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Diáspora

Cabo-Verdiano, Doutor em Engenharia Mecânica no Brasil, revela sua mágoa “É muito difícil fazer algo na Área Académica com Cabo Verde”

José Joaquim Santos, aliás, “Prof. JJ”, como é tratado no meio académico, nasceu em “Stancha” – a Capital da Cidade de Ribeira Brava -, na Ilha de São Nicolau). Doutor em Engenharia Mecânica, lecciona na UFES (Universidade Federal do Estado de Espírito Santo, no Brasil), revelou ao  A NAÇÃO a sua “tristeza” de ainda  “não conseguir  muito fazer, para que seus projectos” para o Arquipélago, “deixem de ser só projectos”.  E explica o falhanço: “É muito difícil fazer algo na Área Académica com Cabo Verde”, garantindo que “foram muitas as tentativas fracassadas”.

Nascido seis anos antes da Independência de Cabo Verde (que aconteceu a 5 de Julho de 1975), José Joaquim Santos (“Prof. JJ”, para os mais chegados), viveu muitas venturas, desventuras e curiosidades, antes de ir “parar” ao Brasil.

Natural de  Ribeira Brava, “onde vive hoje os melhores um por cento dos cabo-verdianos residentes no País (Risos), “Prof. JJ”  cresceu a poucos metros do “antigo, famoso e histórico” Seminário-Liceu.

“Lá, na época, eu podia estudar só até aos 12 anos”, conta, revelando que  foi, nesse período de infância, que adquiriu o amor pela Engenharia, quando via seu pai, “autodidacta em Arquitectura e Desenho de Construção Civil”, trabalhando e lucrando com este seu “hobby”, que exercia, anualmente, nas suas longas férias de emigrante, embarcado na Suécia.

Aos 15 anos “sonha”  ser professor, quando já estudava no Liceu “Ludgero Lima” (LLL), em Mindelo (São Vicente), depois de ter tido um professor que era, também, engenheiro.

Apesar de ter sido um dos seis melhores alunos das turmas de finalistas do “LLL”, em 1987/88, não foi contemplado com bolsa de estudos, nem nomeado professor, pelo que estava quase a ser “promovido” de estudante para desocupado, quando lhe aparece uma vaga para docente de Francês, no (então) Ciclo Preparatório de “Stancha”.

“Depois desta rica experiência de um ano, que me confirmou a beleza da profissão de Professor, fui um dos cerca de 20 cabo-verdianos, que foram estudar em Azerbaijão (Bakú), na ex-URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), e que vivenciaram aquele conflito armado com a vizinha Arménia. Ao conseguir voltar à minha Terra, ainda um pouco traumatizado, decidi não mais sair da minha Terra e esperar o dia que tivesse Curso de Engenharia”, lembra ao  A NAÇÃO,  notando que, depois de quatro anos no Ensino e funções em Corpo Directivo no Ciclo e no Liceu da Ribeira Brava, rumou para uma via-sacra entre Praia e Mindelo, com o objectivo de fazer o Ano Zero, que não existia, poucos anos antes, quando finalizara o “LLL”.

 Choque

 Como lusófono e consumidor da Cultura brasileira, desde criança, a integração e inserção de “JJ” foi, relativamente, facilitada.

“Quando se trata de um negro, ainda mais africano, ficamos chocados com muitas coisas, mas que são ‘toleráveis’, quando se sabe que é só um período. O Brasil vende muito bem esta imagem de um paraíso da convivência democrática das raças. Acreditamos nisso até chegar aqui”,  realça, revelando ter ficado “chocado, ao saber que não se conhece aqui nada da Comunidade Lusófona”. Ainda ele, quando um africano fala, eles acham logo, que somos portugueses.

“Chocamos, também,  quando vemos que as entrevistas na Televisão, com cidadãos de outros Países Lusófonos, são legendadas (já vi até dublagem!). Esta ideia de que o Brasil recebe os estrangeiros com braços abertos, não é totalmente verdade, quando este estrangeiro é negro e africano”, revela, notando, porém, que “são questões do País”, e que, “quem vem, só para uma temporada de estudos, aprende a conviver, com o tempo”.

Como “isso depende de região para região”, “JJ” foi bafejado pela sorte, “uma vez que, quase sempre”, viveu no Sudeste, apesar de já ter estado em visita e/ou trabalho em quase todos os estados.

“Fiz toda a minha formação universitária em Itajubá, no Sul de Minas Gerais, perto de divisa com o Estado de São Paulo e do Rio de Janeiro. Foram mais de 13 anos lá. Apesar de ser uma cidade pequena do interior, achei pior que em Vitória, Capital do Estado do Espírito Santo, onde vivo hoje e trabalho, há mais de 11 anos”, lembra,  garantindo que “Vitória é, realmente, um lugar onde tem muita gente de outros estados e estrangeiros”, que até lhe ajudou, “um pouco”, a sua “teimosia” de não morar no Brasil.

 Credenciais e bajulação 

 Actualmente, as credenciais de que dispõe, protegem-lhe de discriminação, pelo que nunca foi rejeitado profissionalmente.

“Às vezes que sofri alguns constrangimentos, foram antes de eu apresentar estas credenciais. Depois, vem até uma bajulação, por medo de eu abrir algum processo. Porém, gosto de diferenciar, quanto ao racismo: discriminação, preconceito e injúria. Preconceito todos sofrem e já presenciei injúrias. Devido à forte componente social e económico do racismo no Brasil, estas credenciais me protegem”, explica, sustentando que, “o problema é que muitos negacionistas do racismo estrutural, gostam de usar a narrativa equivocada de que o racismo é meramente social e económico, o que não é verdade”.

Tentam até – prossegue – alegar o facto de “eu ter sido já eleito para vários cargos de destaque, inclusive sendo o Professor mais homenageado do meu Departamento, como patrono e paraninfo dos formandos”, seus alunos, que são quase todos brancos, “como prova de não-existência de racismo estrutural, quando são, precisamente, estes factos que provam a sua existência”.

Para “JJ”, caso não existisse o racismo, num País “de mais da metade da população negra, metade dos ocupantes destes cargos, metade dos alunos e professores, metade dos homenageados, seriam negros, mas negros brasileiros”.

E argumenta: “Eu sou um brasileiro naturalizado. Porém, os caminhos que me levaram a entrar numa Universidade brasileira não foram trilhados no Brasil, onde a Educação Básica, Fundamental e o Ensino Médio de qualidade é paga, cara, e quase todos os pobres são negros”, frisando que “pai rico, compra a competitividade do filho”.

 Comunidade “amiga e muito qualificada”

 Em  Vitória, há uma comunidade cabo-verdiana “amiga e muito qualificada”.

“JJ” nunca deu aulas para seus conterrâneos, pois, são de outros cursos.

“Mas, já dei aulas para angolanos e bissau-guineenses. Na UFES, somos quatro conterrâneos professores universitários e doutores, sendo eu, na Engenharia Mecânica; e três na Engenharia Eléctrica. Também temos outro doutor na área Farmacêutica, que é professor numa Faculdade privada”, lista, apontando a existência de “uma quantidade razoável de alunos e de ex-alunos” da UFES, que lá trabalham.

Formada por umas 20 a 30 pessoas, só na  Grande Vitória, o ano de 2020 não foi de muita convivência entre os conterrâneos, devido à  quarentena.

“Antes, encontrávamos, com certa frequência, em festas africanas e latinas e/ou nos torneios de Futebol, que ganhamos sempre dos angolanos, guineenses e amigos brasileiros (Risos)”, aponta, acrescentando que, juntam-se, também,  para ceias de Natal, churrascos ou festas da Independência de cada um dos Países Lusófonos.

A UFES já reconheceu esta forte Comunidade, comemorando, mensalmente,  Internacionalização, dedicando, um dia a cada País, com palestras e actividades culturais.

“Começou por Cabo Verde. Na época, um dos nossos conterrâneos, o Prof. Dr. Jair Silva, fazia parte da Secretaria de Relações Internacionais e a nossa Catchupa foi o prato-do-dia, no Restaurante Universitário”, destaca.      

 “Tentativas fracassadas”

 “JJ” está um pouco entristecido, uma vez que, ainda, “não conseguiu muito fazer, para que seus projectos” para o Arquipélago, “deixem de ser só projectos”.

“É muito difícil fazer algo na Área Académica com Cabo Verde. Foram muitas as tentativas fracassadas, de aproveitar recursos de Editais de Fomento Pró-África, que eram anuais, entre 2005 e 2008. Não consegui engajamento por parte dos professores de lá. Eu tinha desistido”, manifesta,  revelando que, após à sua chegada a Vitória, em 2009, em co-parceria com “o conterrâneo e colega Prof. Dr. Jair Silva, que é mais teimoso e insistente que eu”, criaram o grupo NIDA (Núcleo de Inovação Desenvolvimento e Pesquisa Pró-África), que, em 2014, até conseguiu uma Sala na Universidade.

Na sequência,  firmou-se, em 2017, um Acordo de Cooperação entre a UFES e a Uni-CV (https://www.ufes.br/conteudo/ufes-e-universidade-de-cabo-verde-assinam-acordo-de-coopera%c3%a7%c3%a3o-acad%c3%aamica).

E pormenoriza: “Este Acordo é para actuações-conjuntas na Área de Ensino, Pesquisa e Inovação Tecnológica. Além de nós dois, integram, também, o NIDA, outros colaboradores e membros, como os nossos conterrâneos Prof. Dr. Hélder Rocha, Prof. Dr. Ezequiel Pereira, entre outros”. 

Presentemente, estão “em contactos” com  a Universidade Técnica do Atlântico (UA). “Talvez, precisemos de um outro Acordo de Cooperação com esta nova Universidade, uma vez que nossas linhas de Pesquisa são, também, em Áreas Tecnológicas”,  salienta.  

 “Pós-crise é só em 2022”

 No prognóstico de “JJ”,  2021 será inteiramente dedicado a um processo paulatino de saída da Pandemia Global de COVID-19, com vista ao retorno ao “novo normal”, em segurança.

“Pelo que vejo, o Brasil vai ser dos últimos a voltar ao ‘novo normal’. Estamos desgovernados e mergulhados em uma briga ideológica, além de ter, ainda, que lutar para preservar a nossa jovem Democracia, por mais imperfeita que ela seja, no campo racial, económico e social. Estes aspectos são muito menos graves em Cabo Verde, que tem outros problemas, devido à sua forte dependência do Turismo. Mesmo assim,  as atitudes tomadas foram as correctas”, argumenta.

Nestes aspectos, argumenta que, quando pensa em alguma crítica em relação a Cabo Verde, este pensamento é freado quando olha para o Brasil.

“Eu nasci num País  feito para dar errado, mas está indo, dentro das possibilidades. Moro e sou naturalizado num outro, que foi feito com tudo para dar certo, mas vive mergulhando numa confusão de ideologias, que leva a pequenos avanços e grandes retrocessos”, manifesta, remarcando que, hoje, com quase 52 anos, nascido no Período Colonial, já teve que aprender quatro hinos nacionais e saúdar quatro bandeiras, pelo que, mesmo não sendo adivinho, iluminado, entende que 2021 vai ser de aprimoramento do que “viemos a aprender sobre o trabalho remoto, além de socorro aos mais necessitados e afectados” pela Pandemia.

“Espero que o ser humano tenha aprendido alguma coisa sobre a nossa fragilidade social. Acredito que o pós-crise é só em 2022. Muito distante para prognósticos”, realça. 

 “Mais voz à Diáspora”

 “JJ” desafia  os conterrâneos na Diáspora, a ajudarem “bastante, a divulgar” Cabo Verde, uma vez que “somos duas vezes mais, em número, do que os residentes”.

Aos residentes nas Ilhas, torce para que se dê “mais voz à Diáspora”, neste debate, intitulado: “Pensar Cabo Verde”.

O interlocutor do  A NAÇÃO gostaria, também, de ter mais patrícios “conscientes da nossa africanidade, apesar das nossas peculiaridades, ter a consciência de que somos fracos em recursos naturais e que a nossa riqueza é, precisamente, os nossos recursos humanos, que podem ser tão criativos, no pensar um futuro inovador” para Cabo Verde.

“Não temos quase nada, além da nossa posição geográfica estratégica. Nem água doce (potável) natural temos o suficiente. Mas temos mar, sol e vento. Sol e vento é energia. Água do mar e energia dá água doce. Já conhecemos muito bem este processo. Água pode ser oportunidade para muitas coisas, inclusive para agro-negócios. Nosso mar é rico. A industrialização permite agregar valor a tudo isso”, argumenta, concluindo que o País tem sido elogiado pela sua governança, nas últimas décadas, o que significa credibilidade internacional, a par de uma das mais bem ranqueadas democracias do Mundo.

“Professor JJ” lecciona na UFES e é autor de dezenas de artigos científicos

José Joaquim Conceição Soares Santos, conhecido no meio académico por “Prof. JJ”, nasceu em “Stancha” (na Ilha de São Nicolau, em Cabo Verde), possui Graduação (2002), Mestrado (2005) e Doutorado (2009), em Engenharia Mecânica, pela Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI), sendo Mestrado e Doutorado com Concentração em Conversão de Energia.

Durante o Mestrado e o Doutorado (2002 a 2009) foi pesquisador e membro do Núcleo de Excelência em Geração Termo-Eléctrica e Distribuída (NEST), da UNIFEI, actuando na Área de Engenharia Térmica, precisamente, em Termo-Dinâmica Aplicada (Dessalinização, Co-Geração, Geração Termo-Eléctrica e Distribuída, Termo-Economia e/ou Exergo-Economia, Simulação e Diagnóstico).

Desde Junho de 2010 é Professor Efectivo Permanente, no Departamento de Engenharia Mecânica (DEM), do Centro Tecnológico (CT) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), actuando na Graduação, Mestrado e Doutorado em Engenharia Mecânica.

Durante os oito meses que antecederam a efectivação como Professor Efectivo Permanente, foi Pesquisador-Visitante na UFES, actuando no Programa Institucional de Formação de Recursos Humanos da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Bio-Combustíveis (PRH-ANP, n° 29).

Após a efectivação, passou a ser Membro da Comissão Gestora deste Programa Institucional, até Junho de 2011, quando assumiu a Coordenação do mesmo, ficando até 2018, quando encerrou o Programa.

Fez parte do Comité Nacional de Coordenadores dos PRHs-ANP, foi secretário e Membro do Comité Técnico Executivo da Área de Ciências Térmicas da Associação Brasileira de Engenharia e Ciências Mecânicas (ABCM) durante, respectivamente, dois biénios (de 2016 a 2020), é sub-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica (PPGEM) da UFES e foi bolseiro de Produtividade em Pesquisa (Bolsa Pesquisador Capixaba), pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), de 2016 a 2019.

Autor (ou co-autor) de mais de 110 artigos científicos em congressos e revistas internacionais, em sua maioria, além de oito capítulos de livros.

Orientou (ou orienta ainda) perto de 20 mestrados e seis doutoramentos.

Estas e outras informações estão em:  http://lattes.cnpq.br/6666040476009642.

(Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 698, de 14 de Janeiro de 2021)

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