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Cultura

Neuza de Pina, o destino de uma crioula

Neuza de Pina está bem longe daquelas a quem foram ensinadas a comer pedras, mas claramente se poderá dizer que aprendeu com o vento a bailar na desgraça para não perecer. E sobreviveu. Fez-se mulher e hoje é uma das vozes mais emblemáticas de Cabo Verde.

Neuza de Pina sobreviveu, particularmente, à brutal descaracterização familiar que a fustigou em criança. Primeiro, quando viu o pai emigrar, rumo aos Estados Unidos da América (EUA), para nunca mais voltar. E não o perdoou até aos dias de hoje.

Tinha, então, quatro anos quando deixou de saber do pai, e como um infortúnio nunca vem só, aos seis foi a vez de a mãe partir para a eternidade, deixando-a órfã, com o coração em prantos. Um câncer fulminante retirou-lhe dos braços de quem ela muito amava e de quem acabou por herdar os trilhos da cantiga, da música, da noite, enfim, da boémia e do fazer-se pela própria vida.

Justamente aqui, quando abordada pela Rádio Alfa e pelo A NAÇÃO, Neuza de Pina recata-se um pouco e vacila, mas sempre vai falando numa mulher batalhadora, mas notívaga, que veio da ilha do Fogo para a Praia, onde fez dos cantarolares pela cidade e pelos subúrbios em bares, cafés, pubs e outros sítios um antídoto às contrariedades da vida de uma mãe solteira, frágil, desamparada, flagelada pela pobreza, 24 horas por dia.

Nova vida com a madrinha

De modo que quando a mãe faleceu, ela ficou praticamente sozinha, valendo-se o aforismo popular “baka sen rabu Nhordêus qui tá bana”. Sem um familiar mais próximo e na iminência de ficar por aí, ao Deus dará, ou regressar ao Fogo, ilha onde nunca tinha estado antes (ela nasceu na Praia) acabou entregue aos cuidados da madrinha, uma cozinheira de escola, que também confecionava e vendia doces nas horas vagas, em busca de reforço ao “pão-nosso-de-cada-dia”.

Não havia muito que comer lá em casa, mas lá estava o ditado popular de novo: “onde comem cinco bocas, comem seis”. E “Deus ki ta dá boka, Deus qui ta dá bokadu”. E assim foi, desde criança à vida adolescente.

Apesar dos tantos filhos para criar, a madrinha cumpriu escrupulosamente o que lhe fora pedido pela mãe da Neuza antes de falecer alimentação e educação caseira (culinária, recolha de água pelos chafarizes públicos espalhados pela Praia), escola básica (só em idade adulta entrou na universidade para estudar criminologia) e um trabalhinho extra (pequenas vendas ambulantes pelas ruas) para agregar mais algum dinheiro ao pobre cabaz da nova família que o destino lhe deu.

Mas se em casa ia-se andando, o mesmo não se pode dizer do dia-a-dia nos confrontos de rua, no embate com outras crianças na escola. Era bullying para valer: “Como eu falava um crioulo fundo, da ilha do Fogo, os colegas troçavam de mim, chamando-me “sampadjuda”, “barriga di batata”, “coração di barata” e “badia di Fogo” e eu ficava chateada porque tomava isso como um desprezo pela minha pessoa”.

Fintar o destino

Mas, hirta, resistiu. E é neste caldo de vida dura pela Praia e arredores, do abandono paterno e da perda da mãe, da zombaria social pelo seu sotaque no papiar do Fogo, da violência infantil e juvenil que ela vai buscar forças para marcar a diferença e, já adulta, criar a “Fundação Izilda” e a marca “Flor di Bila” para alimentar acções de beneficência e vencer, no ano passado, o Prémio “Ação Social-Artista Solidária” na XI Gala da CVMA 2022 na Cidade da Praia.

Dir-se-ia que é assim que a autora de “Badia di Fogo” se fez mulher e mãe, reflectindo todo esse testemunho nas suas cantigas musicadas, nas suas peças teatrais e nas suas acções filantrópicas, na Praia, no Fogo e noutras ilhas, quando está em Cabo Verde, e pelas comunidades cabo-verdianas nos EUA, país onde vive e hoje passa a maior parte do seu tempo.

Para quem não se lembra, Neuza de Pina foi lançada em palco pelo músico Manel de Candinho para, em 2013, exibir o primeiro trabalho intitulado “Flôr de Bila”, o também nome que ela sempre quis ter como alcunha e terá conseguido e que outro significado não tem, senão o da revelação dos segredos rítmicos da ilha do Fogo, os tais compassos tantas vezes dançados em tertúlias, casamentos e baptizados da antiguidade foguense, como “talaia baxo”, “rabolo”, “samba”, entre outros.

De Flor de Bila a “Mininus 2000”

“Flor de Bila” (2013) é concomitantemente sua marca e início de uma caminhada, reforçada quatro anos depois, quando se sagrou vencedora do programa de entretenimento “Casa do Líder” (2017), para depois lançar “Culanfuntun” e celebrizar-se, em 2019, com “Badia di Fogo”, um disco com 10 faixas nove inéditos e uma antes gravada por Ramiro Mendes no qual também participaram artistas como Michel Montrond, Kaly e Totinho e que contou com o engenho técnico de Kaku Alves.

Com este álbum, dava-se a sua estreia como compositora. São pelo menos quatro músicas suas, que se confundem com o seu percurso: “Quem me conhece e escutar ‘Izilda’, ‘Badia di Fogo’, ‘Nha Dono’ e ‘Armanda’ verá aqui a minha história de vida, o meu percurso”.

Em 2021 veio um single intitulado “Comberso cu Distino”, um questionamento ao destino que lhe foi ingrato, cantado num dueto com o jovem artista de Santa Cruz, Mureno. E agora em Abril (2023) lançou “Mininus 2000”, uma homenagem à filha mais velha, “por toda a experiência que lhe trouxe à sua vida, quando decidiu levar adiante a sua gravidez na época que era uma adolescente, com muitos sonhos e planos que teve que deixar para trás para se tornar mãe. Uma alusão à geração da era digital”.

No total, sete inéditos compõem este terceiro trabalho, todo ele atravessado pelo pulsar migratório, pela valorização pessoal, mas eivado de seu habitual comentário social. Para além do tema “Mininus 2000”, que dá nome ao álbum, “Bu ta venci”, “É mi”, “Crucificado”, “Te Txiga”, “Tentasan” e “Dixan bai” são disso exemplos da vida que foi tendo.

Este é o meu caminho

Hoje, fora do anonimato, Neuza de Pina vai, segundo diz, recebendo “muita afeição das pessoas, o que é uma realidade totalmente diferente da dos duros anos 80-90. Sinto que já não tenho mais privacidade, mas sinto-me respeitada, lá onde eu estiver as pessoas reconhecem-me, o que no fundo é bom”. Afinal, diz ela, “ninguém foge ao destino”, sendo também certo que “Deus nos pode guiar para o melhor. E este é o meu caminho”.

Já de volta aos EUA, regressa em Julho para incrementar a promoção do “Mininus 2000” em concertos pelas ilhas de Cabo Verde, coisa que vinha fazendo por aqui desde Abril último.

Sara Andrade e José Mário Correia

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 826, de 29 de Junho de 2023

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