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Medicina tradicional em Cabo Verde: um caso de estudo

Por: João Mendes*

Carlos António de Brito – Ortopédico tradicional, osteopata¹ ou “dotor d’ose”?

Viajando pelas ilhas do barlavento de Cabo Verde, fomos visitar na sua residência, na zona da Ladeira, cidade Vila da Ribeira Brava, ilha de São Nicolau, onde nasceu há 64 anos, Carlos António de Brito, filho de António Domingos de Brito e de Cezaltina Almeida Brito, mais conhecido localmente por Carlos de Nha Cezaltina, e nos meios da diáspora cabo-verdiana nos Países Baixos ou algures por Carlos de Nho N’Ton Silos.

Dotes de osteopata desde os 15 anos de idade

Carlos António de Brito é habilitado com o 2º grau da instrução primária e assume-se como um ortopédico tradicional, melhor diríamos, Carlos é um osteopata, ofício ao qual se dedica desde os 19 anos de idade, embora os dotes que possui foram revelados desde os 15 anos, em que já “consertava” as pernas das limárias que sofriam acidentes, as quais saíam da casa da família já a andar.

Tornando-se conhecido na vizinhança, Carlos António de Brito começou a ser procurado pelos jogadores, que se lesionavam no campo de futebol, e que vinham diretamente ter com ele, aos quais “consertava” as pernas, encanava, se fosse caso disso, e em geral ficavam “prontos para outra”.

Portanto, Carlos, desde cedo, possui os dotes de um endireita², ou seja indivíduo que conserta os ossos fraturados ou em luxação.

Consultório em Roterdão, Bruxelas e na Bélgica

Aos 21 anos de idade, Carlos António de Brito emigrou para os Países Baixos, onde não trabalhou como marítimo ou como operário, como era habitual nos emigrantes cabo-verdianos, antes pelo contrário, Carlos sempre desempenhou o seu ofício tradicional de ortopédico, melhor dizendo osteopata, e chegou a ter seu próprio consultório em Roterdão, e também em Bruxelas, na Bélgica, onde era procurado pelos conterrâneos, que já tinham conhecimento dos seus dotes, e por estrangeiros, qua iam ouvindo a sua fama.

Nos Países Baixos, Carlos António de Brito chegou a participar num concurso, que venceu, a que também se candidataram dois orientais do mesmo ofício, um chinês e um japonês, e na sequência beneficiou de um contrato, com a duração de um ano, no Hospital Dijkzicht, sendo depois transferido para o Hospital Van Dam, onde havia maior necessidade do seu trabalho.

Regresso a Cabo Verde

A emigração não durou para Carlos António de Brito, pois, cedo regressou a Cabo Verde, onde morou, primeiro, na cidade do Mindelo e, depois, na cidade da Praia, de onde viajava para as restantes ilhas, para realizar consultas e ministrar tratamentos, de forma programada ou sempre que era chamado por algum paciente mais aflito.

De momento, defrontando problemas de saúde, Carlos fixou residência no seu torrão natal, ilha de São Nicolau, e muito esporadicamente desloca-se até à ilha do Sal.

Na sua prática profissional, Carlos António de Brito utiliza técnicas que não diferem muito das técnicas utilizadas por outros ortopédicos tradicionais, osteopatas, endireitas, “emprastadores” ou “dotor d’ose”, como se preferir chamá-los. Vejamos um seu depoimento:

Técnicas de tratamento

“No caso da quebra de osso, assegurou-nos Carlos, o trabalho consiste em encanar, ou seja, colocá-lo numa posição retilínea, imobilizando-o ao mesmo tempo. Passados alguns dias, o osso «solda-se» e a dor vai desaparecendo”³

Por outro lado, disse-nos pessoalmente Carlos António de Brito:

“Uso fundamentalmente o dedo polegar (“dêdóna”) que vou carregando nos ossos ou vértebras, que vão estalando enquanto entram no lugar. Uso uma mistura de água e vinagre fervidos, em banhos de vapor, incidindo na zona do corpo a tratar, e cubro o paciente com um lençol, para que o vapor não se perca”. Atualmente, devido ao seu problema de saúde, Carlos só usa a mão direita. Reconhece que com as duas mãos seria mais fácil, mas, com jeito, dá na mesma.

Duração de cada de tratamento

Quanto à duração de cada tratamento, disse-nos Carlos António de Brito que pode durar uma sessão, no caso da fratura ou luxação de um osso, que, depois de “consertado” e encanado, o tempo encarrega-se da cura.

Contudo, nos casos mais difíceis, de problemas nas vértebras ou ossos da coluna, o tratamento pode levar sete dias, ou em situação extrema até quinze dias, pois, poderá ser necessário submeter a zona corporal aos referidos banhos de vapor, com água e vinagre fervidos, para “amolecer” os ossos, de modo a serem mais facilmente tratados.

Carlos António de Brito já tratou largas dezenas ou centenas de pacientes, ao longo de mais de uma quarentena de anos, de exercício do seu ofício de ortopédico tradicional ou osteopata, desde pessoas que dão quedas na sua própria casa, a jogadores de futebol, banhistas, médicos e pessoas recomendadas por médicos, e até um Presidente de Câmara, um Presidente de Parlamento e um Chefe de Estado.

Tratamento ao Rei Balduíno, da Bélgica

Foi notícia, anos atrás, que foi-se buscar um ortopédico tradicional ou osteopata cabo-verdiano, aos Países Baixos, para ir tratar o Rei Balduíno, da Bélgica. Tal se passou em 1983, confirma-nos Carlos António de Brito, um médico ortopédico  cabo-verdiano, então residente na Bélgica, que terá feito parte da equipa médica do Rei, sugeriu que Sua Majestade fosse tratado do modo tradicional, em vez de ser submetido a uma cirurgia à coluna vertebral, tendo em conta os riscos inerentes, pelo facto de ser doente cardíaco. Segundo nos informou Carlos, o Rei Balduíno sofria de um desvio na coluna, com onze discos fora do lugar, o que lhe provocava cãibras nas pernas e outras maleitas.

Carlos António de Brito também tratou um médico malgaxe de origem indiana, nos Países Baixos, a um desvio na coluna, um Presidente da Assembleia Nacional, em Cabo Verde, a uma hérnia discal, e fez equipa com Nho N’Ton Julinhe, que tratou um conhecido jogador de futebol do Benfica.

O referido jogador, ao que tudo indica, tinha sido tratado pelos ortopédicos convencionais, mas continuava com problemas de recuperação. Tendo-lhe sido recomendado que consultasse Nho N’Ton Julinhe, em São Nicolau, este, na altura, já com idade avançada, solicitou a colaboração de Carlos António de Brito no tratamento do atleta.

Segundo Carlos nos informou, no caso do atleta do Benfica, Nho N’Ton Julinhe “quebrava”, desfazendo a má soldadura dos ossos, e ele “montava”, de novo, os ossos na posição correta.

“Todos ficam meus amigos… vêm visitam-me sempre que podem”

Quanto a eventuais perseguições que possa ter sofrido, de pacientes, familiares de pacientes, de algum médico ou da Ordem dos Médicos, Carlos foi perentório: “nunca, todos ficam meus amigos e os meus pacientes vem visitar-me sempre que podem”, diz, acrescentando que nunca foi perseguido por nenhum médico ou pela Ordem dos Médicos, antes pelo contrário, alguns médicos recomendam ou sugerem a alguns dos seus pacientes que consultem o Carlos e eventualmente se submetam aos seus tratamentos, pelos métodos tradicionais, mormente quando existem riscos acrescidos, se tiverem de ser submetidos a uma cirurgia na zona da coluna vertebral.

Entretanto, Carlos António de Brito procura exercer, de forma responsável, o ramo de medicina alternativa a que se dedica, a ortopedia tradicional ou osteopatia, pelo que, sempre que o problema de saúde do seu consulente o ultrapassa, aconselha a procura de um médico convencional, na medida em que a formação científica de que estes são dotados e o treinamento que recebem poderão ser mais apropriados para resolver o problema de saúde do doente.

Outros praticantes da medicina tradicional

Sobre a existência de outros praticantes da medicina tradicional, na ilha de São Nicolau, mormente de pessoas com dons naturais semelhantes aos que detém, Carlos, de imediato, falou-nos, de António do Rosário Duarte e Cândido Manuel Silva, ou seja, de Nho N’Ton Julinhe e Nho Candinhe, dois conhecidos práticos da medicina alternativa, considerados duas referências do património cultural da “Ilha do Chiquinho”, os quais foram objeto de vários depoimentos, compilados num livro, com o seu nome, editado pela Colibri, Lisboa, em Novembro de 2011³.

Citamos alguns trechos da referida obra, que é uma autêntica socio biografia dos dois referidos naturopatas:

António do Rosário Duarte, mais conhecido por Nho N’Ton Julinhe

“António do Rosário Duarte, mais conhecido por Nho N’Ton Julinhe, nasceu no dia 18 de Abril de 1918, na localidade de Fajã – Lompelado – Freguesia N. Sra. da Lapa, ilha de São Nicolau, Cabo Verde, sendo filho de Júlio António Duarte e de Ana Maria do Rosário.

Como lavrador que era, dedicava-se às lides agrícolas, cultivando as suas terras e cuidando dos seus animais, tal como faz habitualmente a maioria dos agricultores da ilha.

Enquanto curador, dedicava-se exclusivamente a tratamentos ósseos, pelo que, não constatando moléstia óssea e perante queixas de foro não físico, recomendava ao paciente ir a um curandeiro, dotado de supostos poderes misteriosos, que lhe serviriam para dominar a força do mal, pretensamente causado pela bruxaria.

Habilitado somente com o 1º grau da instrução primária, Nho N’Ton Julinhe era homem capaz de ler e interpretar textos de alguma complexidade, tendo gozado de muita fama no tratamento natural de traumatismos ósseos, em São Nicolau e fora da ilha.

Viveu vários anos na ilha do Sal e um período relativamente longo nos Países Baixos, deslocado por um paciente emigrante aí residente. São referidos vários casos de sucesso dos seus tratamentos, mormente de um ex-defesa do Benfica, nos anos 1970-80 do século XX, que se deslocou a São Nicolau, vindo de Portugal, para ser tratado por ele, e um senhor da ilha da Boa Vista que veio da Alemanha inválido e foi “consertado” por Nho N’Ton Julinhe.

A sua prática de cura de ossos, como simples “emprastador”, tornou-o conhecido como “dotor d’ose” da ilha ou “médico di natureza” e como tal foi cantado pelo compositor Zé Andrade. Nho N’Ton Julinho faleceu em 1983”.

Cândido Manuel Silva, vulgarmente conhecido por Nho Candinhe

Por outro lado, “Cândido Manuel Silva, vulgarmente conhecido por Nho Candinhe, nasceu no dia 14 de Novembro de 1911, na localidade de Canto Fajã – Canal Nica – Freguesia N. Sra. do Rosário, ilha de São Nicolau, Cabo Verde, sendo filho de Manuel Jacinto dos Santos, carpinteiro do Seminário de São Nicolau, e de Antónia Maria de Brito.

O ambiente rural onde cresceu Nho Candinhe despertou nele os valores, o respeito e o amor pela natureza e tornou-o um precursor dos atuais ecologistas. Desenvolveu um grande relacionamento com os seres humanos, os animais e as plantas e nutria uma perfeita admiração pela natureza, e veneração pela terra, pelo mar, pelo sol, pela lua e pelas estrelas, guiando-se pelos astros e pelo tempo.

Nho Candinhe era um místico. Homem dotado de grande inteligência, possuía um dom de oratória, como poucos, e o seu grau de saber permitia-lhe ler e traduzir o latim, naquele tempo, apesar de somente ter concluído o 2º grau da instrução primária.

Especializou-se no tratamento dos males do espírito e de maleitas físicas, ou seja, doenças do corpo e da alma, sempre dizendo, eu só coloco as mãos, quem cura é Deus. Ganhou fama no tratamento de doenças como «sombra», paralisia, «mau ar», e também icterícias, pneumonias, erisipela, febres, úlceras e outras doenças, usando as suas orações e ervas medicinais, óleos, unguentos, chás, ventosas e massagem. Nho Candinhe faleceu em 1988”.

Outros métodos de tratamento tradicional

Carlos António de Brito revelou-nos ter também conhecimento de outros métodos de tratamento tradicional utilizados na ilha de São Nicolau, mormente aquele em que o paciente é enterrado na areia quente, nas praias de Telha ou do Barril, no Tarrafal, para tratamento do reumatismo e para “tirar frieza do corpo”.

Carlos, pessoalmente, para tratar o reumatismo, só usa os banhos a vapor, com uma mistura de água e vinagre fervidos. Destaca a figura de Nho Djonor, já falecido, como um dos expoentes máximos na aplicação desse método de tratamento alternativo.

Por último quisemos saber de Carlos António de Brito, qual é o futuro da medicina tradicional ou dos métodos de tratamento alternativos, em Cabo Verde, particularmente na ilha de São Nicolau, se os atuais praticantes vão ter sucessores, pessoas que vão continuar o seu trabalho, e se estão disponíveis, particularmente, se Carlos está disponível para ensinar os mais jovens, e se estes, por seu lado, têm manifestado vontade de aprender.

Carlos António de Brito disse-nos que já lhe apareceram alguns jovens a quererem aprender o ofício e que ele já tentou ensinar a quatro jovens, mas o problema que defrontou é que nenhum deles possuía os dotes, de nascença, e isso é imprescindível, o dom é que puxaria o interessado a aprender mais.

Finalmente, fizemos uma pergunta, talvez um pouco indiscreta, a Carlos António de Brito, quisemos saber como se sustem, Carlos, atualmente, dado que, aparentemente, a emigração não lhe trouxe muito sucesso financeiro.

Efetivamente, em condições normais, e podendo trabalhar, o que não se aplica a Carlos, nas condições atuais de saúde, o ortopedista tradicional ou osteopata não cobraria mais do que dois a três mil escudos, o equivalente a vinte a trinta euros, para ministrar um tratamento completo da coluna vertebral, e esse tratamento começa no bico dos pés e termina no cocuruto da cabeça. Claro que, alguns pacientes, com melhores condições económicas, por vezes são mais generosos. O certo é que Carlos António de Brito, para sobreviver, vem contando com o parco valor da pensão social do Estado e os parcos honorários de algum eventual tratamento que pode ministrar, a algum paciente, esporadicamente, restando-lhe o apoio de um irmão. Esse homem merecia mais! Não acham?

Praia, 3 de Julho de 2022

Referências:

¹ Osteopatia é uma terapia natural baseada na intervenção manual sobre o sistema músculo-esquelético. “Osteopatia”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/osteopatia [consultado em 03-07-2022].

² Endireita, é um indivíduo que conserta os ossos fraturados ou em luxação, também vulgarmente conhecido por algebrista. “Endireita”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/endireita [consultado em 03-07-2022].

³ Gomes, Lourenço e Pimentel, Antónia Silva, “Nho N’Ton Julinhe & Nho Candinhe – Duas referências do Património Cultural da Ilha de S. Nicolau”, Edições Colibri, Lisboa, Novembro de 2011.

 

*Mestre em Auditoria Interna e Controlo de Gestão

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 777, de 21 de Junho de 2022

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