PUB

Convidados

A nossa justiça está moribunda

Por: Germano Almeida

Um dos cartazes levados pelos manifestantes que em Santo Antão desfilaram em repúdio à prisão do deputado Amadeu Oliveira dizia “A justiça cabo-verdiana está de luto”. Mas eu acredito que não seja assim, na realidade a justiça cabo-verdiana está moribunda. Por ação direta de alguns magistrados e por omissão direta das demais autoridades do país que, por conveniência ou simplesmente por comodidade, levam ao extremo o falso conceito de separação de poderes, funcionando cada um no seu quintal e não interferindo no do vizinho para que não ocorra a este opinar sobre o dele.

Porém, esse conceito e essa prática têm necessariamente que ser erradas. É que nós vivemos num país, numa sociedade, onde as instituições existentes trabalham, ou pretendem trabalhar, convergindo para o bem-estar dos cidadãos em geral, mas também em particular. Ora se é assim, não faz sentido que as pessoas que tomaram sobre si a responsabilidade de nos representar ou governar, se mantenham indiferentes vendo o Tribunal de Relação de Barlavento prorrogar por mais quatro meses a prisão do deputado Amadeu Oliveira e continuarem a assobiar p’ro ar como se essa violência pudesse ser a coisa mais normal deste mundo.

Porque essa é uma violência que nenhuma separação de poderes justifica aceitar, porque é uma violência contra a própria dignidade da pessoa humana, contra a própria dignidade dos juízes que a decretaram, contra a dignidade dos que dizem que lutaram para ter poder porque queriam proteger-nos do arbítrio, da injustiça, dessa gravíssima e muito lesiva forma de corrupção que é o abuso do poder. E foi o que os juízes da Relação de Barlavento fizeram: usar a lei para agir como ditadores impiedosos!

Bastará a simples pergunta, Porquê?, para fazer desmanchar o castelo de cartas construído à volta da cognominada “complexidade do processo” em nome da qual se prorrogou a prisão do Amadeu.

Dizem-me que foi o procurador-geral a pedir essa prorrogação, em nome dessa famosa complexidade. Complexidade que no caso se aceita, porque ela é evidente: não terem ainda os juízes descoberto a fórmula que lhes poderá conduzir à condenação de Amadeu por um crime contra a segurança do Estado, melhor, um crime de atentado ao Estado de direito.

Mas antes de mais, deve-se estranhar que o pedido de prorrogação da prisão do Amadeu tenha partido do procurador-geral quando o processo está já em julgamento, portanto fora do poder do ministério público. Mas concedendo que tenha sido assim, a lei exige que razões muito ponderosas e até mesmo poderosas sejam invocadas para justificar mais esse atropelo ao direito fundamental que é o direito à liberdade.  Diz o CPP, quanto a esse pedido, que devem “ser sempre particularmente motivados o requerimento e a decisão” da prorrogação da prisão preventiva. É lógico, a prisão preventiva nunca deve ser decretada levianamente.

Dizem-me que para a justificar, os juízes invocaram perigo de fuga. Porém, todos nós sabemos que isso é pura brincadeira, um momento de humor dos venerandos juízes da Relação de Barlavento que igualmente muitas vezes não se têm detido diante do maior ridículo. É que podiam ter-se lembrado do “risco de continuação da atividade criminosa”, mais plausível na pessoa do deputado Amadeu Oliveira, pois que não creio que até agora se tenha deixado vergar pela sanha que impunemente vem sendo exercida contra ele.

  As nossas autoridades deviam ter o bom senso de repararem nas manifestações a favor do Amadeu, que aparecem das maneiras as mais diversas desde as redes sociais à rua. É que direito é sobretudo bom senso e qualquer pessoa com um mínimo de bom senso, certamente que afora os juízes da Relação de Barlavento, vê e diz que o castigo que vem sendo aplicado ao Amadeu Oliveira é excessivo e violenta a consciência de qualquer pessoa normal.

Faço, por isso, mais um apelo, e não direi que seja o último, ao senhor presidente da República, de quem com muita honra fui mandatário nacional da sua candidatura. Em nome do manifesto eleitoral que apresentou e pelo qual estivemos consigo, tem o dever de não ficar calado diante da ignomínia que se está a praticar contra um cidadão deste país. Lembro-lhe as suas palavras: “consolidação do estado de direito democrático, reforço da confiança na justiça”.

“O presidente da República deve funcionar como ponte mediador entre o povo e os representantes eleitos, estimulando o diálogo e a troca de ideias com torno do aprofundamento da democracia e do Estado de direito”. Mais: “A eficácia e eficiência do funcionamento das instituições judiciais é um importante e decisivo fator para garantir o respeito e, quando for o caso, restaurar os direitos fundamentais violados, como o direito à honra, à intimidade da vida familiar, à integridade física…”

  Tudo isso e muito mais está no manifesto eleitoral do agora presidente José Maria Neves, que eu apoiei-o porque não considerei que fossem palavras vãs, antes um compromisso com o povo das ilhas, e cujo respeito por isso exigimos.

Ora o presidente da República não pode ignorar que o deputado Amadeu Oliveira foi mal preso desde o primeiro momento em que a Assembleia Nacional, de forma ilegal, autorizou a sua detenção. A partir desse ato, tem sido um corrupio, não diria já de ilegalidades, diria antes de descarado abuso de poder, como se estivéssemos numa ditadura de juízes e não num estado de direito democrático. E não mente dizer-se que essa ditadura se estende até ao Tribunal Constitucional, quanto mais não seja por omissão, pois que um pedido de apreciação da constitucionalidade sobre a prisão de Amadeu Oliveira está há meses encalhado ou a dormir nessa instância, não obstante ninguém ignorar que esse deputado está na cadeia vai para 14 meses.

E diante desse descalabro, alguém com autoridade democrática adveniente de compromissos com um eleitorado que não passou um cheque em branco, nesse caso o presidente da República, tem que ter uma palavra a dizer. Ouvi-o há dias dizer que o Governo está a fragilizar as instituições. Na verdade o que o Governo está a fazer é a banalizar as instituições, e foi pena tê-lo dito de tão longe, desde Nova York, pois que essa afirmação é tão certa e tão grave que merecia ser dita em casa, cara a cara. Certamente que os críticos do presidente continuam a achar que ele está entrando no quintal do Governo. Porém, essa acusação é apenas uma maneira de convencer o presidente da República a ser uma rainha de Inglaterra cuja função se resume a acenar cm o leque.

  O comportamento abjeto que se está a ter para com um cidadão devia primeiro envergonhar os magistrados, como envergonha grande parte dos cabo-verdianos. Algo ou muita coisa está podre neste reino de Cabo Verde dividido em muitos feudos. E a maior consequência é que o nosso povo acabou perdendo o atávico respeito que tinha pela Justiça. Agora só tem medo de cair nas mãos dos juízes.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 786, de 22 de Setembro de 2022

PUB

PUB

PUB

To Top