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Cabo Verde: os impactos da depreciação do euro face ao dólar dos EUA no contexto do regime cambial de paridade fixa

Por: João Serra*

Em 1998, foi assinado o Acordo de Cooperação Cambial (ACC) entre a República de Cabo Verde e a República Portuguesa, tendo como objetivos primordiais a promoção da estabilidade macroeconómica e financeira e a abertura ao exterior do país.

Por força desse Acordo, a moeda nacional cabo-verdiana passou a estar ligada à moeda portuguesa por uma relação de paridade fixa, passando o país a dispor de um regime de câmbio fixo unilateral.

O ACC levou ao estabelecimento de uma taxa de câmbio fixa entre o escudo de Cabo Verde (ECV) e o escudo de Portugal (PTE), inicialmente de 0,55 ECV/PTE. Com a introdução do euro (EUR) e a adesão de Portugal à moeda única europeia, a conversão passou para 110,265 ECV/EUR.

Com a vinculação da moeda nacional a uma moeda estrangeira, Cabo Verde perdeu parte da autonomia em matéria de política monetária, enquanto instrumento de gestão macroeconómica. Por outras palavras, o país não deve, por exemplo, desvalorizar, administrativamente, a sua moeda para promover as exportações e a competitividade da economia. Na prática, o câmbio do escudo, face às demais moedas estrangeiras, é determinado, basicamente, em função da oscilação do euro relativamente às mesmas.

De um modo geral, os importantes e assinaláveis ganhos obtidos com o ACC suplantam os benefícios que poderiam ser gerados com a plena autonomia na condução da política monetária.

No entanto, se o regime de câmbio fixo tem como principal vantagem o controlo da inflação (dado que evita o efeito “pass-through”), bem como a previsibilidade nos negócios e no retorno do investimento estrangeiro, tem também as suas desvantagens. Estas fazem-se sentir, mormente, em períodos de grandes dificuldades económicas e, para o caso concreto de Cabo Verde, também quando há uma depreciação da moeda de ancoragem face às principais moedas internacionais.

É o que aconteceu, em 2022, com a depreciação do euro face ao dólar dos Estados Unidos da América (EUA) – doravante, apenas dólar ou USD –, impactando, ascendentemente, os valores despendidos, em moeda nacional, com as importações de bens e serviços e o pagamento do serviço da dívida externa, além do contravalor em ECV do “stock” da própria dívida pública em dólar.

Assim, tendo, em 2022, o dólar apreciado, em termos acumulados, cerca de 29% em relação ao euro, pode estimar-se, do ponto de vista meramente teórico, que o contravalor do adicional despendido em ECV para as importações e o pagamento do serviço da dívida externa em USD aproxima-se desta percentagem. Não dispondo de dados, estimo que foram, certamente, largas centenas de milhões de escudos que Cabo Verde teve que gastar a mais para acomodar as consequências do dólar mais caro.

Tal como no passado, a evolução do dólar foi multifatorial. Desta feita, destacam-se, entre as causas, numa primeira fase, o crescimento mais rápido da economia dos EUA e, mais tarde, a subida das taxas de juro pela “Federal Reserve” (Fed) – o banco central dos EUA –, a guerra na Ucrânia e a aversão ao risco.

E, como se depreende pelo já dito, com a depreciação da moeda única europeia, são necessários mais euros e, por força do regime de “peg” fixo, também mais ECV para comprar produtos importados e pagar o reembolso da dívida externa em USD.

No fim, quem paga com a depreciação do euro face ao dólar é o consumidor que vê os preços dos bens e serviços disparar e, no caso concreto de Cabo Verde, para além disso, toda a economia do país.

I – As causas que explicam a depreciação do euro relativamente ao USD, em 2022

Segundo os dados recolhidos de diversas fontes oficiais, o euro teve uma trajetória de forte depreciação em 2022, chegando a valer menos de um dólar. Todavia, a moeda única europeia teve uma leve recuperação a partir de meados de outubro, tendo terminado o ano a valer mais que o dólar, porém, com uma depreciação de 5,5% face à moeda dos EUA. 

Na verdade, em 2022, o “cross” EUR/USD cotou durante várias semanas abaixo da paridade, atingindo um mínimo de 0,9534 dólares em 28 de setembro. Em termos acumulados, o dólar apreciou cerca de 29% em relação ao euro e cerca de 28% face a um cabaz de moedas, normalmente designado de “Dollar Index”.

Recorde-se que a última vez que o euro caiu abaixo do dólar foi em novembro de 2002, quando a moeda única ainda estava na sua infância. O euro fortaleceu gradualmente e, desde então, manteve-se entre 10% a 30% acima do USD, levando consumidores, empresas e governos a acostumarem-se a esse “status quo” financeiro.  Mesmo nos piores momentos da crise da dívida soberana europeia, o euro valia mais que o dólar.

No essencial, são três os fatores que explicam a depreciação do euro relativamente ao USD, em 2022: a política monetária, a instabilidade criada com a guerra na Ucrânia e os receios de recessão na Europa.

Política Monetária

Um dos fatores que explica a apreciação do USD face ao EUR é a subida galopante da inflação – a maior das últimas três ou quatro décadas, na Europa e nos EUA –, a que se alia a forma como os bancos centrais têm respondido à mesma. A Fed tem sido mais rápida e agressiva a subir as taxas de juro de referência do que o Banco Central Europeu (BCE). Isso faz com que os investidores encontrem maior retorno na moeda dos EUA, levando-os a investir neste país.

Na verdade, apesar da inflação ser um fenómeno global, a Fed e o BCE não reagiram da mesma forma. A Fed optou por subir, de forma rápida e substancial, as taxas de juro para combater a inflação, tendo iniciado, no mês de março de 2022, um ciclo de subidas e feito quatro aumentos neste mesmo ano. Atualmente, o intervalo da “Fed funds rate” está na faixa dos 4,25% a 4,50% ao ano, que compara com o intervalo de 0% a 0,25% existente antes do início do ciclo.

Já o BCE tem tido alguns cuidados no que diz respeito à subida das taxas de juro, tendo iniciado o ciclo de aumentos apenas no mês de julho de 2022 e acabado o ano com também quatro subidas, o que fez com que a sua taxa de referência passasse de 0% para 2,5%.

A posição mais cautelosa do BCE relativamente à subida das taxas de juro prende-se, com o facto de este, por um lado, ter receio de provocar uma crise da dívida soberana (ou dívida pública) nos países mais endividados da Zona Euro (ZE) – contrariamente à Fed que não tem esse problema – e, por outro lado, tentar conter a inflação e, ao mesmo tempo, lidar com uma economia em desaceleração.

Instabilidade provocada pela guerra na Ucrânia e receios de recessão

Além da política monetária mais “hawkish” da Fed, os investidores consideram que a economia dos EUA está menos exposta a um conjunto de fenómenos, como a guerra na Ucrânia, as sanções à Rússia ou a situação da Covid-19 na China, pelo que se refugiem no USD.

Em particular, a guerra e a dependência da Europa face à energia russa – com destaque para o gás natural – aumentaram o receio de uma possível recessão no velho continente.

Como os investidores consideram que a economia da ZE está muito mais suscetível ao aumento dos preços da energia do que a economia dos EUA, terá havido cada vez mais receios em torno de um abrandamento económico mais acentuado do bloco europeu, temendo-se mesmo uma possível recessão.

Um dos sinais desse receio terá sido o facto de a Alemanha ter reportado, em 2022, o seu primeiro défice comercial mensal em 30 anos, o que evidencia que os preços da energia estão a pesar sobre as empresas da maior potência exportadora da Europa.

Essa situação vem afastando os investidores, que preferem concentrar-se nos EUA, país que está menos dependente dos preços da energia e dos combustíveis.

Portanto, se aumenta a procura dos investidores nos EUA, logo, o dólar aprecia-se, apresentando-se, assim, como uma moeda mais rentável.

Em sentido contrário, dada a crise energética e a incerteza quanto ao desfecho do conflito, o euro tende a ser menos procurado e, por isso, deprecia-se.

Em resultado de tudo isso, o USD tornou-se “caro”, tendo-se desviado, em termos fundamentais, daquilo que se pode caracterizar por valor justo (“fair value”, no original em inglês).

II – As consequências da depreciação do euro/escudo relativamente ao USD

Na prática, com o dólar a apreciar-se em relação ao euro, as importações dos países da moeda única europeia, bem como daqueles que têm a sua moeda nacional ancorada ao euro – como é o caso de Cabo Verde –  ficam mais caras. Isso significa que será preciso gastar mais euros para comprar um determinado produto e pagar em USD.

Saliente-se que, segundo o Eurostat, quase metade dos produtos importados na ZE é faturada em dólar, contra 40% comprados em euros. Já para Cabo Verde, estimo que a relação entre os produtos e serviços importados em dólar e o total das importações de bens e serviços não ultrapassará o intervalo de 20% a 25%, o que, mesmo assim, não deixará de constituir, em termos absolutos, valores relativamente avultados.

A depreciação do euro face ao dólar afeta diretamente o poder de compra do euro e, por arrastamento, do ECV.  Desde logo, porque o barril de petróleo, que é essencial para produzir gasóleo e gasolina,  é negociado em dólares. E o efeito de “bola de neve” daí resultante pode afetar toda a economia. Na prática, se os combustíveis sobem, aumentam os custos com os transportes e a indústria, refletindo-se, posteriormente, em toda a cadeia de consumo.

De igual modo, o trigo, a partir do qual se produz a farinha usada no pão, e outras matérias-primas são também negociados em dólares. Consequentemente, com a depreciação do euro, importar estes produtos fica mais caro para os países da ZE e, também, para Cabo Verde, o que se reflete, sempre, no preço a cobrar aos consumidores.

Além disso, para Cabo Verde, a depreciação do euro face ao dólar aumenta o custo do reembolso da dívida pública externa, para além de impactar o contravalor em moeda nacional do próprio “stock” de dívida externa contraída em USD. É preciso ter-se em consideração que, do total da dívida externa do país (mais de 200 mil milhões de escudos), mais de metade foi contraída junto de credores multilaterais, cerca de um quarto junto de credores comerciais e a parte restante junto de credores bilaterais, o que nos leva a assumir que o dólar tem, direta ou indiretamente, um peso relativamente acentuado, tanto na sua composição como, sobretudo, no pagamento do respetivo serviço (amortização e juros).

Todavia, a depreciação do euro face ao dólar não traz só coisas negativas. Para alguns setores da economia dos países da ZE, ela pode até ser uma coisa positiva. É o que acontece com as exportações de bens e serviços em dólar, que tendem a subir, na medida em que comprar em dólares nos países da moeda única europeia fica mais barato, tendo em conta que o dólar apreciou-se face ao euro.

O mesmo pode suceder com o turismo e o imobiliário nos países que recebem turistas e investidores do ramo imobiliário dos EUA, que podem beneficiar da depreciação do euro em relação ao dólar. Ou seja, um americano chega a um país da ZE e pode gastar mais na hotelaria ou restauração deste país. O mesmo se aplica à aquisição de imóveis, se for o caso.

Infelizmente, Cabo Verde produz e exporta muito pouco, sendo o grosso das suas exportações pago em euros e não em dólares, pelo que só, marginalmente, pode beneficiar da apreciação do dólar face ao euro/escudo, em termos de exportações. Do mesmo modo, o país quase não recebe turistas e investidores imobiliários dos EUA, não beneficiando, assim, das oportunidades criadas com a apreciação do dólar em relação ao euro/ECV, no que diz respeito a mais turistas e investimentos imobiliários dos EUA.

Porém, a apreciação do dólar face ao euro é positivo para o balanço do Banco de Cabo Verde (BCV), cujo resultado do exercício, nos últimos anos e até 2020, tem sido quase sempre negativo, por causa do chamado “resultado não realizado”.

Na verdade, o resultado do exercício do BCV tem sido fortemente influenciado pela variação cambial dos ativos expressos em dólar dos EUA, que, até 2020, representavam entre 30% a 40% dos ativos da instituição em moeda estrangeira. Para segregar e apresentar o impacto da flutuação cambial do seu ativo/passivo, o Banco apresenta, em uma linha separada, o resultado não realizado, que decorre da flutuação (apreciação ou depreciação face ao escudo) dos ativos e passivos expressos em moeda estrangeira – no caso, o dólar dos EUA – e do efeito de oscilações de preço de mercado do ouro, que à data das demonstrações financeiras não tinham sido vencidos ou vendidos, bem como a variação da participação em empresas associadas.

Por exemplo, com efeito a 30 de novembro de 2020, o resultado líquido do exercício do BCV ascendia a 2.885.316 milhares de escudos negativos derivado, sobretudo, do resultado não realizado que atingiu 2.675.232 milhares de escudos negativos, conforme consta do documento “Situação Patrimonial e Financeira”, de novembro de 2020, publicado pela instituição.

Já com referência a 30 de outubro de 2022, o resultado não realizado ascendia a 571.951 milhares de escudos positivos, não obstante uma diminuição de 734.018 milhares de escudos, em relação a igual período do ano anterior (30 de outubro de 2021), “que decorreu, essencialmente, do efeito conjunto da realização de ganhos cambiais associados à venda e vencimento de títulos estrangeiros e da redução da posição de ativos denominados em dólar dos EUA, em resultado do rebalanceamento da composição cambial para reposição do limite máximo estratégico definido para a composição cambial em USD, que no período representava cerca de 20,73% da composição dos ativos em moeda estrangeira”, segundo consta da “Situação Patrimonial e Financeira”, de outubro de 2022, também publicado no site do BCV.

Isso quer dizer, que o BCV é o grande beneficiário da apreciação do dólar face ao euro, enquanto Cabo Verde, no seu todo, é um perdedor.

Em princípio, o máximo de ciclo do dólar já terá sido feito no final de setembro de 2022. O mercado tem vindo a descontar que o ciclo de subidas de taxa de juro pela Fed estará perto do fim. E isso, por um lado, considerando os sinais de abrandamento da inflação nos EUA, inflação essa que poderá já ter atingido o seu pique em 2022. E, por outro lado, devido à possibilidade de um forte abrandamento do crescimento económico ou de uma recessão nos EUA, com as previsões macroeconómicas mais recentes a apontarem para taxas de crescimento similares às da Europa, contrariando a tese de que este continente seria muito mais afetado pela guerra na Ucrânia.

Assim, segundo os especialistas na matéria, parece ser pouco plausível uma queda “a pique” do par EUR/USD. Por exemplo, de acordo com um artigo publicado por Filipe Garcia, Economista da IMF – Informação de Mercados Financeiros, publicado a 23 Dezembro 2022, “é provável que o Euro/Dólar transacione, em 2023, consistentemente acima da paridade e com a zona de 1,10-1,15 dólares como objetivo. Em termos médios, o câmbio poderá ficar pelos 1,07-1,08 dólares em 2023, o que compararia com os cerca de 1,0530 dólares de 2022. Ou seja, se em termos médios os valores não se alterarão muito, já a tendência deverá ser bem diferente.”

Contudo, 2023 deve ser desafiador para a cotação do par EUR/USD, visto que o cenário externo ainda continua complicado, com um risco de recessão, quer na Europa quer nos EUA, e um contexto geopolítico recheado de incertezas.

Para o Governo de Cabo Verde importa, sobretudo, ter em consideração que uma eventual continuação da apreciação do dólar poderá constituir um risco orçamental durante a execução do OE2023, pela via, sobretudo, do seu impacto negativo sobre o serviço da dívida externa em USD.

Já para o BCV, importa aproveitar a oportunidade que a apreciação do dólar proporciona para uma política de maior rentabilização dos seus ativos externos expressos nesta moeda, ainda que assente no princípio da prudência, o que poderá contribuir para a melhoria da sua situação líquida.

Praia, 20 de janeiro de 2023

*Doutor em Economia

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 804, de 26 de Janeiro de 2023

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