O poeta Arménio Vieira foi homenageado esta quinta-feira, na cidade da Praia, numa iniciativa conjunta da Rosa de Porcelana, a Universidade de Cabo Verde e a Presidência da República. Aos 80 anos, completados em Janeiro, o poeta lança o seu 11º livro, “Safras de um triste outono”. Arménio Vieira foi o primeiro Prémio Camões cabo-verdiano (2009), altura a partir da qual escreveu sete livros. Hoje, diz, sente-se vivo, não tem saudades da juventude, mas se pudesse voltar no tempo, com a garantia de que seriam apenas momentos bons, o faria sem pestanejar.
Como se sente aos 80 anos?
Sinto-me vivo. Vivo e ainda com capacidade para falar e pensar. Isso já é bom. Neste momento acho que não tenho nenhuma doença. Pode ser que esteja incubada e de repente aparece! (risos)
O que se colhe num outono triste?
Há pouca colheita em Cabo Verde, pois, geralmente não chove. Outono porque o primeiro poema que eu escrevi – um haicai – (o haicai normal geralmente tem três versos, mas eu fiz um com com quatro versos), que está na contra-capa do livro.
Também tem uma palavra curiosa que é “laurea”. Laurea é a coroa dos poetas, uma coroa de louros.
Quando cai a última folha, metaforicamente significa que o poeta morreu. E triste porque ele, o poeta, estava isolado, longe da família.
Pretende escrever mais livros?
Posso dizer que “Safras de um triste outono” é um livro triplo, e explico porquê.
O que é um livro e quantas páginas tem?
Nunca ninguém definiu isso. Fernando Pessoa escreveu uma obra prima da literatura – o único livro que ele publicou em vida, mandou-o para um concurso de poesia nacionalista, ficou com uma menção honrosa, mas não recebeu o cheque.
Isto porque o regulamento
dizia que o livro tinha que ter 100 páginas, mas só tinha 80.
“Safras de um triste outono” tem mais de 400 páginas. Dava três livros e se mandasse só um caderno de 100 páginas ganharia o prémio.
Respondendo à pergunta, se estiver vivo, sim, conto escrever e publicar mais livros. Já tenho, inclusive, outros poemas inéditos.
Eu estou sempre a escrever no telemóvel. As pessoas pensam que estou a mandar mensagens, mas estou a escrever poesia.
Como vê a vida acima dos seus 80 anos?
Numa das primeiras entrevistas que eu dei, em Portugal, alguém me perguntou se eu tinha medo da morte. Eu disse não, não posso ter, porque não vou morrer hoje, nem amanhã.
A única coisa que eu temo é que o céu me caia em cima, mas não vai acontecer hoje.
Continua então a viver com a mesma despreocupação dos seus 20 anos?
Não porque aos 20 eu estava lançado a uma grande aventura.
Agora, que aventura me falta?
Se eu puder escrever ainda um bom livro, ok. Mas não tenho certeza.
Parece que o Prémio Camões o deixou mais produtivo. É verdade?
Quando ganhei o Prémio Camões eu tinha quatro livros. Já tenho 11. Apareceu quase o dobro depois. De repente, deu-me para ser mais produtivo. Não estava nos meus planos, confesso.
Sente saudades da juventude?
Não. Se me perguntasse se quero voltar à juventude, diria, com certeza! Mas não repetir a minha vida. Houve momentos de prazer, mas houve também momentos dolorosos.
Eu estive numa guerra. Fui mobilizado para a guerra colonial, em Angola, contra a minha vontade.
Três anos na guerra, depois de ser preso político por um ano. Não digo que foram quatro anos perdidos porque ganhei experiência. Além disso, não matei ninguém.
Voltaria à juventude se tivesse a certeza de que seriam momentos alegres. Eu passei por tudo.
Quase morri afogado, de acidente, passei por dores de dentes, de cabeça, trepava árvores, rochas, corria riscos.
Escreveu na prisão?
Escrevi. E alguns dos poemas que escrevi na prisão até saíram, no Seló, constituído por Osvaldo Osório, Mário Fonseca, e outros.
Não era uma revista, era a página de um jornal, o Notícias de Cabo Verde, que havia em São Vicente.
Foram dois números, no primeiro eu não colaborei porque estava preso.
Colaborei para o segundo número e mandei textos para o terceiro número, que não saiu porque foi censurado pela polícia, a PIDE.
Escrevia sobre o quê?
Era nacionalista. Escrevia sobre os abusos. Poemas de conotação social e independentistas. A independência, de Cabo Verde na altura, era o meu sonho.
Como vê hoje a literatura em Cabo Verde?
Acompanho pouco. Espero que apareça algum grande poeta ou romancista. O mais novo que eu conheço e é um poeta excelente é o José Luís Tavares.
Acho que já atingiu os 40 anos. Mas deve haver outros. Às vezes também não há meios para publicar.
Publicar um livro custa dinheiro e quando ainda não se tem fama é mais difícil convencer as editoras. O Baltasar Lopes passou por isso com “Chiquinho”.
Teve de fazer um empréstimo para publicar e depois pagar aos poucos. Só muitos anos depois é que o livro teve quatro ou cinco reedições.
Mas na altura ele ganhava como um professor de liceu, ganhava-se pouco, tanto é que eu, em São Vicente, no Liceu, nunca vi um professor meu com dois fatos.
Era sempre o mesmo. Trocava-se as camisas e roupa íntima. (risos)
Se tivesse de fazer uma antologia, que poema não deixaria de fora?
Já tenho uma, que foi organizada pelo Filinto Elísio, portanto, a escolha foi dele e não minha. Mas a ter que fazer uma antologia não deixaria de fora o poema “Homens-cães (e vice-versa)”.
As pessoas gostam deste poema. Está no meu primeiro livro, Poemas, que o Manuel Ferreira publicou, em 1980.
Se tivesse que ir para uma ilha deserta, que livro levaria consigo?
Levaria Dom Quixote, levaria Hamlet, levaria Odisseia e alguns poemas de Fernando Pessoa.
E se fosse para um Mosteiro?
Mosteiro não, porque eu não sou monge. Não tenho crença religiosa.
E para um puteiro?
Levaria uma pergunta. Porque eu fiz isso uma vez a uma prostituta.
– Acreditas em Deus. E ela disse não.
– Porquê?
“Porque nunca o vi.”
Eu também nunca o vi.
Qual é o momento e lugar ideal para ler?
Em casa, à noite. Por causa do silêncio. E nunca ponho música. Não me inspira.
O que é que o inspira?
Uma frase. Um poema.
Antigamente uma mulher bonita. Agora não, até porque a minha mulher é bonita. Há dois poemas no livro dedicados a ela.
E dois também à minha filha, que completa 11 anos essa semana.
Uma coisa que quer fazer?
Eu não quero morrer antes que a minha filha seja adulta. Vai fazer onze esta quinta-feira, por coincidência, dia da homenagem que me vão fazer.
Pelo menos, que eu tenha mais dez anos de vida. É o que me preocupa.
De resto, desde que não seja uma morte penosa, por mim tudo bem, afinal antes de nascer eu não era nada. Nem me perguntaram se eu queria vir. Tudo o que tem um princípio tem um fim. É a lei da vida.
Como vê o país a nível político?
Não gosto de política. Fui preso por razões políticas.
Fui para a guerra por razões políticas e fui punido, obrigado a ir para onde eu não queria estar. Eu era nacionalista e queria lutar do lado dos Angolanos e não de… Bom, nem quero dizer o nome.
Eu não confundo português com colonialistas e fascistas.
Até porque havia presos políticos portugueses.
Está a acompanhar as eleições presidenciais?
Não. Mas vou votar em Portugal, viajo no dia 15. Tem graça porque alguns concorrentes são meus amigos.
O actual presidente também é seu amigo. O que achou do desempenho dele?
Amigo e parente. É meu primo.
Pelas informações que eu tenho ele foi excelente. Não há um presidente perfeito. Especialmente
num país que tem carências.
Na política não se consegue agradar a toda a gente ao mesmo tempo.
Safras de outono… e outras estações
Safras de um triste outono”, o mais recente livro de Arménio Vieira, chega a Cabo Verde depois de ter sido lançado em Portugal, no mês passado.
“Uma obra densa, intensa e complexa que, claramente fechando um longo ciclo da escrita poética, abre um novo caminho de significações e de metaforizações, assim como outras rotas e itinerâncias.
O cabo-verdiano “Silvenius”, ancestral e moderno, cada vez mais mundo”, escreve a editora Rosa de Porcelana.
O lançamento, na cidade da Praia, acontece esta quinta-feira, 14, no novo campus da Universidade de Cabo Verde, no Parlmarejo Grande.
Acontece no quadro da homenagem ao poeta, numa iniciativa da Presidência da República, da Uni-CV e da Rosa de Porcelana. Jorge Carlos Fonseca, amigo e Presidente da República em fim de mandato, será um dos oradores da cerimónia.
Arménio Adroaldo Vieira e Silva nasceu a 24 de Janeiro de 1941, na Praia, cidade presente em boa parte da sua poesia.
Dono de uma obra inconfundível, cabo-verdiana e ao mesmo tempo universal, Vieira publicou diversos livros e colaborou em várias publicações. Em 2009 foi-lhe atribuído o Prémio Camões, a mais importante distinção literária na língua portuguesa.
Foi o primeiro Camões conquistado por um cabo-verdiano.
Helena Buescu, ensaísta que presidiu ao júri, afirmou na altura que Arménio Vieira “produziu uma obra que merece entrar para um certo cânone das literaturas em língua portuguesa”. O seu conterrâneo Germano Almeida, também Prémio Camões (2018), definiu-o como “um dos maiores poetas” do arquipélago.
Membro da Academia Cabo-verdiana de Letras, iniciado nas lides literárias na Geração Seló, aos 80 anos, Arménio Vieira é autor de onze livros publicados, entre os quais Poemas (1980) Sequelas do Brumário” (2014), Fantasmas e Fantasias do Brumário (2015), Silvenius – Antologia Poética (2016) e o recente Safras de um triste outono (2021).
Vieira é também autor de dois romances, Eleito do Sol (1989) e No Inferno (1999).
O seu mais recente livro, Safras de um triste outono, é considerado por Zetho Gonçalves, autor luso-angolano, como “um livro de esconjuro e de catarse, arquitectado sobre uma vasta panóplia de motivos, ritmos, imagens e recorrências estilísticas, num jogo polifónico de meditação inquiridora sobre a finitude e a morte, ou os desvairados processos da própria criação poética, mas também de celebração da Vida e suas contingências em permanente estado de Humor rejubilante e libertário, nos seus múltiplos cambiantes”, entre outras considerações.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 737, de 14 de Outubro de 2021