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Diáspora

Clara Silva, co-autora de “Cabo-Verdianas na Itália”: De empregada doméstica a professora universitária

Deixa São Nicolau ainda adolescente, em 1980, após a recepção de uma ansiada “Carta de Chamada”, para ir trabalhar em Itália, como empregada doméstica. Como os estudos pareceram-lhe ser “o único caminho para a verdadeira liberdade”, Clara Silva conciliou, desde cedo, o emprego com a busca do conhecimento, e hoje, é Professora Associada de Pedagogia e Ciências da Educação, na Universidade de Florença. 

O estudo e a incessante busca do conhecimento, sempre pareceram ser à Clara Silva, “o único caminho para a verdadeira liberdade”.

Primeiro, como mulher, depois, como parte de uma Nação submetida, durante séculos, à pobreza e à emigração.

“Num terceiro pilar, como forma de adquirir uma qualificação profissional e poder trabalhar em Cabo Verde, quando regressasse. Escolhi a Educação, se calhar,  por haver experimentado, pessoalmente, este problema, quando era criança”, explica ao  A NAÇÃO a sua caminhada, revelando que “foi um caminho difícil”, pois, além de “estudar muito”, teve que trabalhar para se sustentar e ajudar a família deixada em Cabo Verde. 

O sucesso que teve no Ensino Médio incentivou-lhe a continuar pelos Estudos Superiores, na Universidade de Florença, onde se formou, em 1993, na Área da Pedagogia, “obtendo as notas mais altas e elogios”, em torno de uma Tese sobre a Obra de Fernando Pessoa.

 Foco na acção sócio-cultural 

No início dos anos 90 – do século passado -, os problemas relacionados com a integração dos imigrantes no contexto italiano, levaram-lhe a focar na Acção Social e Cultural, a fim de encorajar o acolhimento dos filhos dos imigrantes nas escolas. “Além deste compromisso, continuei a aprofundar o conhecimento sobre o papel da educação e da formação no diálogo inter-cultural, tanto a nível micro como macro, nas relações entre instituições, não apenas na Itália, mas em diferentes países”, lembra Silva.

A conquista, em 1998, do título de PhD em Pedagogia, abriu-lhe caminho para uma carreira universitária. 

Presentemente, é Professora Associada de Pedagogia e Ciências da Educação, na Universidade de Florença, onde lecciona vários Cursos de Licenciatura nesta Área.

“Sou directora de Mestrado em Coordenação Pedagógica dos Serviços Infantis, directora científica de uma publicação académica de alto perfil: a ‘Revista Italiana de Educação Familiar’, e, desde 2017, sou, também, presidente do Curso de Licenciatura em Ciências da Educação e da Formação”, explica. 

Ligação a Cabo Verde 

  As conquistas académicas encaixadas, permitiram a Clara Silva, ao longo dos anos, a reforçar a sua ligação com Cabo Verde, também do ponto de vista das relações entre as instituições académicas, lançando algumas iniciativas de colaboração e investigação. 

É assim que, no começo dos anos 2000, promove um Acordo de Colaboração entre a Universidade de Florença e o ISE (Instituto Superior de Educação), que, mais tarde, se tornou parte da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV). 

“Nos últimos anos, promovi um Acordo de Colaboração entre a Universidade de Florença e a Universidade ‘Jean Piaget’ de Cabo Verde, no qual foi realizado um Estudo Sobre as Necessidades de Formação dos Jovens na Cidade da Praia, orientado para aqueles que deixaram a Escola e não tinham emprego”, destaca a interlocutora do A NAÇÃO. 

Além disso, o Acordo prevê, também, intercâmbios de estudantes entre as duas universidades. 

Contribuição da Diáspora 

  Outra “iniciativa de sucesso” que teve Silva como mentora,  foi a realização da Conferência Internacional, denominada: “Entre Itália e Cabo Verde: Cultura, Processos Migratórios e Formação”, realizada em Outubro de 2019, na Universidade de Florença. 

Este Evento Internacional foi aberto pelo Reitor da Universidade de Florença e contou com a participação de importantes personalidades académicas, italianas, cabo-verdianas e, também, da Diáspora cabo-verdiana no Mundo.

“Foi a primeira ocasião, em Itália, em que o Mundo Académico se abriu de Forma Científica para Cabo Verde e para a Comunidade cabo-verdiana em Itália, reconhecendo a contribuição que a Diáspora cabo-verdiana deu ao País de Acolhimento”, avalia Silva. 

No âmbito deste Evento, foi apresentado o livro “Cabo-Verdianas de Itália”, fruto de uma Investigação Científica, financiada pela Universidade de Florença e coordenada por Clara Silva. 

Nessa ocasião, foram planeadas outras iniciativas culturais, destinadas a “encorajar o estudo de personalidades cabo-verdianas de grande importância”, a fim de promover o reforço da ligação com Cabo Verde, nas segunda e terceira gerações de cabo-verdianos em Itália.

“A par disso, foram, ainda, gizadas acções que visem difundir aos italianos e à Diáspora cabo-verdiana, o conhecimento da Literatura cabo-verdiana do passado e do presente”, revela.

  “O Albergue Espanhol”: Um olhar… 

 No ano passado, o Presidente de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, esteve em Itália, mais concretamente, em Toscana, “um acontecimento muito significativo” para os cabo-verdianos residentes naquela Região.

Na altura, Clara Silva co-apresentou a tradução italiana do livro: “O Albergue Espanhol”, do Presidente e Escritor Jorge Carlos Fonseca, ao lado do seu colega Roberto Francavilla, da Universidade de Génova. 

“Um dos aspectos que me impressionou nesta obra, rica em referências culturais e no experimentalismo literário, sobretudo na interpenetração dos géneros, é o traço do olhar político cosmopolita do Autor, que faz do seu ‘quase romance, uma metáfora sobre Cabo Verde e a sua Cultura Aberta ao Mundo”, confessa. 

Na perspectiva de Clara Silva, se se pensar na História de Cabo Verde e na recusa do Poder Colonial à Autonomia Cultural dos Colonizados, verifica-se que “esta recusa foi de pronto esmagada” pela Crioulização Biológica, Linguística e Cultural, que deu propriedade e autonomia à maneira de ser e de estar dos cabo-verdianos.

“Hoje, o cabo-verdiano pode viver a Pluralidade Linguística e Cultural, que é a base da sua Cultura, de forma aberta e livre. Jorge Carlos Fonseca expressa isso em Literatura e, neste livro, com enredo fascinante, coloca Cabo Verde em diálogo com toda a Literatura Mundial, num jogo mágico de referências e reflexos, sem perdas da Matriz Crioula”, sustenta Silva.

 Inclusão na sociedade italiana 

  Silva revela ao  A NAÇÃO que, desde a sua chegada à Itália, sentiu “uma força inesperada” nas mulheres que deixaram Cabo Verde, para irem trabalhar em Itália. 

“O sucesso de algumas delas, que se distinguiram por seu compromisso com o Mundo Associativo e a sua realização académica e profissional, foi, no início, um poderoso estímulo para mim”, remarca, acrescentando que, precisamente, por esta razão, tão-logo que pôde, começou uma pesquisa, que poderia reconstruir a História destas mulheres, que, em parte, é a sua também. 

No âmbito da Pesquisa que fez, conheceu melhor a trajectória e a dinâmica de muitas dessas mulheres, assim como de suas variadas habilidades e profissionalismo. 

Por essa razão, ela e a jornalista Maria de Lourdes Jesus, publicaram o livro: “Cabo-Verdianas de Itália”, também em português, para dar a conhecer, fora da Itália, e, em particular, no Arquipélago, a História de Mulheres Cabo-Verdianas que “valorizam o seu povo e que testemunham o seu empenho e o seu nível de inclusão na sociedade italiana”. 

 “Novo olhar do Ocidente” 

  Clara Silva estava para ser Curadora Científica, em 2020, da “Celebração do Cinquentenário da Conferência Internacional de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas e da Audiência do Papa Paulo VI a Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos”.

Devido à Pandemia Global de COVID-19, o Projecto foi adiado para 2021, tendo já confirmações de “sonantes conferencistas” internacionais.

“Sinto-me feliz quando Cabo Verde e os cabo-verdianos reconhecem o meu compromisso com Cabo Verde, assim como fico feliz quando a Comunidade Científica e a Sociedade Italiana reconhecem os meus esforços e o meu compromisso com a Itália”, frisa. 

Para Silva, é uma iniciativa “muito importante”, uma vez que recorda “acontecimentos extraordinários”, que ocorreram na Itália e no Vaticano, em 1970, e que muito contribuíram para a afirmação da Luta de Libertação Anti-Colonial, e “determinaram um novo olhar” do Ocidente, pelas causas defendidas pelos independentistas africanos. 

  Amílcar Cabral Pedagogo 

 Silva defende ser “muito importante” pesquisar as figuras históricas africanas, entre elas, Amílcar Cabral, “personalidade considerada uma referência para a Humanidade”,  e incorporá-las em vários estudos académicos, por todo o Mundo. 

Presentemente, coordena uma Pesquisa Científica sobre Amílcar Cabral, a partir de um Prisma Pedagógico.

“O Pensamento de Cabral e o seu Legado são um grande contributo para se pensar a ‘praxis’ educativa. A Pesquisa foi recebida com interesse pelo meu Departamento, na Universidade de Florença, e faço-o com o Poeta cabo-verdiano, Filinto Elísio”, revela. 

Como pedagoga – realça a entrevistada do  A NAÇÃO -, creio que a Educação e a Formação desempenham um papel fundamental na promoção das relações entre as culturas e no melhorar a condição da Humanidade.

“Por isso, aceitei o convite da ‘Rosa de Porcelana Editora’, para dirigir uma Colecção Inter-Disciplinar, designada:  ‘Educação sem Fronteiras’, na qual, em breve, será publicado um Primeiro Volume, escrito por mim, e intitulado ‘Para uma Educação Planetária’, salienta, em jeito de conclusão.

“Teimosia e imprudência” botam-na na Emigração 

Clara Silva nasceu no povoado da Ribeirinha, em Terra Branca, na Ilha de São Nicolau, em Cabo Verde.

Em 1980, ainda menor de idade, sai, pela primeira vez, da sua Ilha-Natal para a Itália, mais precisamente, com destino a Florença. 

“Vim para trabalhar como empregada doméstica, no seio de uma família italiana, como a maior parte das cabo-verdianas que emigravam para a Itália. A emigração era a opção possível na altura e, por isso, fazia parte dos meus sonhos de infância”, conta Clara Silva, ao  A NAÇÃO. 

Não  tendo tido a oportunidade de continuar os estudos, além da (então) Escola Primária, a única possibilidade de organizar a sua vida era, precisamente, a Emigração. 

Em face disso, “pegou”, com “teimosia e alguma imprudência de adolescente, à primeira oportunidade de emigrar”, que se lhe suscitou. 

A ocasião foi a chegada de uma “Carta de Chamada”, sinalizada por parentes ou amigos, já emigrados, de que surgira uma família italiana à procura de empregada doméstica. 

“Assim se monta a cadeia migratória na Itália, conforme eu e a jornalista Maria de Lourdes Jesus contamos no nosso livro: ‘Cabo-verdianas de Itália’, publicado em italiano, em 2019, e em português, em 2020”, salienta. 

Clara Silva, desde o início, experimentou o trabalho doméstico, como uma escolha forçada, razão que lhe levou a retomar os estudos interrompidos aos 11 anos de vida. 

(Publicado no semanário A NAÇÃO, nº 669, de 25 de Junho de 2020)

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