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Quem tem a legitimidade para falar educação (pública) em Cabo Verde?

Por: Alexssandro Robalo

Entrando no recinto escolar

Assiste-se, neste momento, a uma forte mobilização no Brasil em torno da implementação da reforma do ensino médio (nosso ensino secundário), conhecida pela sigla NEM (Novo Ensino Médio).

O essencial da crítica que tem sido apresentada é que tal reforma, ao invés de garantir um salto qualitativo na educação brasileira, criará graves problemas no sistema, gerando estragos incalculáveis. Aliás, é de dizer que os efeitos nefastos já começaram a ser sentidos nas diferentes escolas públicas daquele país.

Interessante é que uma grande parte da sociedade brasileira, particularmente aqueles implicados no processo educacional, tem assumido o seu compromisso no sentido de denunciar a perversidade do NEM e o projeto político-econômico que lhe nutre. Para dar conta de tais contestações é preciso apenas uma pesquisa básica no Google ou no Youtube!

Contrariamente, nesta nossa terrinha, as coisas continuam seguindo uma outra lógica. Qualquer dossiê fundamental para o presente e o futuro do país continua sendo monopolizado pelo Estado e pelos aprovadores do discurso/mentalidade estatal: acadêmicos, especialistas e opinion makers. A tão falada sociedade civil continua sendo um mero elemento cosmético, não obstante todo o barulho que as redes sociais têm possibilitado.

Quando o assunto é a educação pública, lamentavelmente, a realidade não é nada diferente. O Estado continua monopolizando toda a narrativa acerca da educação, com uma forte legitimação por parte de alguns especialistas requisitados para reproduzir e reforçar a posição daquele.

Todavia, é de referir que a própria orientação do Estado está umbilicalmente ligada às instituições financeiras internacionais e o “vento ideológico” que sopra globalmente. Trata-se de uma ausência total da soberania educativa!

Quanto aos demais atores sociais e educacionais, designadamente as professoras e professores, estudantes no geral, encarregadas e encarregados, as suas vozes continuam sem fazer eco na matéria que ora discuto.

Dialogando criticamente a partir de dentro

Quando pensamos na matéria da educação pública, duas tendências podem ser constatadas: primeira, uma ampla franja da população considera que ela se encontra em decadência; segunda, o discurso governamental alegando que ela se encontra de “boa saúde”.

Se a primeira tendência é a popular, por ser manifestada pela maioria, não é exagero afirmar que lhe faltam fundamentos sólidos e convincentes, já a segunda está recheada de noções generalistas, estatístico-cêntrica e surda perante as vozes alternativas.

O argumento central deste texto é que devemos ser mais críticos em relação ao assunto em questão, ultrapassando tanto as ideias pouco sólidas e fundamentadas da maioria como as alegações falabaratistas e insensíveis dos dirigentes políticos.

Por isso, é preciso um sentir atento, radical e de dentro do atual estado do sistema educativo caboverdiano. É necessária, aliás urgente, uma análise que parta da realidade concreta se se quer, realmente, uma educação que tenha qualidade e não queira deixar ninguém para trás.

É importante retomar ao título deste artigo: afinal, quem tem a legitimidade para falar da educação em Cabo Verde?

A questão da legitimidade é essencial, na medida em que, mesmo sem negar a possibilidade de existência de perspectivas outras, ela carrega o princípio segundo o qual há quem possa e deva falar da educação. Ela diz-nos (implicitamente) quais discursos podem fazer eco nas orientações ideológico-filosóficas, assim como influenciar a definição das políticas públicas no domínio da educação.

Por causa dessa ideia de legitimidade é que o discurso predominante continua centrado num olhar estadomaníaco, eurocêntrico, neoliberal e prenhe de heranças coloniais.

Por ser o governo o único ator legitimado para abordar o assunto, as demais vozes permanecem silenciadas, subestimadas e deslegitimadas.

Reprodução da narrativa hegemônica do poder central

Exemplos paradigmáticos acerca da reprodução da narrativa hegemônica sobre a matéria em discussão, observa-se nos discursos da abertura do ano letivo, apresentados pelo big boss do setor ou nos balanços das delegadas e delegados de educação apresentados no final do ano letivo.

Estes últimos sujeitos, dada a sua condição de submissão, continuam sendo uma espécie de caixa de ressonância do discurso produzido pelo poder central.

Em ambos os casos predomina uma visão quantitativa, representada pela linguagem porcentualista, ignorando (intencionalmente?) toda a realidade que os números camuflam. Portanto, prevalece uma abordagem superficial, representada através de uma “mecânica” essencialmente estatística.

A mobilização do fundamento estatístico, obviamente, mais do que responder às necessidades e exigências nacionais e locais, vem servindo para prestar contas para fora, nomeadamente aos financiadores do sistema educativo. Pois, é preferível, nesta lógica, parecer ter um sistema educativo de qualidade e robusto do que realmente o ter.

O ciclo vicioso vai sendo gerado na medida em que se continua refugiando nas estatísticas, como modo de “prestar as contas”, enquanto o “lixo vai sendo colocado debaixo do tapete”. Acredito que parte da degradação do sistema educativo deve-se, precisamente, de um lado, pela não assumpção plena do atual estado de coisas (ex: a realidade das nossas escolas) e, de outro, pela insistência continuada da retórica estatístico-cêntrica (profundamente desconectada daquela realidade).

Silêncio quase generalizado

Todavia, o que tem sido muito sintomático é o silêncio (ou silenciamento?) quase  que generalizado por parte das educadoras e educadores na grande discussão no espaço público acerca da matéria em análise, mormente a tão propalada “reforma curricular”, ainda em curso.

Além das várias conversas dos corredores, desabafos entre os pares ou então certas rasmungada, pouco se sabe acerca daquilo que pensam os educadores sobre esses assuntos.

É de crucial pertinência assumir que dois aspectos estão na base da condição que fiz referência: primeiro, é que pela lógica da “divisão do trabalho educacional” cristalizada nas nossas instituições faz com que ao professor e professora seja reservado a tarefa exclusiva de implementar apenas aquelas que são as “orientações superiores” no domínio curricular; segundo, considerando o primeiro aspecto,  aos poucos, os educadores foram assumindo uma postura de acomodação e pouco crítica diante da realidade da educação em Cabo Verde.

Desta forma, a condição natural dos educadores passou a ser de letargia, apatia e resignação crónicas. Exemplo disso é a reforma em curso, tal como outras tantas iniciativas, em que predomina a abordagem top-down, arbitrária, pouco dialogante e completamente dominada por exigências exógenas.

Contudo, afirmo com toda convicção que não há proposta de reforma que possa ter “sucesso” na implementação se se continuar a ignorar, menosprezar e negligenciar o lugar das educadoras e educadores enquanto os principais atores no quadro do sistema educativo.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 823, de 08 de Junho de 2023

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