PUB

Colunistas

Dialéctica do colonialismo em África: A filosofia anti-colonial nos PALOP-I*

Por: Luís Kandjimbo**

Durante a presente década do século, tem vindo a ser assinalado o centenário de alguns dos mais representativos escritores, intelectuais anti-coloniais e líderes dos Movimentos de Libertação Nacional de Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, tais como, Eduardo Mondlane (Moçambique, 1920-1969), Agostinho Neto (Angola, 1922-1979), Amílcar Cabral (Cabo-Verde e Guiné-Bissau, 1924-1973), José Craveirinha (Moçambique, 1922-2003), António Jacinto (Angola, 1924-1991), Holden Roberto (Angola, 1923-2007). Presta-se uma homenagem à gesta dos nossos povos, se dedicarmos alguns momentos de reflexão a problemas relativos à nossa memória colectiva. É o que pretendo com esta conversa.

Movimentos de Libertação Nacional

Na década de 80 do século passado, um pouco antes da sua morte, o intelectual e político moçambicano, Aquino de Bragança (1924-1986) e o sociólogo norte-americano, Immanuel Wallerstein (1930-2019), organizaram a edição inglesa de três volumes de documentos produzidos por Movimentos de Libertação Nacional, intitulada «The African Liberation Reader». Com os referidos volumes pretendia-se justificar a existência de um discurso anti-colonial e correspondente acção, nos cinco Países Africanos de Língua Portuguesa e nos restantes países da África Austral, nomeadamente, África do Sul, Namíbia e Zimbabwe.

Do ponto de vista da sua estrutura, apresentam a seguinte moldura temática: o primeiro volume, «Anatomia do Colonialismo»; segundo volume, «Movimentos de Libertação Nacional»; terceiro volume, «Estratégia de Libertação». No dizer dos editores, tratava-se de uma colecção de documentos, originalmente iniciada em 1973, tendo sido concluída por ocasião dos acontecimentos políticos que abalaram Portugal em 25 de Abril de 1974. A este evento seguiram-se as independências de todas as ex-colónias portuguesas em 1975.

A justificação da iniciativa assentava no fundamento segundo o qual «a independência das ex-colónias portuguesas constituiu uma clara viragem no desenvolvimento histórico dos seus movimentos de libertação nacional». E essa luta teria a sua continuação na África Austral. Consideravam que a revolução portuguesa  e as independências, em particular, de Angola e Moçambique, constituíam um histórico ponto de viragem para os movimentos de libertação nacional do Zimbabwe, Namíbia e África do Sul. Tencionavam «revigorar esta memória histórica que, esperançosamente, pode servir como uma ferramenta da própria luta em curso».

Representação e produção textual

Por conseguinte, Aquino de Bragança e Immanuel Wallerstein entendiam que os Movimentos de Libertação Nacional, enquanto manifestações representativas do anti-colonialismo, não surgiam como actos espontâneos produzidos por um super-homem ou por instigação de alguma potência estrangeira. Constituíam uma consequência do descontentamento popular, após longos períodos de combate, exprimindo aspirações profundas e representando as forças sociais moldadas pelas circunstâncias históricas.

Nas antigas potências coloniais, é comum confundir-se a acção dos «pensadores anticoloniais» locais europeus com os pensadores que reproduziam o discurso de resistência secular contra colonialismo. Por essa razão, em França o anticolonialismo chegou a ser qualificado como uma «filosofia de acção, projectada para analisar as condições existentes e propor soluções imediatas para a terrível situação daqueles que viviam sob o domínio colonial», ao ponto de se admitir que os pensadores anti-coloniais eram apenas os europeus, como se tivessem legitimidade para pensar e falar em nome dos povos colonizados.

Os documentos coligidos por Aquino de Bragança e Immanuel Wallerstein proporcionam uma oportunidade ímpar que permite conhecer a actividade desenvolvida pelos Movimentos de Libertação Nacional e seus agentes, em prol da acção anti-colonial, especialmente a produção textual, reveladora de um discurso político e ideológico suportado por crenças numa causa que visava combater o colonialismo, tendo em vista a autodeterminação dos povos e a conquista da independência.

Exclusão filosófica

Tem razão o filósofo nigeriano, Olufemi Taiwo, quando afirma que o colonialismo é uma forma de exclusão filosófica. Esta é a razão pela qual os estudos sobre colonialismo em África implicam o estudo da modernidade, revelando-se necessário distinguir colonialismo de modernidade.

Olufemi Taiwo acrescenta que a necessária investigação da história do colonialismo e seus fundamentos filosóficos revela que a historicidade é crucial para desvendar o seu impacto em países que experimentaram uma ou outra forma de colonialismo. Por isso, sustenta que perante a devastação sofrida durante o período colonial, a recuperação de África foi lenta, quando comparada com a prosperidade de outras colónias. Tal facto ilustra a especificidade do colonialismo em África.

Pretendendo levar a sério a historicidade do colonialismo e explorar seus fundamentos filosóficos, o filósofo nigeriano defende que «a genealogia da modernidade em África é anterior ao colonialismo». A negação disso só pode ocorrer se se tomar o colonialismo como referência de todos os fenómenos das aventuras europeias em África, ignorando-se os subsídios da história. Os documentos coligidos por Aquino de Bragança e Immanuel Wallerstein vêm demonstrar a importância de contar com as fontes da história anti-colonial que fazem prova da marginalização filosófica dos Africanos.

Temática do anti-colonialismo

O tópico desta conversa está associado ao discurso e à acção anti-colonial, enquanto objectos de uma sistemática abordagem reflexiva de que possa resultar a exploração temática do anti-colonialismo. Portanto, trata-se de um fenómeno histórico que deve ser caracterizado pelo facto de não ser redutível a qualquer tipo de qualificação benigna do próprio sistema colonial.

A interpretação segundo a qual o anticolonialismo africano é inseparável do colonialismo europeu deve suscitar cautelas, no que diz respeito à determinação do sentido da alienação e da dialéctica do sistema colonial e do colonialismo, enquanto ideologia.

Por essa razão, os anti-colonialismos africanos dos PALOP não eram ideologias, correntes de pensamento contrárias aos colonialismos europeus, por força de automatismos. Isto é, à luz de uma dialéctica da alienação, o colonialismo não era um fenómeno unitário, na medida em que as comunidades humanas e territórios africanos colonizados constituíam contrários do colonialismo europeu na sua essência. No contexto de tais contradições, a acção anti-colonial configurava a identidade de um outro sujeito de discurso, não podendo o anti-colonialismo ser uma «corrente minoritária no seio das metrópoles», tal como entendia o cientista político francês, Marcel Merle (1923-2003). Há que relativizar o sentido com que se opera e que lhe é atribuído, tendo em conta os contextos históricos, políticos e culturais. Deve evitar-se qualquer generalização do modelo colonial francês, por exemplo, ou outro.

Deste modo, é refutável a perspectiva sustentada por Marcel Merle, no texto que publicou no dossier «Le Livre Noir du Colonialisme. XVI-XXI Siècle: De l’Extermination à la Repentance» (O Livro Negro do Colonialismo. Século XVI-XXI: Do Extermínio ao Arrependimento), organizado sob a direcção do historiador francês Marc Ferro (1924-2021).

Acção anti-colonial

A acção anti-colonial implica a existência de agentes e acções ou eventos produzidos, fora das lógicas que estruturam os aparelhos do sistema colonial, num contexto em que, recorrendo aos seus dispositivos de poder, determinados Estados impõem a sua vontade a comunidades e povos diferentes, em detrimento da sua autodeterminação. Nisto se resume a situação colonial.

Se operarmos com o critério do compromisso ontológico do filósofo norte-americano, W.O.Quine (1908-2000),  segundo o qual «to be is to be the value of a variable» (ser é ser o valor de uma variável), verifica-se que a ontologia do anti-colonialismo africano tem outros referentes, quando comparado com as filosofias anti-coloniais de intelectuais europeus, na medida em que estes produzem um discurso ao abrigo de outras subjectividades.

Deste modo, justifica-se a seguinte pergunta: Qual a natureza da acção anti-colonial entendida como comportamento colectivo para o qual contribuem agentes individuais? A resposta permite concluir que a teleologia da acção anti-colonial nada tem a ver com o colonialismo. Por isso, não se compreende a associação que se estabelece entre as teorias anticoloniais e as teorias pós-coloniais, além da proliferação de estudos inscritos no âmbito do pós-colonialismo, um novo campo disciplinar cuja denominação obedece a uma lógica de periodização histórica em cujo centro está o conceito de colonialismo. É que na dialéctica do colonialismo o prefixo «pós» não sugere qualquer ideia do seu contrário. A prova pode ser encontrada na semântica de sete palavras da língua portuguesa, que, devido ao seu radical, pertencem a mesma família, nomeadamente, colonial, anti-colonial, colonialismo, anti-colonialismo, colonização, descolonização e pós-colonialismo. Apenas a última não forma um par dialéctico.

Filosofia anti-colonial

Enquanto ferramenta teórica e analítica, a filosofia anti-colonial comporta uma estrutura temática diversa, apesar da focagem centrada nos processos sociais e discursos que conduzem à liquidação do domínio colonial. Nessa estrutura temática a cultura e a política gozam de primazia. Não é em vão que os intelectuais, os escritores e os políticos ocupem lugares de destaque na produção do discurso anti-colonial.

Parece ser um equívoco indefensável considerar que todas as filosofias anti-coloniais revelam uma preocupação com o mundo após a liquidação do colonialismo. Neste sentido, a conquista da independência nacional significaria a apologia de um mundo pós-colonial. Curiosamente, este mundo imaginário é aquele que emerge nas capitais dos antigos impérios coloniais. Donde o pós-colonialismo representa a teoria sobre a nostalgia que se cultiva acerca dos territórios perdidos.

A sua fortuna académica, do ponto de vista dialéctico, deve-se a um pensamento que revela os dramas das ruínas deixadas pela queda dos impérios coloniais cuja unidade era uma quimera. Por conseguinte, a filosofia anti-colonial constitui-se como base legitimadora de uma autodeterminação que não pode inspirar qualquer irredentismo luso-tropicalista com ressonâncias de um saudosismo colonial.

Alienação

Portanto, numa perspectiva diacrónica, o discurso anti-colonial, enquanto alienação, revela-se como degrau do desenvolvimento lógico dessa presumível unidade do colonialismo. A desintegração anti-colonial originária permite perceber que as identidades representadas pelo colonialismo coexistem permanentemente com as alteridades do anti-colonialismo. No dizer do filósofo alemão, G.W.F. Hegel (1770-1831), «um oposto vivifica o outro; cada um, através da sua alienação, dá subsistência ao outro, e dele igualmente a recebe». Admite-se a possibilidade de a alienação alienar-se a si mesma, projectando-se a partir daí o momento de superação das contradições. Os Movimentos de Libertação Nacional representam essa superação.

*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 15 de Janeiro, aqui republicado com a autorização do autor.

** Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 803, de 19 de Janeiro de 2023

PUB

PUB

PUB

To Top