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Ambiente

Ribeira da Barca: Impact cria latejas de pavimento, sustentáveis e inspiradas no “panu di terra”

Inês Alves e Lara Plácido são duas arquitectas portuguesas que estão a desenvolver um projecto na Ribeira da Barca, ilha de Santiago, que propõe reinventar novas actividades geradoras de rendimento para as mulheres que se dedicam à apanha de areia. Impact foi inclusive seleccionado como projecto satélite da Porto Design Biennale 2021 e visa a produção de lajetas de pavimento com base em materiais recicláveis, inspirando-se na identidade local – o “panu di téra”.

O problema da apanha de areia na Ribeira da Barca não é novo. A NAÇÃO, inclusive, já abordou o assunto em várias ocasiões, dado o impacto negativo dessa actividade no desequilibro ambiental dessa zona costeira da ilha de Santiago.

Não sendo novo, também têm sido várias as tentativas de se criarem alternativas económicas e sociais para as mulheres, na maioria chefes de família, que vivem da recolha de inertes nas praias e ribeiras para sustentar os filhos.

A delapidação desse recurso natural, ao longo dos anos, fez escassear, cada vez mais, esse inerte muito usado na construção civil, sendo urgente alternativas mais sustentáveis.

 

Sistema construtivo adaptado à realidade cabo-verdiana

Daí a ideia de criar um sistema construtivo adaptado à realidade cabo-verdiana, que propõe a substituição de uma parte dos inertes por resíduos sólidos urbanos triturados, como vidro ou plástico, e que surge das preocupações em se reduzir o impacto ambiental provocado pela extração de inertes e, assim, canalizar os chamados lixos descartáveis.

Isto num país insular, que não possui mecanismos sistematizados para o seu tratamento.

Mas, antes de se proporem a trabalhar com as mulheres da Ribeira da Barca, as ligações de Inês e Lara a Cabo Verde remontam a 2015, ano desde o qual vêm desenvolvendo projectos no país. Inclusive, o Impact foi uma das iniciativas seleccionadas para a exposição Created in Cabo Verde, da URDI 2020, em São Vicente, e que, agora, ganhou uma extensão, ao formalizarem a candidatura à Porto Design Biennale 2021.

As duas jovens pretendem trabalhar com a comunidade de mulheres da Ribeira da Barca, dando uma nova ramificação ao projecto, tornando-o participativo.

“Na URDI, apresentámos um sistema construtivo de encaixe e propusemos que a sua construção fosse feita com recurso a plástico e vidro triturado para a redução dos inertes necessários.

Somos arquitectas a trabalhar nessa ilha desde 2015 e, num período de pandemia mundial, decidimos formalizar problemáticas incontornáveis para nós, como a questão da habitação, da falta de rigor na autoconstrução e a inexistência de mecanismos sistematizados para o tratamento dos resíduos sólidos urbanos no país.

Para além destas questões, também a extracção de inertes e as suas problemáticas inerentes – ambiental, económico-social e humana – foram ganhando território na nossa abordagem”, explicou em entrevista ao A NAÇÃO, Inês Alves.

 

Alternativa à apanha de areia

O principal objectivo do projecto passa por encontrar uma alternativa à apanha de areia, “uma actividade ilegal”, que segundo Inês, é “cada vez menos procurada devido à entrada da areia de britadeira no mercado”.

Mesmo assim, essa apanha continua a ser a actividade predominante das mulheres daquela localidade.

“Ao chegar à Ribeira da Barca, o projecto Impact propõe-se a trabalhar com essas mulheres no sentido de reinventar uma actividade económica que possa contrariar a vulnerabilidade de um expressivo número de famílias que contam apenas com a extração da areia para sobreviver”, reforça.

Ao ser seleccionado como Projecto Satélite da Porto Design Biennale, o Impact assume o nome de “Exploratório com impact: design participativo para o habitat dos 99%”.

Para esta “variante”, as duas arquitectas propuseram passar três meses na Ribeira da Barca, onde têm vindo a desenvolver um trabalho de proximidade com as pessoas, como salientam, “sem imposições e sem introduzir grande novidade no quotidiano da localidade”.

A ideia foi tornar o processo o “menos formal possível” e o mais prático e interactivo, ou seja, de forma participativa.

“A nossa prioridade consiste em desenvolver um acompanhamento diário da labuta da areia – quer na ribeira, quer no Charco – com o intuito de desenvolver um mapeamento etnográfico assente em conversas e registos consecutivos”, explica.

 

Construção de latejas para pavimento

Paralelamente, as duas investigadoras fixaram um laboratório nas instalações da Associação Tcheka e Amigos da Ribeira da Barca, onde têm recebido todas as mulheres que têm mostrado interesse no projecto, e com quem têm trabalhado.

“Em conjunto, desenvolvemos um novo elemento construtivo baseado na identidade cabo-verdiana, no qual exploramos o padrão do panu di téra aplicado a uma lajeta de pavimento.

Para a sua prototipagem, trituramos plásticos recolhidos na ribeira, que juntamos no traço com o intuito de reduzir os inertes e reutilizar os plásticos, que inevitavelmente teriam fim no mar”.

Neste momento, o projecto está em fase de aprimoramento.

“Temos vindo a afinar a receita do traço, onde testamos a quantidade de plástico e a sua relação com as diferentes areias provenientes da ribeira, Charco e britadeira, bem como diversas pigmentações. Em breve, prevemos fazer os devidos ensaios no LEC Laboratório de Engenharia Civil, para a certificação do elemento”, finaliza.

Economia circular

Inês Alves garante que os trabalhos têm corrido “bem”, mas, confessa que, no contacto com os moradores da Ribeira da Barca, sentem o que chamam de “alguma desconfiança”. E a razão disso é clara.

“Esta comunidade foi alvo de algumas iniciativas, nos últimos anos, que propunham estabelecer novas actividades económicas para essas mulheres, e que, infelizmente, não se mostraram consequentes. Apesar de tudo, essa questão foi importante para antevermos logo de início a necessidade em dar continuidade ao projecto”, admite.

 

Continuidade e sustentabilidade do projecto

Questionada como pretendem dar continuidade e sustentabilidade ao projecto assim que este terminar, garantem que estão a ser criadas as condições para tal. “O projecto propriamente dito não terminará com a nossa saída da Ribeira da Barca.

A correr bem, a certificação do elemento garantirá a sua qualidade e, ao adquirir um valor económico associado, poderá tornar-se também um impulsionador para a economia circular.

Antevemos a possibilidade de submeter o projecto a novos financiamentos no sentido de fornecer à produção uma maior capacidade de resposta”, garante.

Com estas latejas sustentáveis, as duas arquitectas acreditam que os centros urbanos e rurais poderiam vir a beneficiar de um pavimento que reforça, por um lado, a identidade nacional e que reduz, por outro, o impacte ambiental proveniente da extração de inertes e da falta de tratamento dos resíduos sólidos urbanos.

 

Projecto alinhado com a Agenda 2030

“Estamos, no entanto, conscientes da necessidade do compromisso de municípios, ministérios e outras instituições, que poderão promover estratégias baseadas nos valores de responsabilidade social, uma vez que as directizes do projecto se alinham directamente com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, bem como com outros documentos estruturantes, como é o caso do Plano Estratégico Municipal de Desenvolvimento Sustentável de Santa Catarina 2017-2027”, explica em jeito de apelo.

Inês e Lara encontram-se agora em São Vicente, onde deram início a uma nova fase do projecto que denominaram de “pós-exploratório com impact”.

“Neste momento, estamos a dar os primeiros passos para a formalização do “impact” e em que temos procurado novos parceiros, que nos possibilitem dar continuidade aos trabalhos, por um lado, através da certificação do produto e, por outro, reunindo condições para a criação de uma unidade de produção e comercialização das lajetas na Ribeira da Barca”, conclui.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 728, de 12 de Agosto de 2021

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