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África, o futuro da humanidade O caso de Cabo Verde

Por: Odair Barros Varela*

Se diversos estudos académicos apontam o continente africano como o berço da civilização e da modernidade (Bernal 1987, Barros-Varela, 2019), é também cada vez mais assente de que se depositam grandes esperanças nesta região para o que será o futuro a médio e longo prazo da humanidade.

Mas, para isso África terá de apresentar soluções robustas para enfrentar os desafios que emperram os seus processos de integração política, económica, social e cultural. Existem diversos desafios e propostas de soluções, mas devido à exiguidade do espaço destaco apenas alguns.

Neste momento, o “grande desafio” passa por aumentar a percentagem da população vacinada contra a covid-19, que ainda é muito baixa, no sentido libertar todas as energias em prol dos processos de integração em curso. E para aumentar a taxa de vacinação é necessário, a curto e médio prazo, uma forte aposta na capacidade interna de produção de vacinas. Felizmente, alguns passos estão sendo dados neste sentido, mas ainda são tímidos.

A longo prazo, a integração na área da saúde visando enfrentar as epidemias endémicas do continente e as pandemias que irão surgir no futuro passa necessariamente pelo incremento do investimento nas indústrias farmacêuticas e de biotecnologia locais com o primacial objetivo de proteger o recurso mais valioso do continente que é a sua juventude demográfica e não as commodities como se quer fazer crer.

A África é a maior reserva demográfica do mundo, e até 2050 vai registar um aumento considerável da sua população tornando o continente, no concernente à demografia, o futuro da humanidade. Do meu ponto de vista, a juventude do continente, e os movimentos sociais a ela atrelados, podem constituir uma grande força de pressão sobre as classes políticas no sentido de estas procederem a reformas domésticas que se revelarem necessárias à implementação das reformas regionais.

Novas lideranças e autonomia industrial e tecnológica

Para além de algumas lideranças atuais mais performantes, de entre as quais se destacam o Presidente do Ruanda, o Paul Kagame, e o antigo presidente da Comissão Económica para África, o bissau-guineense Carlos Lopes, e da força motriz de algumas potências regionais como a Nigéria, África do Sul, Angola, Egipto, Argélia, Marrocos, Senegal, Gana e Costa do Marfim, existem condições para a emergência de novas lideranças africanas que constituirão os alicerces da integração regional.

Atrelado a este desafio surge um outro que é o de aumentar o grau de autonomia industrial e tecnológica no sentido de também incentivar a produção interna não só para fazer face às consequências nocivas da pandemia, mas também no sentido de reconfigurar a economia africana ainda bastante dependente da exportação de matérias-primas para as antigas potências coloniais pelo que a mudança desta estrutura económica extravertida se afigura como fundamental.

Criação da Zona do Comércio Livre em África

A criação da Zona do Comércio Livre em África, e que entrou em vigor a 1 de janeiro 2021, constitui um dos primeiros passos efetivos para a referida autonomia apesar de ela não ter sido pensada agora, mas sim desde a década de 40 e 50 do século passado, visando posteriormente a criação de um mercado comum.

Infelizmente tanto a defunta Organização da Unidade Africana (OUA) como a atual União Africana (UA) não conseguiram até então colocar em prática o desiderato de aumentar o grau de interligação e articulação entre os Estados visando o desenvolvimento do comércio e da economia no seu todo.

Vale a pena debruçarmo-nos um pouco sobre as principais razões para esse fracasso. O grande mérito da OUA foi conseguir extinguir a dependência colonial, mas, infelizmente, não conseguiu combater a dependência neocolonial personificadas no chamado Grupo de Monróvia composto pelas antigas colónias francesas, acompanhadas da Nigéria, da Etiópia, da Libéria e de Serra Leoa.

Kwame Nkrumah, um acérrimo partidário da integração económica

No continente africano, a referência teórica clássica e/ou pioneira da integração regional constitui a leitura pan-africanista realizada pelo primeiro presidente do Gana, o Kwame Nkrumah. Este, nas conferências realizadas e lideradas por ele na época, proclamava “a constituição de um vasto mercado comum em escala continental. A primeira conferência de 1948, por exemplo, clamava pela eliminação das barreiras aduaneiras e de outros entraves ao comércio dos Estados africanos entre si, assim como pela conclusão de acordos de pagamento multilaterais com o intuito de desenvolver as trocas económicas e lutar pela criação de um mercado comum” (HGA Vol. VIII, 2010, p. 875).

Portanto, mais do que uma integração política encarnada na sua defesa da criação dos “Estados Unidos de África”, Nkrumah era também um acérrimo partidário da integração económica.

Contudo, o pan-africanismo de Nkrumah e do chamado grupo de Casablanca (constituído em 1961 por Gana, Guiné [Conacri], Egipto, Mali, Marrocos, Líbia e o governo argelino no exílio), defende uma integração económica e política a nível continental e expressava reservas em respeito ao regionalismo ou a integração a partir das regiões e das federações regionais por considerar que estariam condicionadas pela forte influência das antigas potências coloniais, referindo-se ao caso do citado Grupo de Monróvia.

O processo de integração regional em África situa-se na mesma distância histórica que o ocorrido, por exemplo, na Europa. Sob a liderança do considerado campeão do pan-africanismo, o Nkrumah, esse processo teve como ponto de arranque simbólico a independência do Gana a 6 de março de 1957. 21 dias depois, a 25 de março de 1957, foi criada oficialmente a Comunidade Económica Europeia (CEE).

Dependência neocolonial

Para alguns autores como Asante e Chanaiwa (2010: 892) a criação da CEE e o estabelecimento do Acordo de Lomé constituíram um novo avatar do colonialismo e imperialismo.

Para eles, “o neocolonialismo praticado pela CEE consiste em consolidar e manter o statu quo que caracterizava a antiga ordem − as tradicionais estruturas de dependência estabelecidas após a conferência de Berlim de 1884 e as estruturas pós‑coloniais. Se, por sua vez, a conferência de Berlim instaurou a dominação colonial na África, o Tratado de Roma, criador da CEE, consagrou o advento do neocolonialismo e da dependência no continente. Eis a razão pela qual Nkrumah, o campeão do pan‑africanismo, imediatamente denunciou a CEE da qual subjazia, aos seus olhos, um novo modo de ‘colonialismo coletivo, futuramente mais potente e mais nocivo que os antigas desgraças das quais tentamos nos livrar’”.

Considero que esta dependência neocolonial leva, por exemplo, a que até recentemente, grande parte do orçamento da UA provir de parceiros externos. Isto faz com que os principais projetos e as lideranças africanas ainda estejam muito dependentes da vontade e financiamento externo, nomeadamente da UE.

As elites autocráticas que se mantiveram no poder depois das independências dos países africanos, em vez de focarem no desenvolvimento dos seus Estados e cuidarem efetivamente do bem-estar das suas populações, empenharam-se na manutenção do poder, no contexto de fortes pressões e disputas externas no contexto da guerra fria que originou o assassinato dos líderes africanos mais brilhantes, como Amílcar Cabral, Patrice Lumumba ou Thomas Sankara, e levou ao ostracismo de diversos outros, tendo os blocos em disputa a conivência e cumplicidade de figuras como Félix Houphouët-Boigny, Idi Amim ou Joseph-Desiré “Mobutu”, Hastings Kamuzu Banda, ou Ahmadou Babatoura Ahidjo.

Aposta na renovação das lideranças e na revolução do sistema económico

Conhecidas algumas das principais as causas para o défice de interligação e articulação entre os Estados africanos, é por mais evidente a necessidade de combater as continuidades coloniais e apostar na renovação das lideranças africanas como sendo alguns dos caminhos para evitar novos fracassos nos processos de integração regional.

Mas também se torna fundamental a desarticulação ou desconexação da ligação perversa que existe entre as economias africanas com as ex-metrópoles em que, por exemplo, ainda hoje se assiste à aberração de os grandes portos africanos estarem muito mais conectados com os portos europeus do que entre si.

Mas esta autêntica revolução do sistema económico africano que se preconiza vai depender do estabelecimento de mecanismos que visem coordenar as políticas económicas regionais e reduzir as vulnerabilidades aos choques externos.

Alguns autores têm-se debruçado sobre esse assunto como é o caso do economista bissau-guineense Degol Mendes (2014: 25) que analisa, no caso da CEDEAO, o processo de harmonização e coordenação de políticas económicas, nomeadamente os seus “projetos de harmonização de quadros legais e estatísticos relativos às finanças públicas e às atividades financeiras e monetárias, a harmonização de critérios de convergência e a coordenação mais estreita de políticas económicas (…), de conceder (…) maior credibilidade ao mecanismo de supervisão multilateral o que exige mais transparência. Esta por sua vez requer a disponibilidade de dados fiáveis e comparáveis no tempo e no espaço”.

Também ligado a este desafio do aumento da autonomia do continente, consideramos ser crucial um posicionamento inteligente perante a presente guerra comercial e tecnológica entre as duas superpotências mundiais, a China e os Estados Unidos da América (EUA), que procuram dominar não só o mercado global, mas também o próprio sistema-mundo. E perante essa disputa global a aposta na integração regional e no regionalismo deverá constituir uma estratégia para contrapor às consequências nocivas do aldeanismo derivado de impulsos hegemónicos e neo-imperiais não só destes como também de outros Estados mais próximos.

 

Integração regional de Cabo Verde: Classe política deve rever discurso marcadamente económico e comercial

Incidindo sobre o caso de Cabo Verde, o aprofundamento da sua participação nos processos de integração em curso no continente implica, particularmente por parte da sua classe política, a revisão do seu discurso, marcadamente económico e comercial, em torno da integração regional.

Por exemplo, o recente estudo sobre as especificidades de Cabo Verde na Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), encomendado pelo Governo, centra-se quase que exclusivamente em questões económicas como a moeda única, a taxa comunitária, a livre circulação de bens, a tarifa externa comum, o investimento e financiamento e a livre circulação de pessoas, direito de residência e estabelecimento.

Embora o teor do estudo não esteja disponível ao público, os elementos recolhidos na sua apresentação em março de 2021 deixam antever uma marginalização de outros processos de integração fundamentais para Cabo Verde nomeadamente no campo da saúde, educação e cultura, e que arrastam atrás de si a economia.

A título informativo, o Mestrado em Integração Regional Africana (MIRA) da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) tem produzido conhecimentos e teses sobre os diferentes processos de integração regional em curso procurando iluminar a pluralidade, a complexidade, a riqueza e os desafios e potencialidades que existem por detrás dos mesmos.

Grande desconhecimento dos cabo-verdianos em relação ao continente

Também em outros níveis de ensino é importante que se incorpore cada vez mais nos currículos aspetos e referências teóricas e metodológicas que espelhem de forma mais fidedigna a realidade plural de Cabo Verde e do continente com o objetivo de mitigar o grande desconhecimento e as mistificações que existem por parte dos cabo-verdianos em relação ao continente e deste em relação às ilhas derivado de diversas razões como a localização geográfica díspar, diferentes processos de colonização e de lutas/conquistas pelas independências, assim como a persistente mentalidade colonial.

O trabalho que tem sido feito no âmbito do MIRA, e por parte de outros investigadores e ativistas, testemunham também a necessidade de haver um maior diálogo entre o poder público e as universidades públicas e outros actores sociais no sentido de se produzir políticas públicas consequentes neste âmbito.

No caso concreto do ensino superior, para além das infraestruturas físicas é fundamental dotar as instituições de ferramentas intangíveis (altos níveis de oferta e de qualificação, recursos linguísticos, etc.) para aprofundar a integração regional nesse nível de ensino a fim de promover a mobilidade de estudantes e, professores e investigadores da região que, por arrastamento, irão fazer estremecer positivamente o PIB do país.

Resumidamente, pensamos que Cabo Verde deve participar com uma forte aposta na qualificação permanente da sua reduzida população no sentido de poder oferecer à região serviços na área da saúde, educação e cultura de alto valor acrescentado, na medida em que a outros níveis (indústria, comércio, etc.) existem outros players muito mais poderosos.

Combater e desmistificar a narrativa das “especificidades” de Cabo Verde

Por fim, consideramos ser essencial combater e desmistificar a narrativa das “especificidades” de Cabo Verde que alegadamente devem ser tidas em conta no processo de integração, na medida em que todos os Estados da região têm particularidades (uns são encravados, outros são insulares, a maioria tem fronteiras artificiais herdadas da colonização, etc.). E estas não devem servir de subterfúgio para se procurar apenas os benefícios (pedidos de financiamentos e de apoios financeiros) e não se comprometer a fundo (“suar a camisola”) com os processos de integração.

O pouco interesse do arquipélago no aprofundamento do conhecimento da complexa realidade da sua vizinhança tem levado a que este Estado tenha estado com pouca segurança e celeridade na tomada de decisões sobre os processos de integração em curso.

A título de exemplo, o país assinou a 10 de Dezembro de 1999 o “Protocolo Relacionado Com o Mecanismo de Prevenção de Conflitos, Administração, Resolução, Manutenção da Paz e Segurança, conhecido como o “Tratado de Defesa e Segurança da CEDEAO” ou por “Mecanismo”, mas os sucessivos governos, até então, nunca chegaram a submeter o Tratado à Assembleia Nacional para ser ratificado, apesar de ser uma matéria consensual por já ter merecido por duas vezes o parecer favorável do Conselho Superior de Defesa Nacional (CSDN).

Necessidade de uma diplomacia muito mais lesta e eficiente

Exige-se, por conseguinte, uma diplomacia muito mais lesta e eficiente no que toca a questões de integração regional na medida em que têm sido estas “distrações” a remeter cabo Verde para o último vagão do comboio da história da integração regional africana e eu tenho defendido em vários fóruns que é fundamental procurar apanhar o vagão da frente antes que seja tarde de mais.

Mas para tal é preciso dar sinais claros de comprometimento com os principais dossiers da integração. Caso contrário, qualquer tentativa, ou iniciativa, visando a solicitação de atendimento das tais “especificidades”, por exemplo junto da CEDEAO, está votada ao fracasso.

*Professor da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV) onde é Diretor Académico do Mestrado em Integração Regional Africana (MIRA)

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 769, de 26 de Maio de 2022

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