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Um breve olhar crítico sobre as privatizações em Cabo Verde

Por: João Serra*

Aquando do debate sobre as privatizações, ocorrido no mês de junho passado na Assembleia Nacional, foi tornado público que o Governo assumiu junto do FMI que continua comprometido com o plano de privatizações iniciado em 2018/2019, que ficou suspenso devido à pandemia, envolvendo 23 empresas.

O Executivo “pretende acelerar o processo de modo a criar condições para que o setor privado possa desempenhar, cada vez mais, um papel decisivo no desenvolvimento do país” – adiantou o Ministro das Finanças.

As próximas privatizações ou concessões visam, entre outros, os setores da água e da energia (Electra) as telecomunicações (NOSi e CV Telecom), o setor portuário (Enapor) e o aeroportuário (ASA), a produção e comercialização de medicamentos (Inpharma e Emprofac), o imobiliário (IFH), os estaleiros navais (Cabnave), os serviços postais (CTT) e a Escola de Hotelaria e Turismo.

Para o Governo, “essas reformas são necessárias para apoiar as perspetivas de crescimento, mitigar riscos fiscais e apoiar a sustentabilidade da dívida pública.”

Já para o maior partido da oposição, o PAICV, “os portos, os aeroportos, as infraestruturas de telecomunicação, de energia e mesmo de reparação naval constituem ativos estratégicos imprescindíveis para a sobrevivência do país, para a nossa conexão com o exterior e até mesmo para a nossa própria soberania”.

Por isso, esse partido é de entendimento “que a privatização das principais estruturas económicas deve ser conduzida com as cautelas exigíveis à condução de negócios públicos, com total transparência e responsabilidade, preferencialmente através de concurso público, que sem sombra de dúvida melhor protege o interesse público e permite o escrutínio da sociedade, do cidadão contribuinte e dos parceiros sociais, particularmente quando se tratam de concessões com tão longas durações que, sendo mal negociadas, podem comprometer os interesses de várias gerações.”

O debate político sobre as privatizações em Cabo Verde está de novo lançado. Tal como tem sido hábito, trata-se de um debate inquinado à partida, com o Governo a acusar o PAICV de ser contra as privatizações por ser um partido ideológico e estar agarrado a ideias ultrapassadas, contrariamente ao partido político que o suporta, o MpD, que é pragmático, sem ideologia e amigo do desenvolvimento. Por seu turno, o PAICV acusa o Governo de usar contra si a narrativa de bloqueio ideológico em relação à questão de privatizações com o propósito de somente bloquear o debate sério sobre esta matéria, sendo o próprio partido que o sustenta de inspiração ideológica neoliberal. Ademais, lembrou que o MpD, na década de 1990, procurou privatizar quase tudo, pouco se importando com a realidade do país e os interesses nacionais.

Mas será que a privatização num país em desenvolvimento, como é o caso de Cabo Verde, deverá ser vista meramente na perspetiva da dicotomia entre ideologia e pragmatismo, ou entre um privado bom gestor e indutor de desenvolvimento e um Estado mau gestor e promotor de desperdícios?

Penso que não, como se verá ao longo deste artigo.

Ideologia “versus” pragmatismo nas privatizações

Em Cabo Verde, quando se discute politicamente as privatizações, traz-se à baila, normalmente, a ideologia como lado mau e o pragmatismo como lado bom das políticas públicas, sendo os políticos que se consideram pragmáticos e sem ideologia também os que julgam melhor defender os interesses nacionais, por contraposição à cegueira e ao arcaísmo daqueles que fazem política com ideologia de esquerda.

Os partidos políticos, enquanto pilares da democracia representativa, possuem diversas visões como forma de transformar a sociedade relativamente aos seus ideais.

E a ideologia política não é mais do que uma forma de pensar a organização económica e social de uma comunidade. 

O objetivo dos partidos políticos é transformar a sociedade, procurando-se, sobretudo, uma mudança verdadeira e um compromisso com a sociedade.  Nesse quadro, um Governo que pretende ser bom tem de ser necessariamente ideológico, quer concordemos ou não com os ideais do (s) partido(s) que o suporta(m) e que ele procura concretizar.

Assim sendo, normalmente governa-se com ideologia, ou seja, sabe-se o que se quer para um país em termos das ideias e dos projetos em que se acredita. Do lado oposto, quando se governa sem ideologia, isto é, sem projeto e sem visão para a comunidade, age-se em função dos interesses pontuais, dos estímulos externos ou de fenómenos contrários ao interesse comum como, por exemplo, maior suscetibilidade à corrupção.

Na governação de um país, também pode e deve haver pragmatismo, sendo este entendido como perceção da realidade e pertinência de atuação em conformidade. No entanto, não haverá pragmatismo sem ideologia, na medida em que não é possível perceber a realidade, nomeadamente política, económica e social num contexto caraterizado por um vazio total da ideologia.

Pelo que, abordar as privatizações na perspetiva da dicotomia entre pragmatismo (lado bom) e ideologia (lado mau) é viciar a discussão política, estéril, entre os que se consideram realistas e tecnocratas (sem ideologia) e os tidos por irrealistas e irresponsáveis (com ideologia). Todo e qualquer tipo de privatização tem subjacente, necessariamente, uma determinada ideologia. O pragmatismo, enquanto atuação em sintonia com a realidade percecionada, apenas ajuda na formatação da melhor decisão.

Assim, em política, socorrer-se do pragmatismo contra a ideologia é não só fugir ao saudável combate de ideias, como também é insistir num discurso pouco democrático, visando criar condicionalismos mentais no adversário político.

Felizmente, vamos tendo governos mais ou menos de esquerda ou de direita, mas com ideologia, traduzida na respetiva visão para Cabo Verde do presente e do futuro, de modo que não faz sentido tentar condicionar o debate político em torno de uma matéria de suma importância para o país, como é o caso das privatizações, com questões de pragmatismo como suposto lado bom e de ideologia enquanto alegado lado mau.

O que realmente importa não é a natureza ideológica ou não das privatizações, mas sim analisar e discutir de forma séria, objetiva e rigorosa as vantagens e desvantagens das privatizações, no seu todo e de cada unidade produtiva a ser privatizada em particular, para a dinamização da economia nacional, o desenvolvimento do tecido empresarial endógeno e a criação de empregos e de riqueza para os cabo-verdianos.

Breves considerações sobre as privatizações ocorridas no final do século XX

No último quinquénio do século XX, ocorreu um forte movimento global de reformas do Estado, visando a compressão do setor público produtivo, através da alteração do posicionamento do Estado na economia dos países, reduzindo ou eliminando a sua intervenção, em favor do setor privado.

Em termos ideológicos, a redução do papel do Estado na vida económica está associada à renovação das doutrinas liberais (neoliberalismo) ocorrida nas décadas de 1980 e 1990.

As principais razões para o movimento das privatizações são, por um lado, a ineficiência das empresas públicas, ao colocarem em primeiro plano objetivos políticos e sociais em detrimento dos objetivos económico-financeiros e, por outro lado, a necessidade de reduzir os desequilíbrios orçamentais, eliminando défices do setor público produtivo e arrecadando receitas decorrentes da alienação das empresas do Estado.

Os promotores da ideia de uma redução da intervenção do Estado na economia sustentavam os seus argumentos a favor da privatização com o facto de a iniciativa privada conduzir a um crescimento da produtividade e da competitividade das empresas, permitindo aos países uma integração mais dinâmica e competitiva na economia global, com ganhos evidentes para o seu desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida das suas populações.

Esses argumentos podem ser sintetizados no seguinte: o privado é melhor gestor que o Estado.

Nos países em desenvolvimento, para além de se considerar o Estado um mau gestor, como justificação para as privatizações, às empresas públicas apontava-se a desvantagem de poderem ser utilizadas em contendas político-partidárias, designadamente servindo de “cabides de emprego” e de instrumentos para desviar recursos públicos e favorecer correligionários e apoiantes partidários.

Hoje, há um consenso entre boa parte dos economistas, e uma grande variedade de estudos aponta para a mesma conclusão, de que privatizar empresas públicas pode levar a ganho de produtividade, melhoria dos resultados e maior qualidade nos serviços prestados à população. 

Isso, porém, nem sempre é verdade, em especial para os países em desenvolvimento. É o que indica uma série de estudos feitos pelo economista Saul Estrin, pesquisador e professor da universidade britânica “The London School of Economics and Political Science” – uma das principais escolas de economia do mundo – e citados pelo jornal brasileiro online “UOL”, edição de 09 de fevereiro de 2019.

“Nesses países, a governança das empresas privadas, geralmente, não é tão boa, porque os mercados de capitais são menos eficientes e competitivos do que nos países ricos. Por outro lado, também pode haver problemas de governança nas empresas que têm o Estado como dono. Os resultados na melhoria da eficiência, portanto, são muito mais variados. Privatizar pode trazer ganhos ou não. O que os nossos estudos sugerem é que, em termos médios, a privatização não melhora a performance. Quer isso dizer, que a gestão privada é muitas vezes tão má quanto a pública”, disse Estrin, que é especialista em economias emergentes e pesquisa os efeitos das privatizações no que chama de “países subestudados”. 

Segundo ele, há sólidas conclusões de estudos académicos que apontam para melhoria na eficiência das empresas que foram passadas do controlo estatal para o privado. O problema, argumenta, é que a maior parte dessa bibliografia foi produzida nos anos de 1980 e 1990, quando o mundo passou pela sua primeira grande onda de privatizações, e é focada essencialmente nas economias desenvolvidas, nas quais a “moda” começou liderada por países como EUA e Reino Unido.

A existência de sistemas regulatórios débeis e de mercados menos competitivos são alguns dos entraves mencionados para o fraco desempenho da iniciativa privada nos países mais pobres, enquanto os efeitos negativos das privatizações, como aumento da desigualdade, ganham mais peso.

Como, por outro lado, a transparência e a eficiência estatal também costumam ser baixa, não há uma resposta única e certa para esse grupo de países. “Os resultados são muito mais variados. Privatizar pode trazer ganhos ou não”, disse Estrin.

“Mas também há evidências analíticas que apontam que as empresas estatais, particularmente nos países desenvolvidos, podem sair-se mais ou menos tão bem quanto as empresas privadas se elas tiverem boa governança, forem bem geridas e se o Estado colocar para elas os mesmos objetivos que o setor privado colocaria” – concluiu.

Breve balanço das privatizações em Cabo Verde

Em Cabo Verde, iniciou-se, na década de 1990, um programa de privatizações, levado a cabo pelos Governos do MpD, cujo principal objetivo era a dinamização da economia nacional e a consolidação orçamental, através: (i) da melhoria da situação financeira das empresas e da sua competitividade; (ii) do desenvolvimento do mercado de capitais; e (iii) da redução do défice orçamental e da dívida pública.

No âmbito desse programa, o Estado decidiu privatizar um vasto leque de empresas, incluindo empresas estratégicas e importantes dos setores de energia, telecomunicações, banca e seguros.

Com a vaga de privatizações na década de 1990, Cabo Verde abriu mão de setores estratégicos como mais nenhum país do mundo, os quais foram alienados a empresas públicas portuguesas, ou seja, continuaram a ser detidas pelo Estado só que estrangeiro: Electra à EDP, CVTelecom à PT, BCA e Garantia à CGD.

A participação do Tesouro na CECV foi vendida ao parceiro estratégico Banco Montepio, de Portugal.

Muitas vozes levantaram-se contra essa vaga de privatizações, argumentando que se foi longe demais. Na sua perspetiva, o Estado não precisava de ser acionista único, mas não devia ter-se retirado totalmente de empresas-baluarte da economia nacional como a CVTelecom, Electra, BCA e a própria CECV.

No total, de 1992 a 2005 foram privatizadas 50 empresas, tendo sido arrecadado o montante de cerca 80 milhões de dólares dos EUA.

De uma forma geral, o balanço dos efeitos das privatizações na economia de Cabo Verde pode ser considerado parcialmente positivo, pois significou uma mudança no mercado de serviços e bens, forçando algumas mudanças na cultura organizacional, o que contribuiu para a melhoria da organização e gestão a nível do país.

As privatizações foram, também, de alguma ajuda para melhorar a modernização e inovação da economia. Empresas como a CVTelecom, BCA, CECV e Garantia aumentaram os seus níveis de desempenho, modernização e inovação após serem privatizadas.

No entanto, as privatizações não renderam os resultados esperados em outras questões importantes. Por exemplo:

– Não ajudou a eliminar a dívida pública interna como se esperava, na medida em que grande parte do encaixe financeiro realizado não foi para o “Trust Fund”, devido a dificuldades de tesouraria por que passava o país na altura.

– Como resultado das privatizações, não foi criado um mercado de capitais que se desenvolveu, amadureceu e se tornou credível, estando, basicamente, limitado ao mercado primário, particularmente de dívida pública. O mercado secundário de capitais continua, praticamente, inexistente.

– Nem todas as empresas tiveram melhorias no seu desempenho após serem privatizadas. É o caso, a título exemplificativo, da Electra que teve um declínio no seu desempenho, obrigando a sua renacionalização, em 2005.

Muitas vozes críticas questionam o “timing” e as formas como certas empresas estratégicas para o país foram, então, alienadas, sem que para tal houvesse uma reflexão estratégica. Além disso, reclamam do facto de a participação dos nacionais nas privatizações ter sido pouco significativa, por falta de medidas de política adequadas.

Para outras vozes, não tem cabimento o argumento, outrora evocado, segundo o qual o Estado é um mau gestor, pelo facto de as empresas públicas servirem como local de trabalho dos amigos e correligionários do partido que está no Governo, uma vez que, depois de privatizadas, continuaram a haver na gestão destas empresas “amigos” do partido no poder na mesma, sem que se lhes reconheça competências técnicas e outras necessárias a uma gestão sã e prudente.

Ultimamente, já com o Governo novamente suportado pelo MpD, o Estado reassumiu o controlo acionista da CVTelecom e da CECV, em resultado das dificuldades e do desinteresse demonstrados pelos acionistas estratégicos. Do mesmo modo, a TACV que também fora privatizada por esse Governo, voltou a ser renacionalizada, por causa de incumprimentos vários e desinteresse da parte do acionista privado maioritário, a Icelander – uma empresa da Islândia, sendo, eventualmente, o caso de maior insucesso de privatizações até hoje feita em Cabo Verde.

Em face disso tudo, alguns economistas e analistas políticos, embora não sendo contra as privatizações, vêm com bastante preocupação a intenção do Governo de querer privatizar um total de 23 empresas, sem que antes tenha sido realizado um amplo debate sobre quais devem ser as áreas estratégicas, ainda existentes, que deverão continuar no domínio público, por um lado. Por outro, as privatizações voltaram à baila num período de crise e, novamente, de necessidades financeiras, o que pode impactar negativamente as alienações a serem feitas.

No entanto, não se questiona a legitimação política dessa decisão de privatizar, por constar do Programa do Governo do MpD sufragado aquando das eleições legislativas de abril de 2022.

Praia, 08 julho de 2022

*Doutor em Economia

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 776, de 14 de Julho de 2022

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