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Quem guarda os guardas?

Por: Germano Almeida

Os zelosos guardiões do nosso Estado de Direito Democrático já decidiram que vão levar Amadeu Oliveira a julgamento pelo crime de atentado ao Estado de Direito.

Em princípio, deveria ser só depois de obtido um despacho de pronuncia definitiva que se ficaria a saber se um determinado réu deve ou não ir a julgamento. Porém, o comunicado emitido, creio que pela Procuradoria-Geral, foi peremptório no sentido de afirmar que AO vai a julgamento. A nossa sorte é estarmos constantemente a ouvir gritar que vivemos num estado de direito democrático, de contrário até poderíamos presumir estarmos entregues a um estado policial totalitário.

Todos nós estamos dispostos a concordar e aceitar que haja guardiões, seja da Constituição, seja do Estado de Direito, seja de seja o que for. Porém, uma pergunta histórica mas urgente impõe, e cada dia com mais acutilância: QUEM GUARDA OS GUARDAS?

  Porque esta é realmente a vexata questio que atravessa todo esse processo, e que, diga-se de passagem, devia preocupar e indignar todos que se ocupam de questões relacionadas com o direito: QUEM GUARDA OS NOSSOS GUARDIÕES? E  ver a Ordem dos Advogados indiferente a essa barbaridade porque Amadeu Oliveira não paga as quotas (devidas, na minha opinião) não abona a favor de uma instituição que quer reivindicar pergaminhos.

  Reivindicamos viver num Estado de Direito. Porém, logo esquecemos que o estado de direito tem conteúdo, tem normas, muitas delas exigentes. E neste caso concreto, são os guardas desses conteúdos, os tribunais, que se mostram os seus principais e mais tenazes violadores.

  O despacho do Tribunal da Relação de Barlavento que determinou a prisão de Amadeu Oliveira, diz o seguinte: “Através da Procuradoria-Geral da República, foi solicitado à Assembleia Nacional e concedido levantamento de imunidade parlamentar ao Deputado da Nação Amadeu Oliveira, bem como autorizada a sua detenção para que, enquanto tal, pudesse responder perante este tribunal, por alegado envolvimento na prática de crime de responsabilidade de titular de cargo político.”

Portanto temos que o PGR solicitou à Assembleia Nacional o levantamento da imunidade do deputado Amadeu Oliveira e autorização para ele ser detido fora de flagrante delito. A AN concedeu e ao desembarcar em S. Vicente o deputado foi preso. E aí começou a sua segunda saga.

  Diz-se que estamos num Estado de Direito, todos nós queremos defender e preservar esse Estado de Direito. Inclusivamente o Amadeu Oliveira foi indiciariamente acusado, no despacho do juiz desembargador da Relação de Barlavento, de um crime de atentado contra o Estado de Direito. Só que nessa altura ainda não havia qualquer tipo de processo contra o deputado Amadeu Oliveira.

  Imaginemos a cena: O PGR dirige um requerimento ao PAN a pedir autorização para prender um deputado. O que é que o deputado fez, pergunta o PAN curioso. Ah, a gente acha que ele cometeu um crime de atentado contra o Estado de Direito, mas ainda não sabemos bem, ainda não temos processo. Então está bem, prendem-no na mesma e concluam lá o processo!

Se não foi assim, perfeitamente que podia ter sido. Porque o escândalo é ter-se pedido a prisão de um deputado à Assembleia Nacional através de um simples requerimento e ter isso sido aceite como legal.

 Quod non est in actis, non est in mundo , “o que não está nos autos não está no mundo”, aprende-se isso nas primeiras aulas de processo penal. Isto e, teria primeiro que ter havido um processo crime contra Amadeu, ele teria que ter sido pronunciado nesse processo (a pronúncia é um pré-julgamento; em rigor, quem foi pronunciado acaba condenado)e só após a pronúncia o MP pedir a suspensão de mandato do deputado. Concedamos que o PAN podia não saber isso; já não o PGR! E o juiz da Relação, por maioria de razão. Parece, pois, ter havido uma conspiração de membros de órgãos de soberania para calar Amadeu Oliveira.

É claro que podemos ser tentados a dizer, o peixe morre pela boca!, e Amadeu não teve qualquer acanhamento em propalar os feitos da sua autoria que sobretudo envergonharam o aparente rigor dos tribunais. Porém, mesmo que tivesse realmente cometido um crime contra estado de direito, ou qualquer outro, esse crime precisava primeiro ser denunciado, depois  instruído, acusado, levado a um juiz para o avaliar e pronunciar, isto é, decidir se os elementos factuais carreados no processo se configuram como um crime, e só depois disso tudo feito e concluído que há crime, deve finalmente ser levado à Assembleia Nacional com vista a suspender o deputado para efeitos de julgamento. Porém, o que se fez foi aceitar a voz pública como processo, e de forma mais gravosa, quanto é certo que levado a cabo por estrénuos defensores do Estado de Direito. Afirmo, pois, que Amadeu Oliveira está mal preso e essa é uma situação que não devia deixar indiferente ninguém que conheça minimamente os princípios do direito.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 747, de 23 de Dezembro de 2021

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