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Ser advogado e defensor dos direitos humanos em Cabo Verde: Uma missão inspirada por Anne Frank e sustentada pela democracia

Por: Seidy de Pina

Ora, quando eu tinha 12 anos e estudava no Ensino Básico Integrado, na pacata localidade de Achada Baleia, interior do Município de São Domingos, tive a oportunidade de ler a história de Anne Frank. Ainda me lembro como se do dia de hoje fosse, os meus olhos cheios de lagrimas quando, ao longo da leitura, soube que ela falecera com apenas 15 anos de idade, vítima da barbárie dos nazis.

Diante disso, jurei solenemente por mim mesmo que lutarei para ser advogado e, enquanto tal, lutar contra violação dos Direitos Humanos e contra arbitrariedades no meu país.

Ao longo desse pedregoso caminho, apesar dos imensuráveis obstáculos, formei-me em Direito e fui admitido como Advogado na Ordem dos Advogados de Cabo Verde; ao longo desses poucos anos do exercício da minha nobre e imprescindível profissão, várias são as denúncias que já apresentei perante autoridades competentes contra situações de grave violação dos direitos humanos.

Compromisso com a defesa dos direitos humanos

Quando peguei nas minhas mãos a minha cédula profissional, em 19 de maio de 2022, elegi a defesa dos direitos humanos como um compromisso para com a minha sociedade, um dever profissional e para com a minha comunidade, como resulta expressamente do artº 130º, b), do Estatuto da Ordem dos Advogados de Cabo Verde, que reza “constituem deveres do advogado para com a comunidade: “defender os direitos, liberdades e garantias e promover a realização dos direitos humanos de caráter civil, político, económico, social e cultural, designadamente denunciando e combatendo, pelos meios e vias competentes, todas as violações desses direitos e, em particular, as arbitrariedades e ilegalidades que de tiver conhecimento no exercício da profissão”;

Assim sendo, sempre que deparo com casos concretos de violação dos direitos humanos em Cabo Verde, não hesitarei em agir conforme o meu dever profissional e a minha consciência cívica.

Essa luta que abracei, que antes de tudo, mais não é do que cumprir um dever cívico, ético e profissional, não é fácil e confesso que, muitas vezes, tenho me sentido impotente. Principalmente quando convivo todos os dias com sentimento de impunidade, ou quando oiço a famosa frase ‘pode queixa, ki ka ta da em nada’.

Detenções arbitrárias e outras práticas inadimissíveis

Entre as situações de violação dos direitos humanos que tenho denunciado frequentemente, destacam-se as detenções arbitrárias e as torturas praticadas por agentes do Estado. 

Essas práticas são inadmissíveis em um Estado de Direito Democrático, que se rege pelo respeito à dignidade da pessoa humana e pelo princípio da legalidade. Essas práticas violam os direitos fundamentais à liberdade, à integridade física e moral e à presunção de inocência, consagrados na Constituição da República de Cabo Verde e em tratados internacionais de direitos humanos. Essas práticas também comprometem a credibilidade das instituições públicas e a confiança dos cidadãos na justiça.

Apesar das minhas denúncias e das provas que apresentei, ainda não vi nenhuma medida efetiva para punir os responsáveis por esses atos de violência e para reparar os danos causados às vítimas.

Ainda não vi nenhuma iniciativa para prevenir que esses atos se repitam ou para capacitar os agentes do Estado para o respeito aos direitos humanos.

Apenas ouvi o silêncio, a indiferença e a resignação. Mas eu não vou desistir da minha luta. Eu não vou desistir de ser advogado. Eu não vou desistir de defender os direitos humanos em Cabo Verde. Porque essa é a minha missão, a minha vocação e a minha razão de ser. Porque essa é a honra e o timbre do meu exercício de advocacia. Porque essa é a lição que aprendi com Anne Frank, que mesmo sofrendo as maiores atrocidades, nunca perdeu a esperança na humanidade.

Eu acredito na vitalidade do nosso sistema jurídico. Eu acredito que os atos de violação dos direitos humanos serão dados o devido tratamento pelas autoridades competentes. Eu acredito que a justiça será feita e que os direitos humanos serão respeitados em Cabo Verde. Eu acredito que o meu trabalho como advogado contribui para essa mudança. E eu convido todos os que partilham dessa crença a se juntarem a mim nessa luta.

Comparando com vários outros países do mundo, pode-se vangloriar que Cabo Verde, estatisticamente, em termos de Direitos Humanos, não está mal cotado. No entanto, a realidade e a perceção que tenho pela minha pouca experiência profissional são diferentes: os dados estatísticos não condizem com a realidade.

O Holocausto não começou da noite para o dia

Alguns podem pensar que as violações dos direitos humanos que ocorrem em Cabo Verde são insignificantes ou isoladas, comparadas com as atrocidades que acontecem em outras partes do mundo. Mas essa é uma visão ingênua e perigosa, que ignora as lições da história. Grandes ditaduras e violações dos direitos humanos começaram lentamente, com atos isolados do tipo que tenho denunciado, e foram se agravando com a conivência ou a omissão da sociedade e da comunidade internacional.

Vejamos alguns exemplos de casos históricos que ilustram essa dinâmica: O Holocausto foi uma das mais sistemáticas e conhecidas violações dos direitos humanos na história registrada. Adolf Hitler planejou “limpar o mundo” de judeus, homossexuais, comunistas, eslavos e outros grupos considerados inferiores ou indesejáveis pelos nazistas.

Cerca de seis milhões de judeus e outros cinco milhões de pessoas foram assassinados em campos de concentração, câmaras de gás, fuzilamentos e experiências médicas. Mas o Holocausto não começou da noite para o dia. Foi precedido por anos de discriminação, perseguição, propaganda e violência contra os judeus e outros grupos na Alemanha e nos países ocupados pelos nazistas. Muitas pessoas não se opuseram ou não acreditaram na gravidade do que estava acontecendo, até que fosse tarde demais.

O Aparthei vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994

O Apartheid foi um regime de segregação racial e opressão política que vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994. Os brancos, que eram minoria no país, controlavam o governo, a economia e os recursos naturais, enquanto os negros, os mestiços e os asiáticos eram privados de seus direitos civis, políticos, sociais e econômicos.

Os não-brancos eram obrigados a viver em áreas separadas, a usar serviços públicos inferiores, a portar documentos de identidade especiais e a obedecer a leis discriminatórias. Quem resistisse ou protestasse contra o regime era preso, torturado ou morto pelas forças de segurança.

Mas o Apartheid não surgiu do nada. Foi resultado de séculos de colonização, exploração e dominação dos povos nativos pelos europeus na África do Sul. Muitos países não condenaram ou não interferiram no regime, por interesses econômicos ou políticos.

O Genocídio no Ruanda

O Genocídio de Ruanda foi um massacre étnico que ocorreu em 1994 em Ruanda, um pequeno país da África Central. Cerca de 800 mil pessoas da etnia tutsi e hutus moderados foram mortos em apenas 100 dias por milícias radicais hutus, que pretendiam eliminar os tutsis da sociedade. As vítimas foram atacadas com machetes, facas, granadas e armas de fogo em suas casas, escolas, igrejas e hospitais.

O genocídio foi motivado por um histórico de tensão e conflito entre os dois grupos étnicos, que foram divididos e manipulados pelos colonizadores belgas no século XX. O genocídio também foi incentivado por uma campanha de ódio e desinformação veiculada por meios de comunicação controlados pelos hutus extremistas. 

Muitos países e organizações internacionais não intervieram ou não prestaram assistência às vítimas, por falta de vontade política ou por medo de se envolverem em um conflito complexo.

Esses são apenas alguns exemplos de como as violações dos direitos humanos podem escalar para níveis catastróficos se não forem prevenidas ou combatidas desde o início.

Esses são também exemplos de como a indiferença ou a cumplicidade da sociedade e da comunidade internacional podem facilitar ou agravar essas violações.

Além de aprender com o passado, também devemos estar atentos ao presente e ao futuro. A democracia não é uma realidade irreversível, nem um dado adquirido. A democracia é um processo contínuo e dinâmico, que exige a participação ativa e consciente dos cidadãos e das instituições. A democracia é um valor que deve ser conquistado todos os dias, com trabalho, diálogo e respeito.

Como disse o ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama: “A democracia requer um sentido básico de solidariedade – a ideia de que para além das nossas diferenças aparentes, estamos todos juntos neste empreendimento comum; que se o destino de uma criança negra importa para os pais negros, isso importa para nós também; que o mesmo vale para uma criança branca pobre; que o mesmo vale para um imigrante; que o mesmo vale para um idoso gay.”

Ameças à democracia

Infelizmente, vemos hoje em dia muitos exemplos de como a democracia pode ser ameaçada ou enfraquecida por forças internas ou externas. Vemos líderes autoritários que tentam minar as instituições democráticas, restringir as liberdades civis, silenciar as vozes dissidentes, manipular as informações e incitar o ódio e a violência.

Vemos movimentos populistas que exploram os medos e as frustrações das pessoas, oferecendo soluções simplistas ou falsas para problemas complexos ou reais. Vemos crises econômicas, sociais e ambientais que geram desigualdades, injustiças e conflitos. Vemos ataques cibernéticos, terrorismo e guerras que colocam em risco a segurança e a paz mundial.

Como disse Obama: “A democracia pode vacilar quando entregue ao medo.” Mas também vemos exemplos de como a democracia pode ser defendida e fortalecida por pessoas que se recusam a se render ou a se calar. Vemos ativistas que lutam pelos direitos humanos, pela justiça social e pelo meio ambiente. Vemos jornalistas que investigam e denunciam os abusos de poder e as corrupções. Vemos artistas que expressam e inspiram a diversidade e a criatividade. Vemos cientistas que desenvolvem e compartilham o conhecimento e a inovação. Vemos educadores que formam e capacitam as novas gerações. Vemos cidadãos que votam e participam da vida pública.

Como disse Obama: “A democracia não requer uniformidade… A nossa fundação assenta na ideia – na convicção – de que uma nação de muitas pessoas pode unir-se em torno de um conjunto comum de ideais.” Portanto, cabe a nós escolhermos que tipo de democracia queremos ter em Cabo Verde. Uma democracia frágil ou uma democracia forte? Uma democracia apática ou uma democracia ativa? Uma democracia excluente ou uma democracia inclusiva? Uma democracia conformista ou uma democracia transformadora? A resposta está nas nossas mãos. E nas nossas mentes. E nos nossos corações. Porque juntos somos mais fortes. Porque juntos podemos fazer a diferença. Porque juntos podemos construir um Cabo Verde mais justo, mais democrático e mais humano.

Por isso, não podemos nos calar ou nos conformar com as violações dos direitos humanos que acontecem em Cabo Verde. Por isso, não podemos nos deixar levar pelo sentimento de impunidade ou pelo medo das represálias. Por isso, não podemos desistir da nossa luta. Porque desistir da nossa luta significa desistir de ser advogado. Porque desistir da nossa luta significa desistir de ser humano.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 825, de 22 de Junho de 2023

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