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Política

Falta de transparência no contrato com a Bestfly

O contrato de concessão “emergencial” entre o Governo e a Bestfly, que A NAÇÃO teve acesso, deixa muitas pontas soltas e levanta, uma vez mais, a velha questão da transparência e accountability nos negócios públicos. Está-se diante de mais um contrato por ajuste directo com uma companhia estrangeira, quando se poderia aproveitar a TACV, que continua a existir e com tripulação experiente inactiva e a receber salário em casa, para realizar voos domésticos.

O primeiro-ministro anunciou, no encerramento do debate do Orçamento do Estado para 2022, na semana passada, a decisão do Governo em transformar o “contrato emergencial”, estabelecido com a Bestfly, Angola, em “contrato de obrigação de serviço público definitivo e regular”.

Isto significa que o novo contrato será feito também por ajuste directo sem que haja informações públicas relativas ao cumprimento da concessão emergencial.

Mas também significa que a Agência de Aviação Civil (AAC) e a Comissão de Acompanhamento não produziram os competentes pareceres ou que o Governo tenha realizado igualmente uma auditoria independente, conforme previsto na Cláusula 19ª do mesmo contrato, a que A NAÇÃO teve acesso.

Desvios e incongruências
Com isso tudo, coloca-se mais uma vez um sério problema de transparência e de accountability nos negócios públicos, tendo a TACV como centro. Da consulta do documento, se constata, com efeito, que o mesmo padece de vários desvios e incongruências.

Em primeiro lugar, o Governo não demonstra ter consultado mais do que uma operadora de transportes aéreos para a assinatura do negócio. Fê-lo por ajuste directo a uma operadora de aviação executiva, de Angola, o que pode significar que atribuiu o contrato a uma companhia dentro do círculo de relações próximas e não mediante uma verdadeira consulta do mercado.

Ainda por cima, a parte contratada não possui uma frota para no imediato alocar à concessão o número de aeronaves suficientes para assegurar um serviço de qualidade e sem interrupção nem falhas de serviço.
Bestfly a operar com apenas um avião

Contrariando o previsto no próprio contrato, a Bestfly tem falhado e interrompido a prestação do serviço de transporte aéreo, claramente porque opera, até hoje, com uma única aeronave – uma segunda, que já chegou ao país, aguarda autorização para voar no território cabo-verdiano.

Ou seja, seis meses após a assinatura do Contrato de Concessão, o Governo não foi capaz de exigir à concessionária a melhoria dos níveis de serviço.

Outro aspecto a ter em conta é que um “contrato de concessão emergencial” de serviço de transporte aéreo não deveria, em circunstância alguma, ser passível de renovação tácita. Isto é, a decisão da sua renovação deveria assentar-se em critérios transparentes de boa execução e no grau de satisfação dos utentes.

Além disso, da leitura do contrato, A NAÇÃO fica igualmente sem perceber como é que uma “concessão emergencial” possa ser transformada, sem qualquer avaliação, “numa concessão regular e durável”, uma vez que, durante os seis meses, não conseguiu, contrariamente ao estabelecido no acordado, dotar a concessão de uma frota adequada e suficiente para assegurar a prestação de serviços de boa qualidade aos utentes dos transportes inter-ilhas.

Pressa inimiga da perfeição: contrato com erros graves
O contrato entre o Estado e a Bestfly parece ter sido escrito à pressa. Apresenta imensos erros e gralhas, algumas graves, repetição de cláusulas com o mesmo conteúdo, embora assinado por dois ministros (com um director-geral, era dispensável, pois existe uma figura chamada delegação de competências).

A somar a isso, o Contrato não tem o dia da sua assinatura, sabe-se que foi num certo dia no mês de “Maio”. Em suma, são demasiadas desatenções para um importante contrato público, envolvendo milhares de contos.
Ao que tudo indica, o Governo parece não ter aprendido com os erros cometidos com o Icelandair – qualquer um pode contratualizar serviços com o Estado de Cabo Verde porque não tem de cumprir os compromissos assumidos.

No caso da Bestfly, a pergunta é: em que medida o Contrato de Concessão tem sido cumprido?

Cláusulas do Contrato de Concessão Emergencial
Além disso, a verificação rigorosa do grau de cumprimento do Contrato de Concessão Emergencial cuja vigência iniciou em “Maio”, é da responsabilidade da Agência da Aviação Civil (AAC), nos termos da alínea q), da sua Cláusula 13º.

O modelo de relatório operacional a ser elaborado pela concessionária (BestFly) e submetida à AAC é apresentado no Anexo III ao presente Contrato. O conteúdo do anexo é muito lacunar e omisso em relação a vários aspectos essenciais para o relatório desse teor.

No entanto, a alínea q) do artigo 13º, dispõe que deve ser submetido trimestralmente à Agência da Aviação Civil, devendo dele constar os elementos que permitam a verificação das obrigações constantes do Contrato de Concessão.

A Cláusula 27ª também atribui à AAC, em articulação com o concedente, a responsabilidade de fiscalizar a implementação do Contrato de Concessão.

A Cláusula 12º também prevê a criação de uma Comissão de Seguimento das obrigações de serviço público e a 19ª consagra o direito da Concedente em realizar auditorias e inspeções às atividades da Concessionária, diretamente ou por meio de terceiros, sempre que entender necessário, ficando a Concessionária sujeira ao dever de colaboração.

O Contrato acaba por não ser claro quanto à concatenação de todos os mecanismos de seguimento, fiscalização e avaliação do Contrato de Concessão para que seja eficaz e eficiente.

Por exemplo, não desenvolve as responsabilidades da Comissão de Seguimento, nem nas cláusulas do Contrato nem nos anexos, o que dificulta a compreensão cabal do modelo de monitorização e fiscalização pretendido.

O ministro dos Transportes tem afirmado publicamente que até à data nenhuma indemnização foi reclamada pela Concessionária ao Concedente, o que se espera querer dizer que todos os mecanismos de acompanhamento, fiscalização e avaliação da Concessão têm funcionado, que a Concessionária tem apresentado os relatórios operacionais e tem sido auditada e as operações são rentáveis, dispensando por isso o Concedente do pagamento de qualquer indemnização compensatória.

Cartas marcadas
É conhecido o contexto em que o Governo firmou o Contrato de Concessão, dito emergencial, com a Bestfly Aircraft Management, operadora aérea, licenciada em Angola, para o transporte de carga e passageiros, por ajuste directo.

É igualmente do domínio público que, à data da assinatura do contrato, a Bestfly Aircraft Management não detinha qualquer tipo de licenciamento junto das autoridades cabo-verdianas, não obstante se saber também que desde 2014 que essa operadora angolana vinha almejando a obtenção do Certificado de Operador Aéreo em Cabo Verde.

O certo é que o Governo cabo-verdiano alegou urgência e interesse público para o ajuste directo do contrato de concessão de transporte aéreo doméstico, com base nos seguintes factos:

“O impacto da Covid-19 nos transportes aéreos no mundo e em Cabo Verde, com uma redução a rondar os 70%”; “A ameaça de disrupção de ligações aéreas inter-ilhas” com eventual paralisação das atividades da única companhia aérea operando no mercado doméstico”.

Desentendimentos com a TICV, (ex-Binter Cabo Verde)
Na verdade, este contrato com a BestFly surge na decorrência dos desentendimentos entre a única operadora doméstica, a TICV, SA, (ex-Binter Cabo Verde), a AAC em vários momentos e o Governo, na fase derradeira.

É de recordar também que os motivos de tais desentendimentos nunca foram cabalmente esclarecidos. Nem pela TICV, SA, nem pela AAC, e muito menos pelo Governo.

No preâmbulo do Contrato com a Bestfly Aircraft Management lê-se que o mesmo duraria “enquanto não for possível assegurar a estabilidade do serviço de transporte aéreo interno”, sendo certo que o Governo nunca informou aos cabo-verdianos, nem ao Parlamento, que medidas estavam em curso para que se pudesse “assegurar a estabilidade do serviço de transporte aéreo interno”.

Analisando os documentos submetidos pelo Governo à Assembleia Nacional, na sequência do requerimento submetido pelo Grupo Parlamentar do PAICV à plenária e aprovado por unanimidade, percebe-se que o Governo convidou apenas a Bestfly Aircraft Management para prestar esse serviço.

Por que motivo o Governo não recorreu à TACV?
A questão que se coloca é se a Bestfly era a única operadora no mundo interessada, e disponível, num contexto em que várias companhias aéreas tinham aviões e tripulações disponíveis, precisamente devido à redução da atividade aérea e se as condições contratualizadas com a Bestfly são as que melhor serviam os interesses de Cabo Verde.

Outra questão que não se cala é por que motivo o Governo não lançou mãos da TACV, SA, já que esta continua a existir, com tripulação treinada e experiente em operações inter-ilhas inactiva e a receber salário em casa.

Isto quando a própria TACV poderia contratar aviões em regime de dry leasing e assegurando as ligações inter-ilhas, uma vez que a Bestfly não tinha os aparelhos necessários para assegurar essa operação emergencial e teve de recorrer a uma operação de afretamento no mercado?

Também ao assinar um Contrato de Concessão Emergencial com a Bestfly, uma empresa especializada em aviação executiva e não em aviação comercial regular, sem nenhuma experiência de transportes aéreos num arquipélago, sabendo que ela, apesar de ter criado uma Bestfly cabo-verdiana, nunca conseguira obter o certificado COA .

A verdade, nestes seis meses, a Bestfly acabou por adquirir a TICV e anunciou o fim das operações da Bestfly, apesar de a única aeronave em serviço continuar a ostentar essa marca.

Na prática, a confusão é tal que, neste momento, ninguém sabe ao certo quem é a operadora dos transportes internos: se a Bestfly ou a TICV?

Também, ao contrário do prometido aquando da chegada da companhia angolana, esta acabou por dispensar mais de seis dezenas de funcionários. Uma medida anunciada dois ou três dias depois dos resultados das eleições presidenciais que deram a vitória a José Maria Neves, contra Carlos Veiga e outros candidatos.

Ou seja, salvo alguma coincidência, a gestão do despedimento dos funcionários da TICV teve claramente um cunho político. Ela foi feita, ao que tudo indica, para não prejudicar o candidato presidencial apoiado pelo Governo e o partido que o sustenta, MpD.

Lições por aprender com o passado

É quase unânime, entre os cabo-verdianos, que Cabo Verde recuou várias décadas no sector dos transportes aéreos. Viajar, hoje, entre as ilhas e não só, está cada dia mais difícil.

Neste imbróglio, o Governo continua disposto a suportar milhares de contos de dívidas da TACV, sem voar, com centenas de trabalhadores inactivos a receber em casa.

“Numa pequena economia insular que precisa retomar o ritmo de desenvolvimento, crescer e criar emprego, as condições de mobilidade e conetividade são essenciais”, realça um especialista contactado pelo A NAÇÃO.

“Definitivamente, o Governo não extrai lições das más experiências anteriores, quer com a Binter quer com a Icelandair. Mantém-se na mesma toada; ajuste directo, processo de contratação descuidada, transformação de um contrato emergencial em definitivo sem que a concessionária tenha dado provas de capacidade e qualidade, falta de transparência, inexistência de dados e informações credíveis para que os cidadãos possam compreender quem ganha o quê, em mais um contrato público”, enfatizou.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 744, de 02 de Dezembro de 2021

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