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Cabo Verde: o significado e a utilidade da notação do “rating” da República em B- (grau “especulativo” ou “lixo”)

Por: João Serra*

As notações de “rating” de um país, ou seja, as avaliações do seu risco de crédito podem ser de curto prazo e longo prazo. No entanto, quando se fala em “rating” está-se, geralmente, a falar na notação para a dívida a longo prazo. É o que sucede ao longo deste artigo.

A agência de notação financeira Fitch decidiu, no mês de dezembro de 2022, manter o “rating” da dívida soberana de longo prazo (DSLP) de Cabo Verde em B- (abaixo do nível de recomendação de investimento) e com perspetiva de evolução “estável”. O “rating” da dívida soberana de curto prazo foi reconfirmado em B, tal qual o “teto país”.

No mês de agosto do mesmo ano, uma outra agência de notação financeira, a Standard & Poors (S&P), também já tinha mantido o “rating” da DSLP do país em B- e com o mesmo grau de “outlook” atribuído pela Fitch.

Os principais fatores para a manutenção do “rating” da dívida soberana cabo-verdiana de longo prazo, em moeda estrangeira e local, em B- são o endividamento público e externo muito elevado, grandes passivos contingentes e a elevada dependência da economia do turismo, fatores esses atenuados pela existência de uma percentagem relativamente elevada de financiamento concessional, com juros moderados e prazos médios de pagamento muito longos.

Recorde-se que, em dezembro de 2020, a Fitch e, no mês de fevereiro de 2021, a S&P baixaram o “rating” de Cabo Verde de B para B-. As razões para essa mudança do nível de “rating” prendem-se, sobretudo, com o impacto negativo da pandemia de Covid-19 no crescimento económico e na dívida soberana. Trata-se, para ambos os casos, de um rebaixamento do “rating” da República em um nível relativamente à notação do “rating” de 2015, que era B.

Caso Cabo Verde recorresse aos mercados de capitais para o seu financiamento externo, a mudança de posição na classificação do “rating”, ocorrida em 2020, significaria que a perceção do mercado quanto ao desempenho económico e financeiro do país era mais negativa, o que podia dificultar o recurso ao endividamento externo. Em teoria, mesmo ao nível de endividamento interno, se alguém comprasse dívida pública de Cabo Verde só com base nas notações da Fitch e da S&P saberia que o país está em pior capacidade de pagar a dívida do que antes desta revisão em baixa.

Na verdade, nos países economicamente mais desenvolvidos do que Cabo Verde, uma descida do “rating” pode conduzir à perda de confiança dos investidores na dívida soberana, o que leva a que sejam pagos juros mais altos nas emissões de dívida subsequentes. Dito de outro modo, o Estado terá mais custos para se financiar no mercado.

Concomitantemente, se um desses países está com dificuldades financeiras será de esperar que as suas empresas e instituições financeiras também estejam. O que significa que a descida do “rating” da dívida soberana pode ter impacto no “rating” dessas entidades.

Todavia, o rebaixamento do nível de “rating” de Cabo Verde passaria praticamente despercebida, não fosse um jornal da praça a citar um comunicado da Fitch a respeito. Ou seja, não houve qualquer reação do “mercado”, aliás, tal qual acontecera aquando da revisão do “rating” em baixa, de B+ para B, em 2014/2015.

De todo o modo, tanto na escala da Fitch como na da S&P, um “rating” B ou B- significa que comprar dívida cabo-verdiana está na categoria de investimento especulativo, o que na gíria dos mercados financeiros se designa como “junk”, ou lixo. Na verdade, o país está muito aquém, mais precisamente a cinco patamares, do nível BBB-, em que qualquer uma dessas agências já considera que existe uma “adequada capacidade de honrar os compromissos financeiros”.

Saliente-se que o grau especulativo – que para ambas as agências vai desde BB+ até D – é atribuído aos governos que apresentam um risco maior de falhar o pagamento da dívida, pelo que se trata de uma notação considerada de alto risco pelos investidores. Dentro do grau especulativo, de BB+ até B- a dívida é considerada “lixo”, isto é, as agências entendem que há uma probabilidade significativa de os investidores não receberem o seu dinheiro. No penúltimo e último nível –  C e D, respetivamente –, considera-se que a dívida pode entrar ou já está em “default” (incumprimento), o que significa que há um risco muito elevado de incumprimento ou que este já ocorreu. Em sentido contrário, a Fitch e a S&P atribuem aos melhores pagadores a notação mais alta para as dívidas a longo prazo que é sempre o triplo A (AAA). Segue-se o nível AA, que se subdivide em AA+, AA e AA-.

Cabo Verde é um pequeno Estado insular em desenvolvimento, com uma economia de mercado muito pouco desenvolvida e uma balança de pagamentos muito dependente da ajuda externa (empréstimos concessionais e donativos) e das remessas de emigrantes.

Por outro lado, mesmo com a liberalização económica e as privatizações das empresas públicas, ocorridas na década de noventa do século XX, não foi criado um mercado de capitais que se desenvolveu, amadureceu, se tornou credível e se internacionalizou, estando, basicamente, limitado ao mercado primário, particularmente de dívida pública, cujos “players” são apenas investidores institucionais nacionais. O mercado secundário de capitais continua, praticamente, inexistente.

Nessas condições, muito dificilmente o “rating” da República pode desempenhar, de forma inequívoca, as suas funções de, por um lado, assinalar que Cabo Verde é de confiança, isto é, que tem capacidade de honrar os seus compromissos, colocando a sua dívida no chamado grau de investimento. E, por outro lado, considerar que existe risco de o país não cumprir, passando a dívida deste para o grau especulativo, com as respetivas consequências nos mercados de capitais, a nível nacional e internacional.

Na verdade, embora saibamos que Cabo Verde nunca teve o “rating” da sua dívida soberana, atribuído pelas agências de notação financeira, correspondente ao “grau de investimento”, o país, até à data, vem cumprindo, com maiores ou menores dificuldades, os seus compromissos financeiros nacionais e internacionais relativamente à dívida pública, o que lhe possibilitou endividar-se quando precisou e de forma continuada. Do mesmo modo, não é do meu conhecimento que, por causa do nível de risco de crédito do país, as empresas nacionais tenham tido problemas adicionais, de moldes impeditivos, no processo de contratação de empréstimos externos, tanto mais que, à semelhança do Governo, quase não recorrem aos mercados de capitais estrangeiros para se financiarem.

Não obstante isso, o “rating” da República pode dar uma indicação interessante sobre o nível de endividamento do país e as suas consequências no futuro. E isso pode, de uma forma ou outra, influenciar a decisão dos parceiros de desenvolvimento de Cabo Verde, ou seja, de quem, na realidade, disponibiliza recursos financeiros ao país, nomeadamente os organismos multilaterais de financiamento/desenvolvimento, como, por exemplo, o Banco Mundial, o FMI e o BAD.

Com efeito, uma dívida pública muito alta pode ter um efeito negativo sobre a atividade económica ao exigir elevados impostos para financiá-la, o que acaba provocando uma subida nas taxas de juro e, consequentemente, prejudicando os investimentos privados e a vida das famílias. Se um país não consegue financiar o seu défice, medidas como um corte de despesas públicas ou um aumento nos impostos devem ser adotadas com o objetivo de equilibrar novamente o orçamento fiscal. Caso essas medidas não sejam colocadas em prática, o governo desse país provavelmente enfrentará uma crise da dívida, que o levará a inflacionar a economia ou aplicar um “default”. Em caso de incumprimento, o país pode ficar sujeito a um programa de ajustamento estrutural.

É, basicamente, nesse quadro que vejo alguma utilidade da atual notação de risco de crédito de Cabo Verde. Fora isso, a sua serventia é muito limitada.

Praia, 29 de janeiro de 2023

*Doutor em Economia

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 805, de 02 de Fevereiro de 2023

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