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Em busca de Deus

Por: Arsénio Fermino de Pina*

Há anos que venho escrevendo sobre religião, sobretudo sobre o Catolicismo e o Islão, a tentar descobrir a verdade, uma aproximação dela, a esclarecer equívocos e a descartar mentiras e falsidades. Isso intensificou-se quando me atribuíram a responsabilidade de dirigir um projecto nacional de saúde materno-infantil e de planeamento familiar, na pós-independência, que contém vertentes condenadas pela Igreja Católica num país essencialmente católico. Claro que se entrasse em guerra aberta contra a Igreja, iria, seguramente, perdê-la.

Optei pela abordagem guerrilheira, com avanços e recuos estratégicos utilizando, bastas vezes, argumentos colhidos nas figuras cristãs mais representativas que modelaram a teologia católica e a prática corrente na Idade Média, e posteriormente, que serviam à causa científica, sem ofender os contendores mais aguerridos e contundentes no ataque, a que contra-atacava com factos dificilmente refutáveis.

Foi assim que fui coligindo factos e argumentos e, aos poucos, a amizade dos que me combateram no início, por se terem convencido de que me animava a amizade em que são possíveis a franqueza sem ofensa, as críticas sem má intenção e as manifestações de apreço sem hipocrisia. Outrossim, não tinha nenhum rancor a satisfazer nem uma panaceia a vender, e, como homem de ciência, sempre procurei a boa resposta.

Disse-me um amigo que quem busca Deus acaba por O encontrar, o que não tem acontecido comigo, pois, nas minhas pesquisas teológicas, tenho dado mais topadas em factos e especulações ditas diabólicas ou incompreensíveis. Como sou perseverante, continuo nas minhas pesquisas, que vou reunindo, apresentando alguns aos que me lêem. Vejamos alguns que me têm atrapalhado e intrigado nessa busca de um ser omnipotente, sumamente bom e prenhe de amor, assuntos de que muito raramente se fala.

– Nas Cruzadas, havendo dificuldade em destrinçar os infiéis dos inocentes, determinou o Papa Inocêncio III: “Matai tudo, que Deus distinguirá quais são os seus”.

– “Para ser punido com toda a clemência e sem efusão de sangue”, fórmula convencional com que a Inquisição designava a morte na fogueira. Os que se desdiziam no julgamento da Inquisição, iam parar às masmorras, mortos de outra maneira (Damião de Gois, Galileu, entre muitos outros) ou se lhes contava a língua, como a Alexandre Canus, para não falar; o bispo Hooper foi queimado em 3 fogueiras por ter tido a veleidade de usar a razão em assuntos de fé, bem como Giordano Bruno. Garcia de Orta escapou à fogueira por estar na Índia a estudar as plantas medicinais, embora as suas ossadas tenham sido queimadas, quando a família as trouxe para Portugal.

– O Vaticano (Estado temporal) nasceu dos Acordos de Latrão entre Mussolini e a Santa Sé em Fevereiro de 1929.

– O Princípio da infalibilidade papal em matéria de fé foi proclamado, em Julho de 1870, no Concílio Ecuménico (1869-1870) sob o papado de Pio IX, para tornar certos assuntos automaticamente intocáveis, atando as mãos aos papas futuros.

– O Papa Pio XII excomungou todos os comunistas, em 1948, pouco antes da criação da República Popular (comunista) da China. Nenhum papa teve a coragem de excomungar o clero pedófilo, o que poderia diminuir o sofrimento de tantas crianças e facilitar a expulsão automática da Igreja desse clero, que ficaria à disposição do poder civil (temporal) para serem julgados.

Os muçulmanos nunca tiveram problemas com a pedofilia por não haver idade mínima para o casamento, portanto, para relações sexuais, até porque Maomé casou-se com Aisha quando esta tinha seis anos de idade, vindo a ter relações com ela ao atingir nove anos. – Até ao Concílio de Niceia I (ano 325 da era nossa), a religião católica não atribuía alma â mulher. Era um ser passivo, caprichoso, irresponsável, sujeito a desejos tumultuosos, a sensações excessivas e impulsos incontroláveis; um ser no qual não se podia depositar nenhuma confiança. Nesse concílio estabeleceram-se os principais dogmas do Cristianismo. Os protestantes recusam a autoridade dos concílios em matéria de fé. Foi com o Concílio de Niceia II (787) que, com base na encarnação do Verbo (=Deus), foi reconhecida a possibilidade de representação de Jesus e a veneração das imagens: católica, pródiga em imagens, protestante, bastante reservada, que se limita à cruz, e os ortodoxos, que são mestres na arte de ícones. Foi nos concílios de Niceia e Constantinopla que se passou a adorar um só Deus nas três pessoas. – A fecundação incorpórea foi uma vez sem exemplo, só para que se ficasse a saber que Deus, quando quer, não precisa do homem, embora não possa dispensar-se da mulher, opinião de Saramago. O mesmo escritor e Prémio Nobel da literatura, informa-nos de que São Cristóvão, santo de grandes valimentos em caso de peste, epidemias, raios, incêndios e tempestades, nas viagens e tremores de terra, entra em concorrência com Santa Bárbara, Santo Eustáquio, eles, também, não pecos nessas provações. – Epicuro intrigava-se com os poderes de Deus: “Deus quer prevenir o mal, mas não pode? Então é impotente. Pode, mas não quer? Então é malévolo. Pode e quer? Então, donde vem o mal? – O imperador Constantino, no século IV, acabou por aderir ao Deus dos cristãos, do qual esperava a sua salvação e a do Império. E menos de um século depois de 392, Teodósio faz do Cristianismo religião do Estado.

– Os árabes atingiram grandes sucessos em ciência quando separaram claramente a sua fé da prática científica, tendo sido considerados mais inteligentes e cultos do que os europeus. Regrediram quando a fé passou a dominar a ciência, o bom senso e a inteligência. Segundo o historiador, teólogo e pensador muçulmano tunisino Mohamed Talbi, a Charia não tem nenhum fundamento corânico. Escrita por humanos tardiamente ao Alcorão, não obriga, em consciência, nenhum muçulmano. Antes de ser escrita, durante dois séculos, os muçulmanos viveram felizes sem a Charia. Sem ela todo o mundo se comportaria melhor. Por que não passar novamente sem ela, visto ter tomado uma forma terrorista incompatível com a liberdade e a democracia? Parece ter sido parcialmente copiada do livro Levítico do Velho testamento, que nem os judeus nem cristãos não ortodoxos já levam a sério. – Graham Greene escreveu: “Como católico agradeço a Deus a existência de heréticos, pois a heresia é apenas outra palavra para significar liberdade de expressão”, obviamente, desde que não se explore o nome de Deus para infâmias, como bastas vezes acontece.

– A Igreja fez desaparecer todos os traços dos debates no seio das primeiras famílias cristãs e os comentários de Arius, de Mané, Nestorius, Eutyches e Catares. Se Arius e o Arianismo tivessem vencido, nunca se teria considerado Jesus Deus, mas sim um simples homem ou profeta. – Deus assemelha-se, bastas vezes, a esses velhos móveis que, em vez de serem úteis, só atravancam, mas que nas famílias se transmitem de geração em geração, religiosamente, porque os filhos os receberam dos pais e os pais dos antepassados.

– O Celibato tornou-se obrigatório no clero católico a partir de 1537, no papado de Gregório VII. De acordo com a Lei Canónica, o voto de celibato é quebrado quando o padre se casa, mas não necessariamente quando tem relações sexuais ocasionais. Os pastores protestantes não obedecem a essa norma e casam-se, constituindo família, o que explica a inexistência de escândalos pedófilos no protestantismo.

– Dizia-me um amigo, como se já não o soubesse, que a Bíblia não deve ser seguida à letra, como o fazem os ortodoxos, algumas seitas e fundamentalistas. Todavia, se a Bíblia se destina a ser lida como uma metáfora, como distingui-la de outros textos literários? E como separar a interpretação ortodoxa, como o Vaticano a preconiza, da efectuada por outras igrejas cristãs? – Em 1713, o Papa Clemente XI condenou como errada a afirmação “A leitura da Sagrada Escritura é para todos”, como defendiam os protestantes, que trataram de a traduzir para as línguas modernas em vez do latim e grego. Foi o Papa João XXIII que defendeu a missa noutras línguas (não em latim, que é uma boa forma de estar calado) e revolucionou muitos conceitos da Igreja no Concílio Vaticano II, mas, infelizmente, faleceu antes do fim desse Concílio, e os cardeais Ratzinger (futuro Papa Bento XVI) e Lustiger converteram-se, segundo as correntes progressistas católicas, em coveiros das esperanças criadas pelo Vaticano II. – Fica-se intrigado como a Igreja está mais centrada na redenção dos pecadores do que na justiça com os que sofrem inocentemente, mormente com o sofrimento de crianças.

– Os textos sagrados não são ditados por Deus, tornando-se, pois, claro, que sem interpretação, eles se convertem, inevitavelmente, em textos fundamentalistas.

– Em boa parte, a má vontade contra a Igreja reside na sua relação com o sexo.

– Quem ler o livro do jornalista Eric Frattini, “Vida Sexual dos Papas”, editado pela Bertrand, ficará estarrecido, o que teria levado o bispo Lutero, após ter visitado a Santa Sé e constado a bandalheira e o lupanar que aí se passavam, a escrever as suas 95 teses – que lhe valeram a excomunhão do Papa, em 1521.

– A Doutrina da Descoberta, nascida com a bula Romanus pontifex, de 1455, dedicada aos direitos da coroa portuguesa, do Papa Nicolau V, foi um dos vectores essenciais da escravização dos povos indígenas, segundo as Nações Unidas, o que tem limitado o alcance da visita de penitência do Papa Francisco.

– Foi Santo Agostinho que inventou a doutrina do Pecado Original, no sentido de um pecado cometido por Eva e Adão, no acto sexual, e transmitido, por herança, a toda a humanidade. Houve uma excepção: Maria (mãe de Jesus) foi concebida sem mancha do pecado original. Outra excepção (assumpção) foi a elevação milagrosa da Virgem Maria ao Céu de corpo e alma. Deste modo, porém, a sexualidade ficou manchada e as mulheres acabavam por sentir-se discriminadas, tanto mais quanto, associando a concepção de Jesus a uma gestação virginal, se lhes propunha o ideal impossível de virgem e mãe (Anselmo Borges, padre e professor de Filosofia na Universidade Católica).- Para terminar direi, parafraseando Confúcio, não haver coisa mais difícil do que encontrar Deus, invisível, num mundo de trevas, mormente quando aí não está ou nunca esteve.

Parede. Julho de 2022                                                                                                                                                                      

*(Pediatra e sócio honorário da Adeco)

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 765, de 28 de Abril de 2022

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