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Cultura

Daniel Nunes, coleccionador: “O livro mais valioso é aquele que nunca encontras”

É considerado um dos maiores coleccionadores de livros raros de Portugal, com uma biblioteca avaliada em mais de cinco milhões de euros. A paixão por África levou-o a viajar e a trabalhar em vários países do continente. A aventura da vida deste cabo-verdiano da antiga Rua da República, na Praia Maria, foi percorrida por páginas de pergaminhos e capas bordadas em ouro. Obras que permitem sonhar com viagens no tempo.

O primeiro dos mais de 40 mil livros da sua biblioteca, Manual de Biologia e Toxicologia, de Pereira Coutinho, Daniel Nunes comprou-o num alfarrabista da Calçada do Combro, em Lisboa. Custou-lhe 10 tostões, em 1953. E pediu para pagar em duas prestações. Mas o alfarrabista, olhando para ele, rapaz de África, novo, curioso, sem grandes meios, disse-lhe que o podia levar e pagar depois. Daniel regressou no final do mês e pagou o livro e ainda levou mais alguns.

Mas o amor pelos livros e pelo conhecimento que estes traziam, começou mesmo lá em casa, na Rua da República, no Platô. «O nosso pai sempre nos disse que qualquer facto histórico deve ser sempre comprovado. Depois, já na Casa dos Estudantes do Império, vigorava uma dogmática, quando os mais velhos falavam, nós os mais novos ouvíamos e não se punha a questão se era verdadeiro ou não.»

Paixão por África

O conselho do pai, português oficial das finanças, foi seguido à letra por Daniel. A partir desse primeiro livro, que foi comprar na companhia de José Leitão da Graça, Daniel nunca mais parou. «Descobri a maravilha que eram os livros sobre África. Mas também comprava romances, mas só de referência, tenho todos os clássicos portugueses e brasileiros, todos os poetas importantes.»

Sobrinho do poeta António Nunes, cujo livro Poema da Manhã foi apresentado em Lisboa, com uma crítica de Jaime Figueiredo, Daniel sempre teve a literatura, poesia por perto.

E recorda como havia um centro de estudos africanos. Mas pouca gente aparecia. «Eram mais gente ligada à família Espírito Santo, alguns amigos do Amílcar Cabral, mas foi por aí que começou a minha sede de conhecimento sobre África.»

As primeiras compras aconteceram de maneira desordenada, como conta. «Era ainda alguma falta de orientação. Algum tempo depois, tive de me desfazer de 3 mil livros para arranjar espaço para aqueles sobre África, que me interessavam mais.»

Os novos conhecimentos incluíram mesmo aprender as técnicas de encadernação, e com eles vieram as amizades com livreiros e alfarrabistas de Lisboa, Porto e outras cidades portuguesas. «Todos sempre me trataram de maneira carinhosa. E por vezes, estava eu na Guiné quando aparecia um livro sobre África, depois de troca de correspondência, o livro ia parar lá a casa e eu pagava quando chegava a Lisboa. Todos eles ainda hoje me fazem um desconto significativo e a nossa amizade é impagável.»

Leilões

Daniel já não é um comprador qualquer. Quando licita nos leilões os livreiros não licitam contra ele. «Perguntam até onde eu vou e a partir daí, a guerra é entre eles.»

Mas o mundo dos livros raros e dos seus colecionadores, está cheio de histórias, de golpes de sorte e de achados. Como o primeiro livro na história a abordar a escravatura, publicado em Inglaterra, em 1758. «É nele que pela primeira vez surgem os esquissos dos barcos negreiros, explicando como as pessoas escravizadas eram colocadas, lado a lado, nos porões. O livro custava 5 mil euros; recebi alguns telefonemas, mas disse que não tinha o dinheiro. O livreiro enviou-me e disse para eu pagar quando pudesse. Acabou por ficar por 3600 euros».

Para ele, mais do que a compra ou o negócio, é a relação de amizade que os une na confiança, o elemento mais importante. E só sobre o tema da escravatura os livros andarão à volta de 10, 12 mil, diz o engenheiro Daniel Nunes, que começou por trabalhar e depois chefiar o laboratório da empresa de lacticínios portuguesa UCAL.

«Em 1955, estou em Mafra, com boa vida e óptimas ajudas de custo. Ganhava 1800 escudos por mês, mas ficava muitas vezes em casa do Viriato de Barros, do Tchenta, que cumpriam o serviço militar nessa época, também em Mafra.»

Os rendimentos começam a ser canalizados para a aquisição de livros, agora de superior qualidade. Com o tempo, tornou num especialista cuja opinião é respeitada pelos vendedores. «Alguns chamam-me doutor, outro engenheiro, outros mestre, e já aconteceu eu pedir para aumentarem seis vezes o preço do livro, e este foi vendido em menos de 24 horas.»

Foi o caso do livro da Ordem de Cristo, do Mosteiro de Alcobaça, de 1527. «Começaram por pedir 125 contos, no mesmo dia ofereceram 5 mil; a meu conselho, o vendedor esperou mais um mês e o livro foi vendido por 25 mil contos.»

Para conhecer e analisar o valor de um livro, diz, é preciso levar em conta alguns pormenores. «Depende das encadernações, se são de qualidade, como estão os cantos, as lombadas, se são fechadas ou abertas, se é em folha de ouro, e aqui a diferença de preço pode ser enorme.»

A sorte do colecionador

Golpes de sorte e grandes surpresas fazem parte deste negócio. «A mais estranha delas aconteceu-me na cidade de Santarém, na casa de banho do bar dos bombeiros voluntários locais; no lugar do rolo do papel higiénico, estava quase completo, o Livro das Máximas de Salomão, traduzidas por uma curiosa qualquer, datado do início do século XIX. Ofereci ao dono um pacote inteiro de papel higiénico e trouxe as Máximas no bolso.»

Daniel é um admirador confesso de Ibn-Battuta (1304-1369), magrebino sábio, explorador e considerado um dos maiores viajantes da História da Humanidade. É o primeiro a descrever a Muralha da China, muito antes de Marco Polo chegar a este país. A primeira publicação, que reúne os seus relatos é de 1840, cerca de 80 exemplares; a segunda é de 1855, com apenas 35 exemplares. Possui dois exemplares da primeira edição. «Comprei-o, em 1976, no Largo dos Mártires da Pátria, em molhos de papéis que o proprietário ia vender ao desbarato; vi que havia vários atados e vi o segundo volume de Ibn-Battuta e mais uns livros.

Comprei tudo para não levantar suspeitas ao dono, claro. Ficou tudo por cento e tal escudos, mas paguei 500, esperando que no dia seguinte ele trouxesse mais. Claro que não apareceu mais. Viu o valor da coisa. Mas fiz um total de 3700 contos naqueles papéis e livros, entre eles a Revolta dos Escravos da Martinica, de 1840 e ainda toda a correspondência entre Portugal e a Inglaterra sobre a abolição da escravatura. Duvido que o próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros a tenha.»

Um andar por umas folhas

No entanto, para além da sorte há também verdadeiros golpes de loucura, se pode dizer, como trocar um andar no Campo Grande por algumas folhas da Idade Média. «Há 53 anos, estava eu na Guiné-Bissau e a dar assistência na Guiné Conacry, como cooperante, quando aparece alguém a dizer-me que tinham uma epístola de D. Manuel I a relatar, a comunicar, ao Papa, sobre uma batalha em África. Tem apenas duas folhas e meia e custou-me 3200 contos. No mundo conhecem-se apenas dois exemplares, claro que o terceiro de que não se fala, está cá em casa, na minha mezzanine. Dei por ela o meu andar do Campo Grande, perto da igreja. Imagine quanto é que ele valeria hoje.»

Entre outros livros raros, conta-nos, estão ainda o ‘Catecismo para os infiéis de Angola que professam a nossa santa fé’, de 1620; a primeira História de Portugal, editada em Paris, encadernada em pergaminho, de 1581. Às raridades da biblioteca, juntam-se ainda os mapas antigos emoldurados que Daniel tem pelas paredes da sua sala – que ele acabou por deixar de comprar. São da Guiné e de Cabo Verde, datados de 1570 e 1599, do país dos Jalofos, outros de 1600, um Mercader de 1620, alguns de 1700, 1850, da bacia do Zaire, antes da Conferência de Berlim. «O mais valioso, o Isaltino (Isaltino Morais, presidente da Câmara Municipal de Oeiras, onde Daniel vive) disse que vai mandar traduzir para português.»

Ultramar português

Daniel foge à questão sobre o valor da biblioteca. Porque a colecção particular também inclui cabeças em terra cota, de Nok, do Golfo da Guiné, descobertas em 1945 e com mais de 2500 anos, segundo um museu francês. Ao lado estão bronzes do Benim, máscaras antigas da África Ocidental e Central, do Nilo Interior, com idades entre os 250 e os 2500 anos. O que, evidentemente, não está incluído no preço da biblioteca.

Se as paredes da sala e da mezzanine são para os livros antigos e mais raros, na cave está parte importante da sua colecção especial. São dezenas de milhar de livros e documentos sobre o antigo Ultramar português. «Cerca de 60 por cento são livros que há mais de um século não aparecem à venda; por exemplo, tudo o que diz respeito às ex-colónias a mandatos da ONU, escravatura, comércio do tabaco, algodão, armas de fogo, que foi deixado por um general, Freire de Andrade, para eu pôr em ordem; tenho documentos da fundação da Sociedade das nações, outros secretos, reservados, sobre trabalhos forçados, as guerras na Guiné, Angola e Moçambique.»

Como seria de esperar, a casa de Daniel Nunes, em Oeiras, tornou-se, nos últimos tempos, local de romaria para estudantes universitários, de mestrado e doutoramento. «Só em 2022, houve mais de 400 pedidos de consulta do jornal Nô Pintcha, da Guiné-Bissau. Eu disse à Faculdade de Letras que não era possível, por questões de segurança. É um risco abrir as portas para consultas, se levarem alguma coisa daqui só me darei conta muito depois. Tenho o jornal todo digitalizado, são cerca de 1 milhão e 50 mil imagens.»

Cabo Verde não se interessa

Há um ano, um especialista francês avaliou a biblioteca e as peças de arte de Daniel Nunes em cerca de 5, 5 milhões euros. Quanto à segunda questão, o futuro de todo o espólio, este poderá passar pelos municípios de Oeiras ou de Lisboa. «Este último está a estudar uma proposta e a Presidência da República de Portugal também.»

Daniel reflecte um pouco, antes de continuar. «Sabe, eu pensei em tempos em deixar tudo isto a Cabo Verde, mas o governo tem um determinado tipo de procedimento que não se coaduna muito com isto. A única pessoa que mostrou verdadeiramente interesse foi o ex-Presidente Jorge Carlos Fonseca, que teve a gentileza de visitar a visitar a biblioteca.»

«Vou dar-lhe só um exemplo, vi recentemente um programa da RTP 2 sobre Cabo Verde, com o historiador António Correia e Silva. Falaram do Duque de Aveiro, o donatário da ilha de Santo Antão. Esse documento de que falam, esteve de facto para ser vendido para Cabo Verde, onde deveria estar. Os familiares têm o manuscrito e queriam vender, mas nem o governo, nem a Câmara lá de Santo Antão sequer mostraram interesse nisso. Custava 9 mil contos, são 21 páginas, datado de 1700. Acabei por comprá-lo e está aqui em casa.»

A ideia, confessa Daniel, é que a biblioteca permaneça intacta, inteira, em que a consulta possa ser feita apenas através de um organismo oficial e apenas para determinados livros. «Mas sem poderem entrar com malas, sacos ou mochilas», adianta.

Quase a completar os 89 anos, em Setembro, Daniel Nunes vive com a filha mais nova, de 17 anos. Tem ainda mais um filho e uma filha na casa dos cinquenta. O coleccionador também tem ainda o desejo de juntar mais alguns anos, aos 89. «Espero ainda viver até aos 117. Se Deus me der boa cabeça limpa para pensar.» Para isso, confessa, lê durante cinco horas por dia e não pára de trabalhar a madeira na sua oficina de carpintaria. «Todo o madeirame da biblioteca, a escadas, o balaústre, a mezanine, as estantes, tudo foi feito por mim, durante dois anos, em madeira sucupira e jatobá, do Brasil, e com o isolamento térmico e acústico.» Ainda espera poder encontrar mais espaço, nela, para mais 30 mil livros que tem espalhados por São Tomé e Guiné-Bissau.

Regresso, 70 anos depois

Há quatro anos regressou pela primeira vez à Praia, de onde tinha saído com 17 anos. Veio com uma equipa de televisão portuguesa SIC, para um documentário sobre a sua relação com a filha mais nova, chamado ‘Daniel e Daniela’, filmado entre Portugal, Cabo Verde, São Tomé e Guiné-Bissau. Um longa demora que tem as suas razões, diz-nos Daniel:

«Cabo Verde era muito pequeno para mim. Eu tinha outros sonhos. O tempo foi passando, andei por outros caminhos deste mundo, e depois comecei a recear já não encontrar pessoas do meu tempo vivas, como o Daniel Benoni, o Jorge Querido, o Betinho. Mas também, sempre fui muito falador, por onde andei. E cunbersu sabi é ladron di tempu…»

Quando não está a ler nem na oficina de carpintaria, Daniel entretém-se na sua horta em volta da casa, onde cultiva diversas árvores de fruto: «Tenho anona, pinha, manga, banana, cana de açúcar, goiaba, tentei papaia mas não dá, tudo o que é fruta portuguesa, e ainda galinha, pato, coelho, galinha-do-mato…»

Ultimamente, para além de terem inaugurado um centro de estudos com o seu nome, o presidente Isaltino Morais ligou-lhe a dizer que Daniel Nunes, o coleccionador de livros raros, constava de uma lista das 250 figuras de sempre do Concelho de Oeiras.

«Tem lá duas páginas dedicadas a mim», diz-nos.

Por: Joaquim Arena

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 835, de 31 de Agosto de 2023

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