacto Global das Migrações, não deixem ninguém para trás”, conclui a “menina” da Ribeira dos Flamengos e que hoje é eleita na Assembleia Municipal de Sesimbra, em Portugal.

Percurso de Andredina Gomes Cardoso

É cidadã portuguesa de origem cabo-verdiana, nascida em Flamengos, no Município de São Miguel (no interior da llha de Santiago).

Mãe de três filhos, é licenciada em Higiene Oral pela Faculdade de Medicina Dentária de Lisboa, detentora de uma pós-Graduação em “Gerir Projectos em Parceria”, pela Universidade Católica.

Desempenha funções no Agrupamento de Centros de Saúde de Arrábida, em Setúbal, como gestora local do Programa Nacional de Promoção de Saúde Oral.

Cumpre, actualmente, mandato como deputada municipal independente, pelo Partido Socialista, em Sesimbra, após um mandato na Assembleia de Freguesia da Quinta do Conde.

Foi candidata suplente pelo Partido Socialista, no Círculo de Setúbal ao Parlamento Português, nas últimas Eleições Legislativas. Agraciada em Fevereiro de 2019, pela Associação das Mulheres Empreendedoras Europa-África, com a “Distinção de Mérito”, na categoria Política.

É empresária, conselheira associativa e mentora do Projecto “DAGUMA”.

Alexandre Semedo

Publicado no A NAÇÃO (digital), nº 664, de 21 de Maio de 2020

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