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História: Terra Boa, um precioso legado a reclamar especial atenção

Por: Basílio Mosso Ramos

1.Quem desembarca no Sal e se depara com a paisagem praticamente desprovida de vegetação, à imagem da “terra escalabrode” de que falou o grande compositor e nosso patrício Nhela Spencer, estará longe de imaginar que, em chovendo, a ilha oferece excelentes condições para a agricultura, actividade que suscita(va) entusiasmo na população. Efectivamente, o salense é tributário de uma tradição de vida no campo que lhe advém das suas origens, localizadas essencialmente na Boa Vista e em São Nicolau, que acabou por ser enriquecida com a mais recente contribuição migratória, nomeadamente das ilhas de Santo Antão e Santiago.

Por muito tempo depois do povoamento, a agricultura foi praticada exclusivamente nas chamadas ribeiras, com destaque para as de Madama, Algodoeiro, Palha Verde, Beirona, Tarafe, Feijoal, Fontona, Parda, Bombardeira, Horta-de-Trás, Morro Leste, Monte Grande, às quais se encontravam ligadas as famílias mais antigas da ilha.

Entretanto, o gradual crescimento da população, iria forçar à demanda de suplementares parcelas para a agricultura, fazendo com que Terra Boa (TB), até então mero campo de pastagem, fosse vista como espaço ideal para tal fim.

Para essa escolha concorreram vários factores, a começar pelas características orográficas da zona, que se assemelha a uma bacia, para a qual convergem, e ali se acumulam por tempo razoável, as águas que correm na vizinhança, mesmo quando a chuva é escassa. O facto de se tratar de terreno argiloso, com condições para conservar a humidade por muito tempo, ainda por cima rico em materiais orgânicos, terá sido também determinante nessa opção.

Com tal reconversão aumentou-se significativamente a área cultivável na ilha, proporcionando-se a muita gente, especialmente aos recém-chegados, a oportunidade de dispor de uma courela de terra para semear, manter-se em certa medida ligada ao campo, bem como remediar o sustento.

TB, acabou, pois, por se transformar no “celeiro” da ilha, onde, nos anos de chuva, se produz um pouco de tudo, a começar pelo milho, mas também feijões, bem como abóbora e “fóga”. Já como especialidade da Ilha, costuma-se ver melões e melancias espalhados pelas hortas, para enorme regozijo das famílias.

É sem dúvida um dos mais emblemáticos elementos identitários da ilha, que transmite a ideia de confluência, de comunhão de esforços, para o trabalho na enxada, mas também para a colheita, razão pela qual o salense dele fala com afecto, nostalgia e orgulho, a justificar uma breve incursão às suas origens.

2.A referência mais antiga relativa a TB é a de Duarte Costa, Delegado de Saúde, num relatório de 1867, no qual trata essa zona como “Torrão feracíssimo em anos de bôas chuvas, nas quaes se torna tão rico de bons pastos, que não é raro ver alli três a quatro mil cabeças de gado”. E acrescenta: “É talvez a ilha que melhores pastos possue”.

Essa informação, provinda de fonte que se tem por qualificada, está em linha com o papel que, durante muito tempo, o Sal desempenhou, enquanto ilha onde, a par da extracção do sal, a criação de animais soltos nos campos, para abate e exportação, constituía uma importante actividade económica, o que explica que os seus primeiros residentes tenham sido pastores ao serviço dos donos dos rebanhos.

Em 1913, a “Comissão Delimitadora da Área Urbana da Povoação [Santa Maria] e Terrenos de Logradouro Comum do Concelho da ilha do Sal”, criada pelo Governo Provincial, reconfirmou TB como logradouro comum, função que sempre desempenhou, e delimitou-a com as seguintes coordenadas:

“(…) A partir do sítio denominado “Poio” ao Norte para Leste até à Rocha da Salina e daí para o lado Sul até à subida da lomba do Espargo – circundando daí uma linha, que passando pelo Morrinho Curral e Lagedos vá até ao Morro leste a Oeste e daí até ao dito sítio de “Poio”.

De notar que as coordenadas fixadas pela referida Comissão conferem à TB, enquanto campo de pastagens, uma área muito superior à que nos tempos modernos lhe é atribuída como zona agrícola, estendendo-se bastante mais nos quatro sentidos dos pontos cardeais. Na altura Espargos ainda não existia, o que permitia que toda essa parte norte da ilha fosse declarada logradouro comum.

Em 1939 surge a primeira tentativa para se semear em TB, cabendo tal iniciativa a um pequeno grupo de moradores da Palmeira. Sendo terrenos do Estado, solicitaram autorização à Administração do Concelho para semear e escavar uma vala que protegesse o terreno cultivado da invasão de animais.

Infelizmente, apesar de outros palmeirenses se juntarem, posteriormente, ao grupo inicial, não conseguiram concluir a vala a tempo de impedir que as plantas fossem devoradas pelos animais, apesar do empenho dos agricultores para os afastar.

Em 1943 o processo foi retomado, sendo que, desta vez, aos da Palmeira associaram-se moradores de Pedra de Lume e Santa Maria, em número suficiente para concluir a escavação da vala iniciada em 1939 e semear no interior da área delimitada e protegida, dando lugar ao afamado Valado, ou simplesmente “Balôd”, zona considerada a mais fértil de TB.   

3. Os factos relatados por gente que participou nos trabalhos do Valado são confirmados por um Inspector da Administração do Concelho que, em 1945, de visita ao Sal, deixou escrito no relatório o seguinte:

“Visitei, acompanhado pelo Senhor Administrador, a região a Norte da Ilha, conhecida por “Terra Boa”. É uma enorme planície de 460 hectares que na época das chuvas se inunda numa área aproximadamente de 250 hectares. (…).

“A zona inundável apresenta a forma de uma elipse dentro da qual recentemente os particulares, (…) abriram um fosso rectangular de 1,30 por 1,20. Este fosso constitui um quadrado que tem, aproximadamente, de lado 500 metros e é destinado a impedir o acesso do gado ao seu interior, onde se farão as culturas. Fica-se admirado com o desaterro levado a feito por uma população, a que estava interessada no trabalho, que não é superior a 150 pessoas, considerando que foram removidos cerca de 400 metros cúbicos de terras”.

O Inspector, além de precisar as áreas da planície e da zona inundável da TB, revela as dimensões da vala, a área por ela protegida (25 hectares), bem assim o volume de terra escavada, dando uma ideia do esforço hercúleo despendido na concretização deste projecto. A esse propósito, importa ainda referir que, além da escavação da vala, os agricultores executaram a extenuante tarefa de preparar os terrenos, procedendo à remoção de “palha sóca” e “palha tól”, duas plantas cujas raízes fortes e profundas requeriam muito trabalhwo para serem arrancadas. Ao contrário da escavação da vala que foi uma tarefa colectiva, a preparação dos terrenos foi da responsabilidade de cada agricultor que passou a considerar propriedade sua o talhão limpo.

Face ao sucesso da experiência empreendida no Valado, e perante a redução do número de animais na ilha e o aumento de procura de terrenos agrícolas, anos mais tarde, deu-se início ao desbravamento de novas áreas em direcção à Tapadinha, Tapadona, Lagedo, Espinha e “Zóna Burmedja”, até à ocupação de toda a zona inundável citada pelo Inspector (aproximadamente 250 hectares) e que corresponde ao que hoje se considera TB, propriamente dita.

Uma vez que os terrenos pertenciam ao Estado, a partir de determinado momento – alguns recibos encontrados referem-se a 1957 -, os agricultores foram obrigados a proceder à legalização dos respectivos talhões na Repartição de Finanças, passando a pagar anualmente o foro correspondente à área ocupada. Praticamente todos tinham os seus terrenos legalizados, pagando os respectivos foros, pelo menos até Independência, altura em que, devido à seca prolongada, o Estado os isentou dessa obrigação, acabando tal prática por cair em desuso, com o decorrer dos anos.

4.Contrariando a imagem positiva de TB que o salense construiu, preservou e divulgou, assiste-se hoje a uma tendência para a consentida degradação dessa zona, processo que seria capaz de suscitar indignação e revolta na geração que, com suor, lançou as fundações para a conversão desse campo de pastagem numa zona agrícola por excelência, aonde prevalecia a harmonia, bem como o respeito pelo espaço e pelo trabalho de cada um.

Efectivamente, a geração actual, ligada, em grande medida, ao sector de serviços e habituada à vida urbana, não tem o apego à terra nem a motivação que animava os pais e avôs para se dedicar à agricultura; o terreno foi invadido por acácia americana, que vai sufocando a área cultivável; regista-se a resignação dos legítimos donos das propriedades à sua ocupação por quem não detém qualquer título para o efeito; chegado o momento da colheita, surge o sério problema dos meliantes, que fazem das suas em plena luz do dia, até na presença do donos, que chegam a ser ameaçados e humilhados, como nunca se podia imaginar; os animais são soltos ainda antes de se concluir a colheita de feijões e ervilhas, prejudicando seriamente os agricultores.

Tudo isso vem ocorrendo, sem que as autoridades competentes se tenham mostrado até agora à altura de pôr cobro à situação e, sobretudo, de acudir tempestivamente aos que necessitam da sua pronta intervenção

Por conseguinte, embora ainda haja muita gente apegada à TB e disponível para manter viva a tradição, é também já significativo o número daqueles que já não se mostram predispostos a ir trabalhar a terra, “para outros virem se aproveitar”, como se ouve amiúde.

É esta, de facto, a encruzilhada em que se encontra TB: ou se consegue reverter, com medidas adequadas e consistentes, essa tendência para a sua contínua degradação, a começar pela dinamização da associação de agricultores, por forma a que seja capaz de definir e implementar, com o indispensável apoio das autoridades, um plano de emergência para essa zona; ou iremos assistir ao progressivo definhamento do espaço que foi durante anos o rosto da agricultura na Ilha do Sal, a que está muito ligada a alma do salense.

Essa segunda alternativa representaria o desmerecimento da actual geração do esforço que os antepassados fizeram para legar tão rico património.

P.S.: O texto foi elaborado com base na consulta de documentos antigos do Município do Sal e numa entrevista com Gastão Barros Ramos, um dos desbravadores da Terra Boa.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 784, de 08 de Setembro de 2022

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