PUB

Colunistas

Flashes

Por: Filinto Elísio

Domingo, 13 de dezembro de 2020, cismas à parte, sou um homem infeliz sozinho. Animal de sangue quente, falo para as paredes, leio os papéis dos meus pais, teclo com a Márcia várias vezes ao dia, telefono aos meus filhos e, confesso, só consigo ser eremita, qual monge budista, com os meus por perto. A par disso, quase tudo de mim é substantivo, carnal, ressonância, hora vagarosa no arrasta-pé do calendário. É ir vivendo, morrendo…como amiúde tudo.

*

Creio que sou frágil como um haikai, desses com brisa. Acho mesmo que sou um micro-poema, com a palavra lua. Quem sabe eu não passe da laranjeira no quintal de Lisboa ou eu nunca tenha saído da moldura da foto família da infância. A refulgência de uma voz que me nina. Desde o berço. Algo para a beleza de ninguém entender…dolorosamente, nem seja em vão a fama de dengoso. Como sou carente de colo, remanso, mimo, essas coisas. Creio que, a turba me perdoe, sou ressábio, saudade, pegador de delírios…

*

O livro “Quase Memórias de Algum Lugar e de Outras Andanças”, de António de Castro Guerra, é o quinquagésimo quarto do catálogo geral da Rosa de Porcelana Editora. Henrique Monteiro, que faz as honras de abertura do livro, lavrou que “escrever é saber contar, descrever, pôr a pensar. Levar-nos a mundos desconhecidos e compará-los com os que conhecemos; recordar-nos quem fomos e quem somos”. Eu que lhe sigo, também em notas à guisa de prefácio, aviso aos leitores que “pelos marcos da memória lavra esta autobiografia, pelo víeis da saga familiar, não sem o papel central, por modo manifestamente freudiano com que a mãe e a perda do pai lhe ocupam o veio do imaginário”. Ponha-se em espera, Navegação, vem aí o livro de António de Castro Guerra (décimo entre os editados neste ano de 2020).

*

Por conta de muitos afazeres e apoquentações, ainda não tive modo de visitar o interior da ilha de Santiago. Dizem que está verde, como nos versos de Amílcar Cabral, virando jardim ou de vida nascida, como no prenúncio poético de Mário Fonseca. Não tive como roubar uma horas a mim próprio e adentrar-me a ilha grande, que é onde a ancestralidade se me injeta na veia e o murmúrio das almas pura herança, veio de resto por que escrevo. Pressinto neste querer ir, Puxim a mondar o lugar do Toco, do André e do Didi, acordada terra, do conto de Virgílio Avelino Pires; resgato a vivificar os sonhos no cheiro de melaço estonteando, quente, revigorando os sonhos e remoçando as ânsias, de António Nunes. Não tendo ainda podido, canto com a Mayra, pelo Youtube (ó dó…dizes), que ilha de Santiago tem corpinho de algodão…no lúdico amor que lhe devotou o esteta Mário Lúcio Sousa.

*

Por ventura não saberá quem já foi amigo que a estrada que vai é a mesma que vem e não guardo precisão de dizer aqui mais do que isto. E permitam-me estes de Manoel de Barros (reiterando ser dengoso):

(…)

No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá, Onde a criança diz:

eu escuto a cor dos passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não

Funciona para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta,

que é a voz

De fazer nascimentos –

O verbo tem que pegar delírio.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 694, de 17 de Dezembro de 2020

 

 

PUB

PUB

PUB

To Top