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Este SOFA não serve

Por: Emanuel Brito*

Na sequência da publicação do Acórdão 10/2020, do Tribunal Constitucional, relativo ao SOFA (‘’Satus Of Force Agreement’’,CV-EUA, 2018), determinadas entidades públicas emitiram declarações em que reafirmam as suas posições em defesa deste Estatuto de Forças, tal como foi publicado.

Do ponto de vista político é, de certo modo, compreensível que o tenham feito. Mas hão-de convir essas entidades que, ao declarar a inconstitucionalidade de parte do número 2 do artigo III do SOFA (embora sem redução do texto), o Acórdão alterou, substancialmente, o ambiente jurídico em que este Estatuto de Forças se insere.

Os comentários dessas entidades não fazem desaparecer a inconstitucionalidade constatada formalmente, em sede do Tribunal Constitucional, (TC). E mais, não invalidam as consequências materiais do referido Acórdão, no ambiente jurídico em que o SOFA passa a ser entendido.

Jurisdição penal sobre pessoal dos EUA em Cabo verde

O SOFA diz no número 2 do seu Artigo III que ‘’Cabo Verde reconhece a especial importância do controlo disciplinar exercido pelas autoridades das Forças Armadas dos Estados Unidos sobre o pessoal dos Estados Unidos e, em conformidade, autoriza os Estados Unidos a exercer jurisdição penal sobre o pessoal dos Estados Unidos durante a sua permanência no território da República de Cabo Verde’’.

Directo ao ponto: com o Acórdão 10/2020, do Tribunal Constitucional, fica claramente interdita a interpretação do numero 2 do Artigo III do SOFA, no sentido de que os EUA podem exercer jurisdição penal em Cabo Verde, designadamente, através de um tribunal americano. Em outras palavras, o exercício de jurisdição penal sobre pessoal americano, ‘’durante a sua permanência em Cabo Verde’’, por parte dos Estados Unidos, fica, expressamente, condicionado. E com este condicionamento, decidido pelo Tribunal Constitucional, o SOFA pode já não satisfazer os interesses dos EUA, na plenitude.

A interdição do exercício de jurisdição penal em Cabo Verde, por parte dos Estados Unidos, através de um tribunal americano, tem, naturalmente consequências possíveis.

Base militar americana 

A mais importante delas será, sem dúvida, a seguinte: ela tende a reduzir a  possibilidade aberta pelo SOFA, em violação do Artigo XI da Constituição de Cabo Verde, para que seja estabelecida uma presença militar americana em solo cabo-verdiano (entenda-se, no léxico do SOFA, ‘’instalações de armazenagem e de treino’’, ‘’sistemas de telecomunicações’’, ‘’meios navais, veículos e aeronaves dos EUA  circulando livremente’: e nas palavras algo ‘’traiçoeiras’’ do embaixador Donald Heflin: para que militares americanos possam realizar dentro ! e a partir de Cabo Verde !!, actividades para responder a crises na região oeste-africana.

Diga-se, em abono da verdade que se  ‘’isto’’, que o embaixador diz  não é ‘’base militar’’,  é porque só faltam as palavras ‘base militar’’ ).

Uma vez que, para os Estados Unidos, a exclusividade do exercício da jurisdição penal sobre o seu pessoal, em qualquer parte do mundo, é uma condição não negociável ou de modo algum condicionável, o ambiente jurídico que se configura com o Acórdão 10/2020, do TC, não favorece a instalação em Cabo Verde de um dispositivo militar americano, seja de que tipo for.

Mais concretamente, se, porventura, é intenção dos EUA que o terreno destinado às novas instalações da sua embaixada na Praia (equivalente a seis vezes a área ocupada pela embaixada da China)  possa também acolher um dispositivo militar (por exemplo, uma dependência do US African Command), o Acórdão 10/2020 do TC vem induzir, provavelmente, a necessidade de uma reavaliação do projecto, por parte do dono da obra.     

Este SOFA foi mal negociado

Antes de mais, carece de melhor enquadramento. Contrariando a prática de legiferação, na matéria, o seu Preâmbulo não faz referência ao Acordo vigente,  assinado entre Cabo Verde e os EUA, sobre a fiscalização marítima conjunta ( Junho de 2014).Trata-se de um excelente instrumento de cooperação bilateral, do melhor que seria desejável conseguir-se, entre os dois países, mas que é, estranhamente, ignorado.   

Quem compara este SOFA com acordos do género ( ver site do Ministério da Defesa de Cabo Verde) pode concluir  que o Governo cabo-verdiano negociou mal com os Estados Unidos. Neste SOFA falta reciprocidade e partilha de responsabilidades. E em boa parte do seu articulado, a soberania de Cabo Verde sai beliscada.

Reportando à questão da jurisdição penal, este SOFA estabelece que ‘’as reclamações de terceiros por danos ou perdas, incluindo danos corporais ou morte, causados pelo pessoal dos Estados Unidos são resolvidas pelos Estados Unidos em conformidade com a legislação e regulamentação vigentes no território dos Estados Unidos da America’’.

Acordos com Espanha, Reino Unido e Portugal

Ora Cabo Verde assinou com a Espanha, em 2008, um Acordo segundo o qual as partes processarão, de acordo com a sua legislação, as reclamações de terceiros que surjam no seu próprio território, como consequência ou em relação com qualquer acção ou omissão do pessoal das forças participantes na realização de actos de serviço, relativos ao presente Acordo e dos quais resulte lesão, morte, perda ou dano.

Com o Reino Unido, Cabo Verde subscreveu, em 2010, um Memorando onde se acorda que a legislação cabo-verdiana será aplicada a todas as acções levadas a cabo nas operações conjuntas e que, salvo autorização de autoridades cabo-verdianas competentes, os dispositivos britânicos não poderão levar a cabo operações nas águas sob jurisdição de Cabo Verde.

Mais indica o Memorando que cada parte resolverá, a seu próprio encargo, quaisquer pedidos de indemnização a terceiros, resultantes de actos ou omissões de qualquer agente governamental, de que resulte morte, perda ou dano.

E com Portugal, Cabo Verde acordou, no Tratado de 2007, que cada parte responde, na medida das suas responsabilidades, pelos actos praticados nos espaços marítimos sob soberania ou jurisdição cabo-verdiana.

Por tudo isto, este SOFA, tal como está publicado e, sobretudo, com a inconstitucionalidade agora declarada pelo Tribunal Constitucional, não serve, satisfatoriamente, os interesses de cada parte.

*Tenente-Coronel

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