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Diáspora

Presidente da Associação Cabo-Verdiana de Setúbal (em Portugal) avisa: “O pior está para vir” na fase pós-pandémica 

A comunidade cabo-verdiana de Setúbal – em Portugal – “tem resistido bem”, até agora, à Pandemia de Covid-19, mas está ciente de que “o pior está para vir”. Felismina Mendes, dirigente associativa e activista social, garante ao A NAÇÃO que os conterrâneos “têm consciência disso”, uma vez que  grande parte das empresas que fecharam durante o período do confinamento obrigatório, não reabrirão portas e as que conseguirem fazê-lo, será de forma reduzida e gradual. 

Felismina Mendes nasceu no Tarrafal (de Santiago). A sua “aventura” para a emigração assemelha-se à de muitos conterrâneos. O pai foi para Angola nos anos 60 – do século passado – e, posteriormente, a família – mãe e os cinco filhos – foram ter com ele.  

A chegada a Portugal data do final da Guerra Colonial e do processo das independências que se seguiu à “Revolução dos Cravos – a 25 de Abril de 1974. 

Por lá ficou, mais concretamente, em Setúbal, onde ainda vive e preside a Associação Cabo-Verdiana local  (ACVS), desde 2000. 

“Até agora, apesar do grande número de desempregados, a comunidade cabo-verdiana de Setúbal tem resistido, mas sabemos que o pior está para vir. E a comunidade tem consciência disso. Uma grande parte das empresas que fecharam durante o período do confinamento obrigatório, não reabrirão portas e as que conseguirem fazê-lo, será de forma reduzida e gradual, e, por isso, muitos trabalhadores cairão no desemprego”, prognostica Mendes.

Na sua avaliação,  a desactivação da economia, de “forma tão brusca e brutal”, vai obrigar a ACVS a reactivar a marca “muito cabo-verdiana de fazer as coisas e enfrentar as dificuldades”, a que os patrícios não estão alheios. 

Ainda ela, tem de se retomar e reforçar o “djuntamô”, na fase pós-pandémica. 

“Apesar da associação não possuir fundos próprios, tem-se conseguido manter parcerias com muitas instituições e entidades, em particular, do sector social, com vista a mitigar o impacto desta crise, reforçando a nossa capacidade de levar até junto das pessoas as ajudas que forem sendo disponibilizadas”, revela. 

O período pós-crise – no entendimento desta activista e dirigente associativa -, “será de uma grande recessão económica” e de muitas incertezas.

“Estaremos atentos e solidários, procurando soluções e assinalando as dificuldades às autoridades portuguesas e cabo-verdianas, para que nenhum dos nossos compatriotas fique desamparado”, enfatiza,  remarcando que o papel da ACVS é identificar, sinalizar, acompanhar e apoiar “no gigantesco esforço que já está a ser feito, para não permitir que ninguém fique esquecido e desprotegido”.

 Integração 

 A comunidade está “perfeitamente integrada” em Setúbal, mas, “é excessivo” falar-se de “plena integração”. 

“É reconhecida a capacidade de adaptação dos cabo-verdianos em qualquer ambiente, mesmo nos mais adversos. Esta resiliência está inscrita no nosso ADN”, manifesta,  garantindo que a comunidade tem-se mostrado “merecedora da confiança do país de acolhimento”, não só com o contributo do seu trabalho árduo, por vezes duro, desde os já longínquos anos 60 do século passado, mas, também, através da sua cultura e da sua capacidade de relacionamento. 

Na leitura de Mendes,  apesar da “boa integração”, existem bolsas de pobreza e um fosso de desigualdade em comparação com a população autóctone. 

“Existe um caminho a percorrer, para que a nova geração de luso-cabo-verdianos assuma a sua verdadeira identidade de dupla pertença, respeitando as suas origens e assumindo-se como portugueses, com os mesmos direitos e deveres que os demais”, realça, frisando que os imigrantes, “salvo as sempre lamentáveis excepções”, já estão a fazer a parte que lhes cabe na sociedade lusa. 

Mendes reconhece tratar-se  de um percurso que não é fácil, mas destaca que, hoje, há cada vez mais profissionais competentes com diferentes graus de responsabilidade nos mais diversos níveis sócio-profissionais, pessoas com mais formação e mais habilitadas a disputar os empregos em pé de igualdade com os demais portugueses. 

“O que fica a faltar é, muitas vezes, a oportunidade para provarem que são capazes. Não é fácil ultrapassar os estigmas sociais, os constrangimentos económicos, e acreditarem no seu valor quando percebem a desigualdade dos pontos de partida”, frisa, lamentando,  a existência de “alguma xenofobia, de algum racismo e de muita discriminação”.

 Dificuldades 

 No topo das dificuldades por que passam os conterrâneos, Felismina Mendes aponta a falta de emprego. 

“Com ela, a exploração da mão-de-obra menos qualificada, o  sub-rendimento, os salários de miséria e o excesso de horas de trabalho, com graves consequências no tecido social e familiar e problemas colaterais associados, designadamente a violência e o alcoolismo, entre outros”, aponta. 

A falta de documentação, ou documentação caducada, também dificulta o processo de integração, embora haja uma quota-parte de responsabilidade partilhada, aliada ao “muito desleixo e muita irresponsabilidade”.

“O insucesso escolar, fruto da fraca qualidade do ensino nos bairros estigmatizados, o elevado número de abandono escolar e a frágil capacitação dos jovens à saída das escolas entram, também, na lista dos constrangimentos”,  acreescenta. 

Perante este quadro, que “não é exclusivo de Setúbal”, embora, historicamente, seja uma região de Portugal onde os efeitos das crises se fazem sentir de forma mais dura, a acção desenvolvida pela ACVS, ao longo dos anos, é de uma intervenção pró-activa, de proximidade junto dos jovens e das famílias.

 Suporte da Embaixada 

  As associações têm sido, sempre, “elemento de contacto privilegiado” entre a Embaixada e Consulados com a comunidade, sendo que o grosso dos emigrantes cabo-verdianos concentram-se na Área da Grande Lisboa, havendo, também, núcleos de Norte a Sul de Portugal, bem como, nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira. 

“A ACVS sempre teve uma relação estreita, porque sempre disponível, com a Embaixada e com os diferentes embaixadores que por cá foram passando. O balanço é, obviamente, desigual, mas o que importa, neste momento, é perceber o papel do associativismo junto das comunidades e como poderemos potenciar esse papel a favor, quer das comunidades, quer da nossa representação diplomática”, sustenta Mendes,  reconhecendo “o esforço do actual embaixador, de aproximação e reconhecimento das associações”, louvando o esforço de acompanhamento no momento crítico que se atravessa, no contexto da pandemia de Covid-19. 

Entretanto, há pendências por saldar, com vista à reactivação do Gabinete de Apoio à Comunidade, que “funcionava como um Consulado-Honorário”, desde 2004.

“Foi suspenso, por incumprimento do protocolo e de acumulação de dívidas à ACVS. Ao arrepio da má-tradição associativa, costumava ser o contrário: as associações é que eram as devedoras crónicas e senhoras de más-contas. No nosso caso, somos nós os lesados”, lamenta.

Comentando a “nova” Lei da Nacionalidade Portuguesa, aprovada nos finais de Julho,  Mendes considera que “foi, finalmente, corrigida”, a “injusta” alteração feita em 1981. 

“Fico feliz porque é o resultado de uma luta associativa de décadas, da qual eu e a ACVS fizemos parte. Portanto, é com justificada e redobrada satisfação que a vejo implementada”, destaca.

 Projecto para Cabo Verde 

Mendes garante que todos os seus projectos são para ajudar os cabo-verdianos. Por isso, todos eles beneficiam directa e/ou indirectamente Cabo Verde.

“Não dependem apenas de mim e da minha vontade. Aliás, nunca depende de uma só pessoa, por mais dinâmica que seja. As ideias podem ser individuais, mas os projectos são obras colectivas, que exigem muito esforço, dedicação, empenho e partilha”, avança,  revelando que, a título pessoal, “gostaria de poder realizar alguma coisa, em Tarrafal de Santiago”.

O “grande desejo” de Felismina Mendes é de que Cabo Verde “continue a investir nas pessoas”.

E justifica: “O futuro passa por uma educação de qualidade e exigente, para que a assimetria interna, entre ilhas, diminua, e que a Diáspora esteja sempre presente na vida dos cabo-verdianos, como Cabo Verde está nas nossas vidas, ‘aqui, na Terra-Longe’”.  

O arquipélago, defende, depende, “acima de tudo, dos cabo-verdianos, de todos nós, do nosso ‘djunta-mô’  colectivo”.

Condecoração da ACVS pelo Presidente da República, Pedro Pires

Percurso da ACVS 

A Associação Cabo-Verdiana de Setúbal (ACVS), foi condecorada com a Medalha de 1ª Classe da Ordem do Vulcão, pelo – então – Presidente da República de Cabo Verde, Comandante Pedro Pires.

É uma Instituição Privada de Solidariedade Social (IPSS), sem fins lucrativos, de carácter sócio-cultural e desportivo. 

Nasceu a partir da Comissão de Dinamização de Moradores, fundada em 1983, transformando-se em associação, em 1996. 

É reconhecida pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e tem sido, enquanto parceira, uma referência no movimento associativo cabo-Verdiano em Portugal.

Congrega, aproximadamente, mil sócios, quase todos de origem cabo-verdiana, apesar de terem muitos simpatizantes portugueses e africanos.

A ACVS está ao serviço da comunidade setubalense em geral, e tem por missão prioritária, promover a integração da comunidade cabo-Verdiana na sociedade portuguesa, defender e apoiar os mais carenciados e vulneráveis numa comunidade multi-cultural circunscrita. 

Pinceladas biográficas de Felismina Mendes 

Felismina Rosa Fernandes Tavares Mendes é natural de Tarrafal – de Santiago.

Reside em Portugal, onde é funcionária da Câmara Municipal de Setúbal, no Departamento da Cultura. Foi nomeada Embaixadora para a Cidade de Setúbal, em 2019.

Estudou Desenvolvimento Comunitário, no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), é activista social e uma defensora das causas da comunidade  cabo-verdiana e dos imigrantes em geral. 

É presidente da ACVS, desde 2000 e também dirige a Federação das Organizações Cabo-Verdianas em Portugal.

Foi ex-conselheira do Alto Comissário para as Migrações, no Conselho Consultivo para os Assuntos da Imigração, em representação da Comunidade Cabo-Verdiana em Portugal, no período de 2006 a 2016.

Integrou comitivas governamentais de Cabo Verde em missões no exterior e representou em Bruxelas, no Conselho Económico e Social, as Organizações da Sociedade Civil de Portugal.

Foi condecorada, em 2015, no âmbito do 40º aniversário da Independência de Cabo Verde, com a 3ª Classe da Medalha de Mérito em Serviço Social, pelo actual Presidente de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca.  

(Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 676, de 13 de Agosto de 2020)

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