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Francis Fukuyama e a guerra na Ucrânia

Por: Adriano Miranda Lima

Francis Fukuyama escreveu, em 17/10/2022, na revista The Atlantic, um artigo de opinião a propósito do actual regime russo e da guerra que assola a terra ucraniana.

Com o  título de “More proof that this really is the End of History” (Mais provas de que este é realmente o Fim da História), a sua epígrafe é: “ao longo do ano passado, tornou-se evidente que existem fraquezas fundamentais no seio de Estados autoritários aparentemente fortes”.

Fukuyama reitera sua tese sobre “Fim da História”

Recorde-se que Fukuyama, cientista político e economista norte-americano,  publicou, em 1989, na revista The National Interest, um ensaio teórico – na área da filosofia da História – que intitulou de “The end of History” (O Fim da História), ao aperceber-se de sinais anunciadores do fim da Guerra Fria, e quando ainda não pressentia que iria ocorrer a implosão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Três anos depois, em 1992, expandiria o conteúdo do seu ensaio no livro que editou com o título de “The End of History and the Last Man (O Fim da História e o Último Homem).

A tese de Fukuyama suscitou na altura muita polémica, alguma dela algo equívoca e distorcendo o seu pensamento. O argumento era que o trajecto que a sociedade moderna havia até então percorrido não parecia oferecer melhor alternativa ao progresso humano do que o sistema político democrático e a economia de mercado.

Baseava-se na derrota dos regimes totalitários do século XX e no triunfo dos regimes democráticos, e, mais concretamente, no falhanço da economia de planificação estatal do regime soviético e no  facto de a própria China de Deng Xiaoping, rendida à realidade, ter decidido incorporar no seu sistema uma parcela importante de economia de mercado, cuja evolução futura bem se conhece.

Um erro que os críticos mais acérrimos de Fukuyama cometeram foi interpretar a tese do cientista americano como traduzindo uma afirmação peremptória, quando, na verdade, o que ele fez foi formular uma interrogação, ou hipótese, qual seja, o saber se haveria alternativas credíveis à democracia liberal e à economia de mercado no curso futuro da história. 

Até porque deixou claro que a vitória do liberalismo é um processo que ocorre primacialmente no domínio das ideias, ou da consciência, antes de se firmar no mundo real das materializações.

Liberdade como elemento estruturante  da sociedade

Contudo, importa lembrar que o “Fim da História” é um processo iniciado por Hegel, que, na sua teoria sobre o progresso da história da civilização, concebe o que designa por “Estado homogéneo universal”, que é a consagração generalizada do direito universal à liberdade e a legitimação de um sistema de governo ou poder político apenas mediante a aceitação ou aprovação dos cidadãos, o que actualmente se designa como escrutínio eleitoral.

Está implícita nestes dois princípios basilares toda uma filosofia política, de inconfundível fundamento moral, que enfatiza a liberdade como um elemento estruturante da sociedade e da organização do Estado, no respeito pelas leis e tendo o homem e os seus legítimos direitos como um valor inquestionável.

Daí que para Fukuyama, e citando textualmente palavras suas, “há razões poderosas para acreditar que é essa ideia que irá governar o mundo real no longo prazo”.

Portanto, não serão os eventos políticos que aconteceriam logo a seguir, e vários foram, que retiram validade à sua tese, concebida numa perspectiva de futuro e embasada no conhecimento das vicissitudes da história conflituosa da humanidade ao longo de séculos e milénios.

Assim, retomando o recente artigo deste autor referenciado logo no início, a actual  guerra na Ucrânia, não obstante poder, por definição  teórica, espoletar o regresso da Guerra Fria cujo fim se julgava selar precisamente o “Fim da História”, para ele só confirma a sua tese. 

Com efeito, nas palavras de Fukuyama, a “Rússia e a China têm argumentado que a democracia liberal está em declínio a longo prazo”, pelo que defendem que só a tipologia de governo autoritário e musculado que os seus regimes perfilham é capaz  de operar as realizações em que os seus rivais hesitam e fracassam.

Consequências catastróficas da concentração do poder num único líder

Porém, o autor alega exactamente o contrário ao explicar quão ilusória é a convicção de liderança forte da parte desses estados, porque os poderes dos seus líderes “não estão limitados por leis ou freios e contrapesos constitucionais”. E o autor do Fim da História afirma que em vez de representar fraqueza, limitação ou constrangimento, a supressão de discussão colegial e debate democrático em torno dos problemas, de par com a ausência de mecanismos de responsabilização, tornam superficial, falso ou simplesmente aparente o apoio ao líder, sendo uma questão de tempo o desgaste e a  erosão do seu poder irrestrito.

Diz Fukuyama que “a concentração do poder nas mãos de um único líder no topo, praticamente garante uma tomada de decisão de baixa qualidade e, com o tempo, produzirá consequências verdadeiramente catastróficas”. Aliás, basta revisitar a história do século XX para comprovar a falência desastrosa e ruinosa para os povos e para a humanidade em geral das lideranças autoritárias e dos regimes totalitários. O Nazismo e o Fascismo, assim como o feroz dirigismo comunista de Stalin e Mao Tsé-Tung são das páginas mais trágicas e mais sombrias da história da humanidade.

A actualidade dos acontecimentos na Rússia é o exemplo mesmo à mão de semear para ilustrar o insucesso do poder autocrático e à revelia dos mais elementares princípios que regem a democracia liberal. O presidente Vladimir Putin detém todo o poder porque a Duma não passa de um cenário preenchido por figurantes e paus mandados. Até mesmo na antiga União Soviética havia um politburo que sancionava as decisões do secretário-geral. 

Fraquezas, vícios e debilidades do regime russo

Agora, com a invasão e agressão militar à Ucrânia, vieram à tona as fraquezas, os vícios e as debilidades do regime russo, como a cleptocracia e a  corrupção, e a incompetência e ineficiência do funcionamento das suas forças armadas. E o resultado é “o erro estratégico cometido por Putin e de que não há memória”, conforme sublinha Fukuyama.

Quanto à China, aconteceu recentemente o que não auspicia nada de positivo para o futuro do seu regime político. Ao passo que o Partido Comunista Chinês, sob a direcção de Deng Xiaoping, tinha estabelecido regras para um sistema de liderança colectiva, a fim de evitar o poder absoluto de um único líder, como sucedeu com Mao Tsé-Tung, bem recentemente Xi  Jinping alterou tudo isso para se entronizar como um novo líder totalitário.

E são esses regimes de poder absoluto que têm o desplante de criticar a democracia liberal, não se dando conta de estarem ao arrepio da História. Reeditam o absolutismo derrogado pelo Iluminismo que emergiu na Europa no século XVIII abrindo caminho para  o progresso e a modernidade.

O apontar defeitos à democracia liberal não passa de encenação, com o intuito de ocultar a incapacidade política e sociológica de governar sociedades cada vez mais conscientes da sua liberdade e dos seus direitos cívicos  e de sonhar com um mundo mais próspero e mais pacífico.

Por conseguinte, Fukuyama está certo quando vê no actual conflito na Ucrânia “mais uma prova de que é realmente o Fim da História”, na exacta medida em que acredita que o regime político que o propiciou, reeditando estratégias soterradas pelo tempo, não vai ter longevidade.

Tomar, 31 de Outubro de 2021

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 792, de 03 de Novembro de 2022

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