PUB

Opinião

Toponímia

Por: Carlos Carvalho

Em tempos, e na verdade ainda hoje, era/é difícil um cabo-verdiano normal dizer o nome da rua onde mora. Se isto é verdade para o comum cabo-verdiano, no geral, é-o mais quando se trata do capitalino, do praiense.

A minha rua na Mei di Txada tem nome… mas, paradoxalmente, eu que não sou nenhum descuidado nestas coisas… a hora que vos escrevo esta reflexão… não sei como se chama a rua.

E tenho quase a certeza que boa parte de quem vá/está a ler o que aqui escrevo, não sabe o nome da rua onde mora. Pode até ser que a rua tenha “dono”, mas na maioria das vezes se tem não se consegue ver onde está sinalizado.

Há uns tempos, vi-me “à nora” para encontrar o nome duma rua onde passo literalmente todos os dias. Para quem não leu meu artigo sobre esta rua, trata-se de uma onde alguém teve a peregrina ideia de encaixar um busto de Ghandi. A rua, que afinal não era rua, mas sim um largo, se chama Largo da Europa. E lá ainda está o herói terceiro-mundista xintadu riba dun kusa feeeeeiu… inda pur sima sen ses okulus, imagem de marca do ilustre indiano.

Pedira, na altura, ao recém-eleito PR da CMP que livre o homem dessa afronta. Mas, parece que o Pr. ainda não viu o Ghandi, não viu/leu meu pedido ou ainda não tem tempo para “coisa menor” como este meu pedido.

Entre-os-rios

Noutro dia, estava sakedu numa esquina, nem sei o que fazia lá, levanto os olhos, como que alguém me pediu que o fizesse, e dei com uma rua que se chama “Entre os Rios”.

Desatei-me a rir.

Não!! Não pode ser!! Eu… moro perto de uma rua que se chama “Entre os Rios” sem saber.

Pus-me a pensar:

Ma dexa estar k kauberdianu é kriativu. Ago Rua Entre os Rios… nes Kau Berdi di nos… dja ka mutu Berdi… Ago k rio k tudu…s inónimo de água abundante para dar Berdi!!!!

Quando perguntei a colegas e amigos se sabiam onde fica a famosa rua, claro que ninguém sabia. Não podiam saber… porque, não passa pela cabeça do cabo-verdiano normal, que nossas ruas que não têm nome, venha logo a haver uma que se chama… Entre os Rios.

Mas, lá está. Quem quiser saber onde fica é só ir ao moderno pai dos burros, e dos preguiçosos também, Mr. Google. Irá “concertezamenti”, como diz meu amigo Tanta, encontrá-la.

Minha rua

Mas, dizia que moro numa rua de que desconheço o nome. Deve ter um nome “tuga” qualquer. Ora, nessa rua viveu durante largos anos o Combatente de Liberdade da Pátria, o falecido Comandante Baró, de seu nome próprio Joaquim Pedro Silva.

Caboverdiano, natural di Djarmai, faz parte da curta lista de jovens que deixaram uma vida que podia ser tranquila, debaixo da manta da administração colonial, para ir meter nessa aventura de livrar seu povo da fome e da miséria e de o ver a viver, com dignidade, num país livre e independente… donu di si propi distinu.

Como o comum “maiense”, a família e amigos não se orgulhariam de ver reconhecido esse herói de Cabo Verde!!

Na mesma rua também morou um conhecidíssimo empresário nacional, talvez o 1° a nela morar e cuja marca ainda lá se encontra, e um ilustre ex-governante e médico. Até o nosso actual PR chegou a morar na nossa rua!! 

Qualquer dos dois primeiros poderia perfeitamente merecer a honra de dar o nome a Rua.

Exemplos do género com certeza abundam na nossa cidade-capital e noutras cidades e localidades deste nosso petit pays, de que gostamos muito, como cantou Cesária.

Riba praia

Há dias, para fazer um trabalho, fui obrigado a andar todos os becos e belecos di Riba-Praia, não platô!, Riba Praia, centro histórico de nossa bela, mas… mal-amada cidade-capital.

Não dá para acreditar… mas ainda 90% dos donos das ruas do Centro Histórico de nossa cidade-capital é “tuga”!!! Há ruas cuja denominação, estou certo, 90% dos cabo-verdianos desconhece… es ka sabi é kenha. So uns X “gatos pingados” k ta studa nós storia na tenpu di tuga sabe quem são!!

Cito só alguns: Rua Neves Ferreira, Rua General Barros (Rua do Quartel Jaime Mota!!!), Rua Tenente Valadim, Rua Serpa Pinto, etc., etc..

Mas, mesmo no período colonial, houve coragem para mudar nomes dalgumas ruas, adequando-as à realidade dos tempos (coloniais).    

Todos estes senhores são ilustres cidadãos portugueses que a maioria dos cabo-verdianos, hoje, não sabe quem é. 

Há casos caricatos de, por exemplo, a sede do PAICV ficar na Rua Abílio Monteiro Macedo (vá que não vá já que este foi um ilustre cabo-verdiano); ou ainda, heróis da Luta de Libertação morarem nas ruas de antigos governadores. 

Tudo isto, mesmo depois de quase 50 anos de país independente!!!

Avenida Amílcar Cabral e Rua Pantchol (João de Deus Lopes da Silva) são dois ilustres “desconhecidos” cabo-verdianos que constam da toponímia di Riba Praia.

Ah, sim!! Também ainda resistiu/ainda resiste a Rua rebatizada de 5 de Julho.

Mesmo a igualmente batizada no pós-independência Praça 12 de Setembro, onde fica a mais famosa Esplanada da capital, foi de novo rebatizada de Alexandre de Albuquerque, com seu digno bustinho, para (re)afirmarmos nossa lealdade/fidelidade/reconhecimento/orgulho de termos pertencido ao vasto império colonial, do Minho a Timor, passando pelas Áfricas e Américas todas… e… aos nossos ilustres (ex)senhores!!!.

Forti tristi!!!

Sei que muitos, e não são poucos, dirão:

Pronto!, lá vem este com o revisionismo!!

Ago tra nomi di nós heróis tugas (que, repito, a maioria não conhece) … pa po kauberdianu!!

Desses heróis tugas, cujos nomes abundam nas ruas di Riba Praia, alguns nem dois anos cá passaram. E de suas passagens… quase não reza a história.

Cabo-verdianos, que ainda se lembram desses ilustres tugas, hoje, nem chegam a uma dezena! Mas estas dezenas de cabo-verdianos tendem a nos impor essa canga… século entra… século sai!!!

Pior!!! Impor a uma sociedade futura essa canga histórica que ninguém saberá explicar como isso tudo sucedeu.

Temos a obrigação de todos reflectirmos sobre esta situação. Não podemos, nem devemos impingir aos nossos filhos, netos e bisnetos, esse complexo de inferioridade nosso.

Diogo Gomes

Em tempos, vi um jovem assumir uma atitude digna e corajosa, entregando na AN um abaixo-assinado sobre a possibilidade de se remover a estátua do Senhor Diogo Gomes do local onde se encontra.

Conheci o jovem e tivemos, um final de semana, uma longa e interessante discussão. Falamos sobre o assunto. Entendi perfeitamente sua démarche!!

Do documento entregue, ninguém sabe que destino teve. Porém, estou quase certo jaz nalgum gabinete, djuntu k uns munti papeladas. Nem um deputado – um quem de direito – pegou naquele documento para dar-lhe um destino, para o bem ou para o mal. 

Já agora, seria interessante, via referendum ou por outra via científica qualquer, perguntarmos aos cabo-verdianos e/ou aos capitalinos e/ou aos santiaguenses o que pensam de quem deve ficar Riba Praia: Cabral ou Diogo??

Fica a sugestão ao nosso Francisco e a sua Câmara.

Seria interessante, pois, da resposta, saberíamos com certeza por onde anda a cabeça do cabo-verdiano, em pelo século XXI, e por onde andará nos séculos vindouros!!

Futuro

Posto tudo o dito…

Se nos impõe a coragem de, enquanto povo e país livre e independente, encararmos e assumirmos nossa história.

Se nos impõe a coragem de sermos um povo digno e dono de nosso próprio destino.

Se nos impõe, pois, honrarmos as memorias de homens e mulheres, da política, da cultura, do desporto, etc., heróis destes dez grãozinhos de terra, como cantou o poeta…

Dando nomes a avenidas, principais ruas, portos, aeroportos de nossas cidades…

Erigindo monumentos, dignos, estátuas e bustos…em memória a esses ilustres filhos de nossa terra.

Sem quaisquer complexos… 

Este o desafio que fica aos responsáveis nacionais e locais destas (des)afortunadas ilhas…pois…

Tenho fé de um dia ver este meu sonho concretizar-se, estando esses heróis ainda vivos.

Para a reflexão dos cabo-verdianos…nas ilhas e na diáspora…sobre nossa história…sobre nosso passado doloroso…e sobre nosso futuro!!

Tenho dito.

Praia, 02/2022.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 754, de 10 de Fevereiro de 2022

PUB

PUB

PUB

To Top