PUB

Convidados

Uma periferia invisível ou Outros Bairros?

Por: Nuno Flores

Após três anos da Iniciativa Outros Bairros (IOB), nomeadamente na realização dos planos de intervenção das zonas de Alto de Bomba, Fernando Pó, Covada de Bruxa e das obras, já realizadas, no Alto de Bomba surgiu claramente uma nova semântica nos discursos políticos e técnicos no que concerne à urbanização.

Os pressupostos conceptuais e de atuação da equipa IOB foram forjados por uma metodologia de escuta do contexto destas zonas que incorpora o desenho das intervenções. E assim, se, por um lado, expressões como modo de vida; voz da população; ou direito à cidade emergiram destes pressupostos a custo de negociações diárias, por outro lado, expressões como Nha casa é nha palácio; Antes da eleição nós eh gente, depois indigente; Antes de Kubaka um toxa k política era só partidos (k nunca um krix sabé). Grinhassim um tita sabe kel ta existi pa nó luta pa nós direitos; conquistaram lugares de media, de fala e de luta que evidenciam a resistência de décadas dos(as) cidadã(o)s destas zonas da periferia do Mindelo.   

Sugeriu-se, então, na linha defendida por Ananya Roy, um olhar atento à urbanização como um modo em vez de um modelo, algo que é orgânico e em plena dinâmica coletiva, em oposição a algo pré-estabelecido e pré-definido. Da mesma forma, naquilo que Raquel Rolnik designa de descolonização do território, dá-se a deslocação do investimento público para áreas onde geralmente não acontece, fomentando uma maior distribuição de recursos públicos e potenciando a especificidade do modo de vida do lugar, construindo-se, enfim, também novas epistemologias sobre a cidade e o território.

Nas antípodas de habituais estratégias públicas centradas apenas em obras de infraestrutura, sem dúvida necessárias dada a debilidade física dos territórios estudados, potenciaram-se relações sociais que marcaram, essas sim, a consciencialização do lugar da periferia e do lugar dos(as) moradores(as) da periferia.

Enfrentaram-se, sobretudo, conflitos entre as já conhecidas e fracassadas estratégias hegemónicas de construção de habitação social em massa como o Casa Para Todos ou, contra as mais atuais correntes científicas, o PLANAH 2021-30 e a estratégia da IOB que, além da reabilitação do espaço público, discute no terreno o próximo passo, avalia-o e confere sentido ao que já existe.

Perpassar este tempo, é, por exemplo, pensar na cumplicidade vivida pelo grupo de calceteiras Amdjer na Obra. Calcetar cerca de 3000 m2 do bairro que habitam, Alto de Bomba, abriu a dez mulher uma possibilidade de afirmação e de organização pessoal e coletiva. No entanto, é também partilhar as angústias vividas pelo grupo sobretudo em dois momentos marcantes. O primeiro, quando demitidas, de um dia para o outro, de uma obra pública e promovida pelo Estado, a reabilitação da marginal da baia das gatas, por reclamarem ganhar apenas mil escudos por dia em vez de serem pagas ao metro quadrado; e o segundo, quando impossibilitadas pelo próprio empreiteiro de calcetar no empreendimento de habitação social da Portelinha, uma obra também do Estado, apenas por serem mulheres.

O desenho da IOB, feito com clara consciência da necessidade de reparar a violência das políticas urbanas e de habitação até hoje desenhadas numa cidade construída, igualmente, a partir da violência colonial, parece agora, ter fracassado. A interrupção da IOB por falta de financiamento, assim se lê fracassada. No entanto, se para nós, técnicos que vivemos este tempo mergulhados no Alto de Bomba, é frustrante não correspondermos à esperança aberta aos(às) moradores(as) das três zonas, uma vez que o esvaziamento orçamental que o governo colocou a IOB não permitirá realizar cerca de 80% do que estava previsto, é, mais do que tudo, inquietante saber-se que a IOB fracassa pelo conformismo de poderes públicos incapazes de se abrirem à participação, à proximidade da vida real e concreta dos(as) cidadã(o)s e a uma nova estratégia financeira proposta em 2021 para a adequar aos impactos do atual cenário pandémico.

O conformismo e determinismo da macropolítica que condiciona a micropolítica, em nada é semelhante ao movimento que a IOB construiu. Este último, não só possibilitou o alargamento das relações sociais de moradores(as) que são agora menos invisíveis, como deu oportunidade a mudanças epistemológicas que, a breve trecho, poderemos perspetivar melhor.

E se todo o processo contribuiu para a visibilidade destes territórios a recente notícia de que a luta das calceteiras lhes abriu o acesso a trabalhar na Camara Municipal de São Vicente representa, para nós, a maior conquista que pela via da intervenção urbana apareceu. O primado da dignidade humana, a mobilização entre vizinhos, a união de sete mulheres, a construção de comunidade organizada a partir da construção do chão com as próprias mãos de quem, há décadas, faz tudo no seu próprio lugar.

Nós, equipa técnica comprometida e cúmplice desta ação coletiva sabemos, agora, que não cabe à IOB qualquer financiamento para obras nem para a ativação do espaço público em 2022, tornando-se, por isso, sem dúvida imperativa a nossa recusa pela continuação de funções dada a inviabilidade do futuro conforme as premissas anteriormente discutidas e acordadas com os moradores.

A impossibilidade de levar a cabo os compromissos assumidos coletivamente desde o início do trabalho em Março de 2019 torna os territórios da periferia, de novo, reféns da política e impossibilitados da utopia de serem pensados a partir do modo de vida de quem os faz.

Se esse modo de vida foi o fator de potência porque dele surgiram ações relacionadas com hip-hop na residência artística Kubaka; os saberes mostrados na residência artística Dsinrascá; a xilogravura na residência artística do encontro Somá na Ponta; ou o tão falado calcetamento que deu origem ao grupo Amdjer na Obra dele também surgem angústias relacionadas, por exemplo, com o acesso, até hoje negado, à legalização da terra e das casas; com o sonho adiado de uma iluminação pública capaz de melhorar a convivência e a mobilidade da zona; ou com o sonho adiado da água canalizada porque o depósito prometido nunca foi construido.

Apenas a cumplicidade desse modo de vida, que se ganha estando nos lugares, neste caso, diariamente ao lado moradores(as) e trabalhadores(as) que puderam organizar melhor a sua vida durante os 18 meses de obra e adiar a luta diária pela sobrevivência, pelo menos, para amanhã, permite-nos, agora, ser conscientes desse dia a dia tão angustiante e urgente, ao contrário de quem, distante dessa realidade, insiste nos grandes planos territoriais que excluem, por não acompanharem a velocidade da urbanização, e determinam áreas que, por norma, remetem os cidadãos mais pobres para a condição de ilegais ou clandestinos.

Do futuro resta-nos esperar por saber, sobretudo, três coisas. Primeiro, se os cidadãos de Alto de Bomba – único dos três bairros que teve algumas obras – voltarão à invisibilidade anterior a 2019; segundo, se, de súbito, assim como as calceteiras outras sementes desabrocharão e aparecerão novas vozes; e, terceiro, se nas desiguais disputas por financiamentos internacionais, provenientes sobretudo da China, Estados Unidos e União Europeia, os poderes públicos leem, por fim, os princípios orientadores da IOB, entregues ao Ministério das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação em setembro de 2021, e refletem sobre a mais valia do conhecimento construído localmente como alternativa de ação e conteúdo possível para a produção de politicas públicas para o território construídas diretamente com a população. Alternativa, essa, que saiba perguntar, saia do obvio, se abra à reabilitação urbana e à escuta de todas as zonas, projete o futuro de uma periferia cujo peso no território é cada vez mais relevante porque é lá que está a maioria da população e da vida das cidades onde a urbanização acontece mais rápido que o planeamento.    

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 747, de 23 de Dezembro de 2021

PUB

PUB

PUB

To Top