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Cabo Verde e a SAA – A história não se distorce

Por: Mario Paixão*

As operações da South African Airways no Aeroporto do Sal, durante o período do apartheid e das sanções à República da África do Sul, foram recentemente objecto de distorção e aproveitamento políticos para mascarar uma nomeação, pelo Governo de Cabo Verde, de um cônsul honorário de nacionalidade portuguesa (ligado a um partido de extrema-direita portuguesa, racista, xenófobo e contra os emigrantes), para representar o nosso país na Florida (EUA). Estalado o verniz, a dama fez como o polvo: ejectou tinta e tentou turvar as águas na clássica manobra de evasão. À argumentação oportunista, vários cidadãos responderam com factos e argumentos sérios, devendo-se destacar o excelente artigo do embaixador António Pedro Lima, publicado no Expresso das Ilhas de 26 de Janeiro de 2021. O posicionamento de Cabo Verde no xadrez africano e a história das relações da SAA com Cabo Verde, por tudo aquilo que representaram para as instituições políticas e empresariais envolvidas, merece muito mais do que uma manobra cínica e descuidada.

É de todos conhecido o papel crucial que a SAA jogou no desenvolvimento do Aeroporto do Sal no período pós II Guerra Mundial. Encerrado durante o tempo que durou o conflito (de 1939 a 1945), o Aeroporto do Sal foi reabilitado e reaberto a 15 de Junho de 1949, após aquisição das infra-estruturas e instalações à anterior proprietária LATI (Linhas Aéreas Transcontinentais Italianas). A decisão para a reabertura do aeroporto do Sal foi tomada na 1ª Conferência Regional de Navegação Aérea da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO) para o Atlântico Sul, no Rio de Janeiro, em Julho de 1947, onde se fez essa recomendação expressa ao governo português, como indispensável para o regular funcionamento da navegação e da segurança aérea no Atlântico, decorrendo daí a promulgação pelo governo luso do Decreto-lei nº 36/585, de 12 de Novembro de 1947, visando a aquisição das instalações da LATI, a remodelação e ampliação das infra-estruturas e a construção/asfaltagem de uma pista de 2.000m. A previsão de um ano para a realização dos trabalhos foi largamente ultrapassada. As aeronaves que operavam no aeroporto eram, maioritariamente, o Douglas DC4 Skymaster e o Douglas DC 7C Super Constellation. O aeroporto era escassamente frequentado, vindo a conhecer maior utilização, a partir de 1960, com os chamados Voos de Amizade TAP/Panair, ligando Lisboa ao Rio de Janeiro, com escalas no Sal e em Recife. Em 1964, o Sal começou a receber os voos Lisboa/Lourenço Marques (Maputo), via Bissau, São Tomé, Luanda, Salisbúria (Harare) e Beira, uma longa rota da TAP com aviões Super Constellation, devido ao boicote da ONU contra Portugal, que o inibia de sobrevoar o continente africano, com excepção da África Austral. Em 1967, a TAP introduziu os aviões a jacto B727-100 nessa rota, com escala no Sal. A Alitália, a Ibéria, a KLM, a Avianca, a Panair, Viasa (venezuelana) e a SAA eram outras companhias que realizavam escalas de reabastecimento no aeroporto do Sal.

A transportadora sul-africana fizera um voo experimental ao Sal a 11 de Maio de 1962, via São Tomé e Príncipe, com uma aeronave DC7-B. Em Agosto de 1963, iniciou os voos comerciais Johannesburg/Windhoek/Sal/Roma, com equipamentos DC7C e em Dezembro do mesmo ano começaram os voos comerciais Johannesburg/Windhoek/Sal/Frankfurt, com aeronaves jacto B707. O interesse da companhia aérea sul-africana era tal, que, ainda em 1963, representantes da mesma solicitaram ao casal belga Gaspard e Margherite Vynckier – que em 1962 tinham construído uma casa de férias em Santa Maria, Sal – a construção de alguns bungalows anexos ao guest house (Pousada) para servir as tripulações da transportadora. A família respondeu positivamente, nascendo assim o Hotel “Morabeza”, o primeiro a receber tripulações e turistas de várias partes do mundo. Esse interesse da SAA obrigou a administração portuguesa a investir na remodelação do aeroporto, construindo uma nova pista de 3.370m, taxiways (caminhos de circulação), plataforma de aeronaves e novo terminal de passageiros, tendo as obras decorrido entre 1963 e 1966. Em Novembro de 1972, a SAA introduziu os famosos Jumbos B747 (versões 100, 200 e SP) nas rotas para Nova Iorque, o que colocou desafios e responsabilidades acrescidos para todas as entidades envolvidas nas operações para os EUA. Uma estreita linha técnico-operacional separava a viabilidade económica dessa operação no sentido Johannesburg-New York, tendo em conta a altitude do aeroporto sul-africano (5.558 pés/1.694 metros), cuja pressão atmosférica impunha restrições do peso máximo à descolagem e obrigava a uma escala intermédia para refuelling, nas rotas northbound. As autoridades sul-africanas, portuguesas e americanas acordaram na utilização do aeroporto como escala no Atlântico, advindo daí investimentos das partes na viabilização das operações da SAA. Para aumentar os níveis de segurança e contribuir para a regularidade das operações aéreas, em 1973 o aeroporto do Sal recebeu um ILS (Instrument Landing System, Sistema de Aterragem por Instrumentos), inicialmente destinado para o Porto (na verdade, durante dezenas de anos, toda a documentação técnica do ILS do Sal, referia-se claramente ao “Oporto ILS”, deduzindo-se que a decisão fora tomada com carácter de urgência).

A SAA utilizava o Sal nos voos para Frankfurt, Londres, Roma, Paris, Amsterdão, Nova Iorque e Atlanta. Pelo menos 110 tripulantes pernoitavam diariamente nos hotéis do Sal, sem contar com o pessoal técnico e administrativo deslocado para a ilha. O embaixador António Lima descreve bem a delicadeza da situação que se colocava nas vésperas da independência de Cabo Verde, envolvendo questões de ordem politica, económica e de segurança operacional. As garantias dadas ao governo sul-africano, ainda em 1974, pelo Ministro Almeida Santos, de Portugal, de que o Aeroporto do Sal não seria fechado à SAA após a independência (com envolvimento do governo dos EUA), visavam a salvaguarda de interesses que os cabo-verdianos e o mundo entenderam muito bem. O acordo de cooperação assinado logo após a independência nacional (em 1975), designava a SAA como apta a operar no Aeroporto do Sal e dava-lhe direitos de tráfego entre a ilha e qualquer destino servido pela transportadora (fazendo uso da 5ª liberdade do ar), com excepção de Lisboa. Foi com base nesses direitos que os cabo-verdianos puderam viajar, durante muitos anos, de/para os Estados Unidos da América e a África do Sul, bem como outros destinos nos continentes americano e africano, aproveitando os acordos de code share (código compartilhado) dessa transportadora com outras companhias aéreas. No período subsequente foram produzidos dezenas de diplomas, umas dizendo respeito à regulamentação e aplicação de taxas e tarifas e outras ao regime de exploração das lojas francas e regime de sobrevoo do espaço aéreo por aeronaves estrangeiras, bem como assinatura de diversos acordos aéreos bilaterais com vários países.

Em Dezembro de 1980, outro salto foi dado nas relações da SAA com Cabo Verde, ao se assinar um Memorando de Acordo, em que aquela companhia aérea fez um empréstimo de 14 milhões e 820 mil Rands para a reabilitação das pistas, instalação das luzes centrais da pista principal e melhorias nos caminhos de circulação, torre de controlo, plataforma de estacionamento de aeronaves e sistema de abastecimento de combustíveis. De igual modo, foram instalados um gerador de energia de 325KVA e um dessalinizador de água de 750litros/hora. O empréstimo cobriu os custos com a asfaltagem da estrada Espargos/Santa Maria e a construção de um bairro para os trabalhadores do aeroporto (que o povo apodou de “Pretória”, por acolher, inicialmente, os técnicos sul-africanos mobilizados pelas empresas sul-africanas, e a toponímia oficial registou como Bairro Novo). Não havia dúvidas para ninguém que a SAA gozava de estatuto de maior companhia aérea africana e uma das maiores do mundo, cuja organização e “saber fazer” estava fortemente alicerçada numa cultura e mentalidade anglo-saxónicas.        

O aumento da capacidade técnica e operacional do Aeroporto do Sal, tornou-o alternante para as aeronaves narrow e wide bodies que cruzavam o Atlântico Médio, inclusivamente para as operações dos Space Shuttle (vaivéns espaciais) da NASA, cujas actividades tiveram início em 1981. Equipas técnicas norte-americanas realizaram diversas missões ao Sal entre 1981 e 2011 para seguimento das missões desses veículos espaciais, com equipamentos instalados durante o período das mesmas.

A importância que Cabo Verde jogava nesta região foi reconhecida pela ONU, que de 1975 a 1984, manteve um Bureau da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO) no Aeroporto do Sal, no âmbito do programa “Desenvolvimento da Aviação Civil em Cabo Verde”, financiado pelo PNUD. A presença de uma agência da ICAO permitiu o estabelecimento de laços fortes com a autoridade máxima da aviação a nível mundial, uma assessoria técnica focada no cumprimento dos standards e normas recomendadas da ICAO e uma cultura centrada na segurança das operações aéreas. Um extenso programa de formação dos recursos humanos foi levado a cabo. O prestígio internacional e a qualidade dos serviços prestados pelo Aeroporto do Sal acabaram por ser um factor importante na implantação da FIR Oceânica do Sal, em 1980, o que aliado ao acréscimo das actividades aéreas, levaram à criação da Empresa Nacional de Aeroportos e Segurança Aérea (ASA-EP), conforme decreto nº 114/83, de 31 de Dezembro de 1983, tendo como objecto “a exploração e desenvolvimento, em regime de exclusivo, dos serviços aeroportuários e de navegação aérea do Aeroporto Internacional Amílcar Cabral, dos Aeródromos Nacionais e da FIR Oceânica do Sal”. Em 1985, o país daria outro salto qualitativo no edifício institucional e regulador do sector aéreo, ao se autonomizar a Direcção-Geral da Aviação Civil, com sede na Praia. 

Que seria da Ilha do Sal, da aviação civil, dos transportes aéreos e do turismo, sem o contributo da South African Airways? Que seria de Cabo Verde sem a sabedoria e a visão dos homens de Estado que dirigiram este país no período pós-independência? Qualquer deriva estratégica na gestão do dossier SAA, que não tivesse em conta os interesses nacionais e os compromissos internacionais, teria um impacto desastroso e de longo prazo na ASA, na TACV/Handling, na hotelaria/turismo e no negócio dos combustíveis, com perdas superiores a 25 milhões de dólares/ano, para além de reflexos nefastos na economia e no emprego, na data já afectados pela crise nas indústrias de exploração e exportação do sal e do pescado. A Ilha do Sal e Cabo Verde sofreriam certamente um duro revés se os nossos governantes não estivessem 100% alinhados com os interesses do país e com o juramento feito a 5 de Julho de 1975. 

Dito isto, resta esperar que a racionalidade e o sentido de justiça sejam sempre fonte de inspiração para quem governa esta pequena e nobre nação. E que nós, cidadãos, tenhamos o dever de gratidão e reconhecimento por todos os que, sejam pessoas, sejam instituições nacionais e/ou estrangeiras, muito deram pelo bem comum.

*Antigo PCA da ASA

(Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 703, de  18 de Fevereiro de 2021)

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