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Cultura

James dos Reis: Da Cova da Moura para o mundo

 

James dos Reis é um jovem cantor e compositor luso-cabo-verdiano, com o pé também no mundo da moda. Nas vésperas de participar na Gala dos CVMA, a 1 de Outubro, na Praia, conta ao A NAÇÃO um pouco da sua história. Da Cova da Moura, em Lisboa, onde viveu, para o mundo, em Londres. 

Toda a gente tem uma história… Qual é a tua?

O meu nome é James dos Reis, nasci em Lisboa. A minha infância foi vivida na Cova Da Moura, quando morava com a minha mãe, até aos meus cerca de 10 anos, altura em que me mudei com os meus pais para Carnaxide. As minhas origens são cabo-verdianas. A minha mãe é natural da ilha de Vicente e o meu pai, embora nascido em São Tomé e Principe, é filho de cabo-verdianos de Santiago, por isso eu sou metade sampadjudo e metade badio.

Durante o teu crescimento, a cultura cabo-verdiana fazia parte do teu dia a dia?

Sim, e muito! A casa dos meus avós paternos é a casa! É onde a família se reúne sempre, e a língua que mais se fala, entre os mais velhos, é o crioulo, depois a música sempre teve muito presente e, naturalmente, a comida.

Como é geres essa dupla identidade que tens, fruto das tuas origens?

É muito fácil, sinto-me um jovem com muita sorte por ser multicultural e poder beber das minhas origens.

Falas crioulo no dia a dia, em que contexto?

Os meus pais nunca me estimularam a falar crioulo, porque, na altura (década de 90), não queriam que eu chegasse à escola e confundisse as duas línguas. Acho que isso se deveu ao facto de nós, negros, termos uma necessidade de nos encaixarmos na sociedade, maioritariamente, branca que predomina em Portugal.

Ficaste privado, então, do crioulo?

No fundo, eu sei que eles estavam a proteger-me, mas, ao mesmo tempo, de uma forma não directamente intencional, privaram-me de uma herança que é minha por direito. No entanto, eu aprendi crioulo com o meu Tio Bruno (o mais novo de 11 tios e tias que tenho da parte do pai) e, mais tarde, fui desenvolvendo na rua, no bairro, com os meus amigos. Posso dizer que falo mais crioulo fora de casa e dentro de casa com a minha avó.

Vencer o medo na música

E como surge a música nesse processo de crescimento?

Eu tive uma grande influência, durante a minha infância, que foi a minha prima e cantora Myriiam (que muitos de vocês provavelmente conhecem). Mas, na verdade, a música sempre me fascinou. E, talvez por insegurança e vergonha de expor algo, que eu em tão tenra idade ainda não dominava, rapidamente tornou-se algo muito pessoal e escondido do mundo.

Como é que se foi desenrolando esse percurso para dares então a conhecer ao mundo?

Comecei a cantar muito tarde, recordo-me de estar nas aulas de biologia, no 10º ou 11º ano, e de, inconscientemente, dar por mim a cantar em plena aula e da professora reconhecer o meu talento, mas ao mesmo tempo pedir-me para calar, porque estava numa sala de aula (risos).

Nessa altura estive, pela primeira vez, em estúdio com a minha prima Myriiam e gravámos um kizomba “Flado Fla”, produzido pelo Loony Johnson e Tó Semedo, se não estou em erro. Um tempo depois fiz um casting para uma boys band e entrei para uma banda Pop, e aí sim começou a minha primeira experiência a sério na indústria da música.

       

Porque é que só aos 17 anos te começaste a fazer ouvir..?

Eu joguei futebol durante muitos anos, e esse era o meu foco. A música era um refúgio que, aos poucos, já não cabia mais dentro de mim. Senti a necessidade de perceber a opinião das pessoas ao ouvirem-me cantar, e comecei a partilhar, cada vez mais, o meu talento por incentivo de colegas de turma e amigos, até porque lá em casa ninguém fazia ideia que eu cantava…

E o que te fez começar a escrever as tuas próprias músicas?

Eu sempre gostei de escrever, era uma forma de expressar todo o caos que sentia dentro de mim e comecei partilhar os meus poemas no Facebook. Era uma escrita pesada, muito dark que, na altura, até despertou a preocupação do meu pai. Na música foi algo muito natural, sempre tive essa iniciativa e comecei simplesmente a fazê-lo.

Da música à moda

Também és (ou foste) modelo e em 2016 mudaste-te para Londres, foste em busca dessa carreira de modelo, ou de outra coisa qualquer…?

Eu fui para Londres porque, na verdade, queria ter uma experiência diferente de vida, queria saber como era viver longe do ninho dos pais e crescer com todas essas dificuldades. A moda nem sequer entrava nesta equação, e, uma vez mais, por incentivo de terceiros, tirei umas fotos e enviei para agências, e tive uma grande resposta. Quando dei por mim estava a assinar um contrato e a trabalhar na moda.

Mas, ao que parece, a música falou mais alto e voltas para Portugal para dar continuidade à música. O que despoletou esse click?

Um mês após chegar a Londres o Agir (cantor e produtor musical) tinha-me contactado e eu, na altura, não pude aceitar porque tinha mudado toda minha vida muito recentemente. Anos mais tarde, estava no ginásio e recebo uma mensagem do Agir a dizer: “Ainda estás com medo?” foi precisamente aí que se deu o click. No dia seguinte despedi-me do hotel em que trabalhava, fiz as malas e regressei a Portugal.

Como concilias as duas carreiras?

É muito fácil porque ambos os universos estão muito ligados, quanto mais não seja através da imagem. Mas, hoje em dia, prezo muito que as pessoas me conheçam por ser artista, músico, e não modelo, porque é precisamente essa a imagem que quero passar.

Então posso depreender que é na música que te sentes mais realizado?

Sim. Gosto muito de moda, muito mesmo, mas a música é o que eu respiro.

Quais são os teus artistas de eleição, os que te inspiram na música de Cabo Verde?

Ui… tantos, mas os que eu vou enumerar foram os que mais me marcaram durante a minha infância, Timmy, Djedje, Boy Gé Mendès, Philippe Monteiro, Grace Évora, Johnny Ramos, Suzanna Lubrano, Jorge Neto, Mika Mendes, Titina, Césaria Évora, Chandinho Déde e Calú Bana.

Com quem gostaria de fazer um featuring…?

Existem de facto muitos artistas que eu gostaria de colaborar, mas hoje em dia eu prezo bastante a conexão humana, mas pronto para não fugir à questão eu diria Mayra Andrade e June Freedom.

Aventurar na Morna

A tua música traz um “groove” que viaja entre a pop, r&b, soul e afro-pop…estes são os ritmos que te preenchem e que achas mais adequados para passar a tua mensagem?

Sim, porque foram sem dúvida os géneros que mais me influenciaram, mas falta aí um que eu adorava explorar com quem realmente me pudesse ensinar, que é a Morna.

A Morna, então é porque gostas te aventurar por outros ritmos, sair da zona de conforto?

Sim, eu até assumo isso quer na música, ou na vida no geral, porque eu não gosto de rótulos, não fui feito para ser colocado em caixas. Se eu sentir, eu faço, e a Morna é sem dúvida um universo que desejo muito entrar nele.

Estás a trabalhar no primeiro EP a solo, “SETE”, onde dizes que te queres dar a conhecer, de uma forma mais genuína, e sem qualquer tipo de preconceitos. O que queres dizer com isso?

Sim, sem dúvida, este EP é uma porta aberta para que me venham a conhecer um pouco melhor. Abordo temas muito pessoais, que outrora não teria a coragem, ou sabedoria, para fazê-lo e expor como fiz no SETE.

Sou um artista, neste momento, mais confiante do que quando cheguei de Londres, pois tive muitos anos sem cantar, sem compor, literalmente afastado da música. Espero mesmo que chegue às pessoas e que elas possam abraçar este meu projecto com muito carinho, o que me irá fazer certamente muito feliz.

O som “NPM” é a primeira amostra de SETE. O significa NPM?

Sim, o “NPM” é a primeira revelação de SETE, significa “Não preciso de muito», e é um tema que foi inspirado no que eu vivi, em 2020, durante o primeiro confinamento. Em que eu fiz uma introspecção, questionei-me imenso e decidi arrumar gavetas. Foi precisamente a partir daí que me tornei num homem resolvido e cimentei de forma assertiva os meus valores, a minha identidade, a forma como vejo o mundo e a vida.

Eu não preciso de muito, nunca precisei porque de onde eu venho, sempre fizemos a festa com pouco e, no final do dia, o que conta mesmo são as pessoas e é esse sentimento, essa energia que carrego comigo sempre.

O que muda além desse contexto de “bem contigo mesmo”, em termos dos singles lançados antes do NPM?

Posso dizer que, de um ponto vista geral, existe de facto uma maior presença de r&b neste meu projecto, mas sem rótulos ok? (risos).

Reféns dos likes

Nos últimos anos, os artistas estão “reféns” dos likes, para penetração na indústria, agenciamento de festivais, etc.? Reveste nisso, ou não?

Sem dúvida, e é algo que me deixa muito triste, porque não estamos de todo a contrariar esta tendência do mundo caminhar cada vez mais num sentido superficial e rapidamente descartável. Para mim os números não são de todo sinónimo de qualidade, de bom gosto, mas a verdade é que têm o seu peso e importância, na carreira de qualquer artista nos dias de hoje.

Então ou números contam…

Sim, como contam. Um artista que não tenha números muito dificilmente passará nas rádios, ou fará festivais, etc. Eu percebo que os promotores das festas, festivais, directores de rádios, tv’ s,  deem lugar a quem o público dá “buzz”, mas, ao mesmo tempo, cabe também a essas mesmas pessoas que têm poder de decisão na indústria, dar a conhecer artistas que são desconhecidos para o grande público, e acreditem que existem imensos que são absolutamente incríveis.

No dia 1 de Outubro vens actuar na Gala dos CVMA. Já tinhas vindo cá antes?

Quando tinha seis anos estive em Cabo Verde com a minha mãe. Fomos para a ilha do Sal e, depois, para São Vicente. Adorei, senti-me super bem, conheci familiares que até então desconhecia, depois as pessoas, os lugares, a energia foram incríveis e já se passaram 20 anos e ainda me recordo das memórias muito bonitas que fiz.

O que esperas desta participação no CVMA, tendo em conta que em Cabo Verde, para muitos, ainda és um “ilustre desconhecido”?

Espero aproveitar ao máximo esta oportunidade, esta experiência. Quero aprender imenso com todos vocês, conhecer-vos e dar-me a conhecer também.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 786, de 22 de Setembro de 2022

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