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Cabo Verde e as recessões: risco para a estabilidade macroeconómica precedente à crise financeira global

Por: Sandeney Fernandes

As ilhas de Cabo Verde, como uma economia insular de pequena dimensão e aberta, emergente e em desenvolvimento, têm registado, indiscutivelmente, ganhos significativos em diversas áreas.

O agente económico Estado, para além das suas funções essenciais no campo da economia pública, é por regra o garante da felicidade coletiva estável, paz social e equilíbrio. Por isso, a ciência económica assume que um dos objetivos de gestão orçamental por parte de qualquer Governo é o de estabilização das variáveis macroeconómicas no nível próximo do nível de equilíbrio, garantindo desta forma governança com resultados previsíveis, um ambiente de confiança e de baixo risco.  Entretanto, as dinâmicas do mundo, como por exemplo, estas desta pandemia de COVID-19, crise do petróleo e, criam perturbações que causam desequilíbrios e destabilizam os ciclos.

Para a estabilização de ciclos indesejáveis causados quase sempre, por fatores exógenos, os países contam com instrumentos de política fiscal e monetária para o qual o estado da arte macroeconómica precedente e as suas condições, por exemplo, ao nível do regime cambial e, são cruciais. Por um lado, a robustez das bases que suportam o crescimento determina a amplitude e a persistência cíclica que o choque pode causar. Por outro, a margem para a utilização de instrumentos de estabilização cíclica como os gastos públicos (G+I) e os impostos (T) depende do grau de risco para a estabilidade macroeconómica que o país apresentara a nível, por exemplo, da exposição ao défice e à dívida. Além disso, destaca-se o poder, pela via do peso na geração da riqueza nacional que as famílias, o sector privado e o resto do mundo dispõem para participar no processo de estabilização através de suavização do consumo, do investimento e do comercio externo.

Cabo Verde como país independente presenciou a ocorrência de quatro recessões globais, sendo em 1975, 1982, 1991 e 2009. Além disso, em vários países ocorreram-se outras crises, como por exemplo, de âmbito financeiro e bancário conforme identificadas pelos autores Kaminsky and Reinhart (1999) [1] e Caprio et. al. (2005) [2].

Apesar disso, do ponto de vista de crescimento o estado da arte precedente a crise financeira global ficou marcado por um quadro robusto, tendo a economia real crescido a uma taxa média de 5% de 1975 a 2008 conforme os dados da UNCTAD [3].  Contudo, pelo método econométrico Least Squares with Breaks pelo teste Bai-Perron à um nível de significância de 5% e um R-squared ajustado de 0,49, verifica-se a existência quatro breakpoints que marcam a história de crescimento económico de Cabo Verde, sendo em 1978, 1990, 2000 e 2009.

De 1975 a 1990, com uma economia marcada pela forte presença do Estado, o PIB real cresceu a uma taxa média de 3,2%, tendo sido de 1,4% em 1991. Com a mudança política e, a economia acelerou o ritmo e registou uma performance de 3% em 1992, ano que para o Banco Mundial [4] representa o primeiro turning point de descolagem da economia cabo-verdiana. Com isso, chegou a uma taxa de crescimento de 11,9% em 1999, configurando-se como sendo a mais alta na história de crescimento económico deste país. O ciclo económico dos anos 90 até 2000 ficou marcado por uma dinâmica média de 7,4% e uma tendência positiva e estatisticamente significativa a 1%. São factos que se deveram, por exemplo, às reformas ao nível da liberalização política e económica, à descentralização, aos investimentos em infraestruturas e, complementadas pelos avanços na educação e elevado acesso ao crédito por parte do sector privado. Com a adoção do Acordo de Cooperação Cambial (ACC) em 1998 e as demais reformas que levaram à nova configuração do modelo de oferta e procura ancorado no turismo como o motor daquela dinâmica, o setor dos serviços foi responsável por cerca de 60% do VAB no ano 2000.

De seguida, nos anos antecedentes à recessão, o modelo de crescimento continuou na mesma linha de base suportado pelo sector dos serviços, com impacto nas áreas correlacionadas como, por exemplo, a de construção. Por isso, verificou-se dinâmica positiva do nível de investimentos para cerca de 42,5% do PIB em 2008, tendo a trajetória média ficado a volta dos 35% conforme registos desde os anos 90. A economia, suportada por avanços tecnológicos e, continuou a crescer de forma robusta por uma dinâmica média de 6,4%, tendo sido de 10,1% em 2006. Contudo, a partir de 2001 foi num ritmo menos acelerado, ano que para o Banco Mundial representa o segundo turning point, mas de desaceleração da economia. Pois, no exercício de breakpoint specification constatou-se que o coeficiente de tendência passou de 0,01 para 0,003 e sem significância estatística.

O trajeto económico para a viabilidade desde a independente permitiu ao país apresentar-se em 2008 com cerca de meio milhão de habitantes, uma larga disporá cujas remessas anuais médias acima dos 11% do PIB foram determinantes para aquela viabilidade, vários parceiros de ajuda ao desenvolvimento, 333 mil entradas de turistas e 1,8 milhões de dormidas que se traduziam em receitas médias de turismo a volta dos 12% do PIB. Fizeram com que, do lado da procura, o consumo final tenha um peso médio acima dos 85% ao longo daquele horizonte e a participação das famílias no nível médio de 69% do PIB. Por outro lado, com um nível de investimento médio anual perto dos 40% do PIB, tendo o IDE um peso de 15% do PIB em 2008.

Do lado da oferta, as mudanças para uma economia de mercado permitiram que o sector privado apresentasse com uma capacidade produtiva composta por cerca de 7,9 mil empresas suportadas por cerca de 47,8 mil pessoas enquanto fator trabalho nas mais diversas áreas de economia. O sector dos serviços com um VAB de cerca de 70% sempre foi dominado pelo turismo cuja capacidade de oferta em 2008 era suportada por cerca de 158 estabelecimentos, 4,1 mil pessoas ao serviço e 11,4 mil camas.

As dinâmicas daquelas bases desde a independência traduziram-se no aumento médio anual de 5% do PIB real para cerca de 130,1 bilhões de CVE em 2008. Isto, diante da vigência de uma inflação média anual de cerca de 4% de 1990 a 2008, que, contudo, abrandou de forma sustentável após a introdução do ACC. Trata-se de um nível dado, sobretudo, pela vigência de um peso médio das importações em cerca de 67% face às exportações a volta de 35%, traduzindo-se num nível médio de exportações líquidas de -32% do PIB, que é dado, sobretudo, pelas elevadas relações comerciais com a Europa. Os impactos no mercado de trabalho traduziram-se numa taxa de desemprego de 13% em 2008, com melhorias do PIB per capita e melhorias significativas no nível de incidência da pobreza e bem-estar social. Todos aqueles factos permitiram a Cabo Verde alcançar o nível de país de rendimento médio em 2008. 

Uma crise, geralmente, combina a acumulação de vulnerabilidades e a origem de um determinado evento, quase sempre, não previsível. No ano precedente à recessão global de 2009, Cabo Verde tinha um saldo orçamental global deficitário de 1,6% do PIB, um saldo da balança corrente também deficitário de 13,7% e uma cobertura de reservas correspondente a 4 meses de importação conforme os dados do FMI [5]. Estas são, normalmente, variáveis indicativas de fontes de vulnerabilidades económicas que podem aumentar a probabilidade de uma crise económica ou financeira quando a economia se depara com choques adversos. Assim, face à vigência de uma economia perante: i. um modelo de oferta e procura ancorado no turismo; ii. o comportamento deficitário histórico da balança de pagamentos e corrente; iii. um equilíbrio ajustado em função das remessas dos emigrantes e das ajudas ao desenvolvimento; iv. um sistema bancário nacional de capital exógeno e incapaz de financiar grandes projetos; conclui-se que, pese embora os avanços, Cabo Verde apresentava um elevado nível de vulnerabilidade. Pois, apresentava elevada exposição aos choques exógenos, por exemplo, face à alteração no padrão de consumo/lazer por parte dos turistas, ao aumento dos preços dos produtos no mercado externo, à diminuição do nível de rendimento dos emigrantes. 

Apesar disso, diante do crescimento robusto e, bem como do ACC que garantiu, mormente, o cumprimento de um dos seus objetivos primordiais “promoção da estabilidade macroeconómica e financeira e a abertura ao exterior” conforme aponta o estudo recente do Banco de Portugal [6], aquelas vulnerabilidades não se configuraram em grandes desequilíbrios macroeconómicos. Assim, o financiamento dos défices não levou à acumulação de grandes montantes de dívida ao longo da história do país precedente à crise financeira global. Com isso, em 2008, o país evidenciava um nível de dívida pública bruta a volta de 57,4% do PIB, sendo cerca de 39% externa e 19% interna, bem como um nível anual médio de serviço da dívida próximo dos 2 bilhões de CVE. 

São factos que no âmbito de sucessivas análises de sustentabilidade da dívida realizadas pelo FMI e Banco Mundial com base no Debt Sustainability Framework, concluíram que o risco da dívida pública cabo-verdiana era baixo [7]. Pois, os indicadores da dívida global como externa e de serviço da dívida estavam abaixo dos thresholds quer face às receitas como exportações. 

Com isso, conclui-se que o país apresentava um baixo grau de risco para a estabilidade macroeconómica e uma boa margem de manobra para a utilização de instrumentos de estabilização cíclica. São condições que haviam para que, num contexto de câmbios fixos, pudesse, o país, implementar políticas orçamentais eficazes de reação capazes de gerar efeitos multiplicadores e impactos compensadores no crescimento económico, emprego e bem-estar, garantindo assim a sustentabilidade de longo prazo das finanças públicas. Contudo, sendo aquelas condições necessárias, mas não suficientes, muitas vezes problemas no uso de política orçamental discricionárias podem ser desestabilizadores e causadores de enviesamento expansionista/deficitário.

Referências:

[1] Caprio, Gerard and Daniela Klingebiel, Luc Laeven and Guillermo Noguera. 2005. “Banking Crisis Database” In Patrick Honohan and Luc Laeven (eds.) Systemic Financial Crises. Cambridge: Cambridge University Press.

[2] Kaminsky, Graciela L. and Carmen M. Reinhart. 1999. “The Twin Crises: The Causes of Banking and Balance of Payments Problems”, American Economic Review Vol. 89: 473-500.

[3] https://unctadstat.unctad.org/EN/About.html

[4] http://documents.worldbank.org/ 

[5] https://www.imf.org/en/data

[6] https://www.bportugal.pt/papers

[7] https://www.imf.org/en/Publications 

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