A começar pelo Presidente da República, a abstenção de Cabo Verde, na votação da resolução ‘humanitária’ da Assembleia Geral da ONU, na passada sexta-feira, é criticada por vários observadores e meios diplomáticos. Fala-se em pressões a que o país terá cedido, fruto de uma postura errática, seguida nos últimos anos, no plano internacional pelo Governo de Ulisses Correia e Silva.
Cabo Verde foi um dos 45 países que se abstiveram, na passada sexta-feira, 27, na votação da resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, que pede “uma trégua humanitária imediata, duradoura e sustentada que conduza à cessação das hostilidades” em Gaza. Algo que Israel se recusa a aceitar, diante do seu firme propósito de eliminar, de uma vez por todas, o Hamas, grupo radical palestiniano que luta pela destruição do estado hebreu e que detém cerca de duas centenas de reféns da investida que fez a Israel no passado dia 7 de Outubro, deixando para trás largas centenas de vítimas.
Dos países da comunidade lusófona, Cabo Verde foi o único a optar pela abstenção, numa votação em que São Tomé e Príncipe preferiu não participar. O quadro repetiu-se, igualmente, a nível da CEDEAO, tendo a maioria do Grupo Africano votado a favor da resolução. Dos países com alguma relevância no continente a Etiópia, país sede da União Africana, se absteve.
E como que a provar como é feita a política internacional, a Ucrânia, a braços com a invasão russa, e que por mais de uma vez teve de recorrer à ajuda humanitária, com várias das suas cidades destruídas pelos bombardeamentos russos, também se absteve na votação de sexta-feira, 27. Um outro caso notório de abstenção é o Canadá, país tido como pacífico e respeitador dos direitos humanos e dos povos.
O texto proposto pela Jordânia teve 120 votos a favor, 45 abstenções e 14 votos contra, incluindo Israel e os EUA, como costuma ser habitual sempre que esse aliado no Médio Oriente é posto em causa (ver mapa da votação).
Reacções
Reagindo ao sentido de voto de Cabo Verde, na sua página de Facebook, o Presidente da República, José Maria Neves, disse “Não se pode abster quando o assunto é o diálogo, a paz e o direito humanitário. Cabo Verde defende a Carta das Nações Unidas e o Direito Internacional. O Mundo deve basear-se em regras. Somos humanistas e respeitamos intransigentemente os direitos humanos! Pela nossa seriedade e coerência, somos respeitados pelo mundo”.
Recorde-se que o chefe de Estado já havia reagido aos ataques do Hamas, do dia 7 de Outubro, condenando-os “energicamente”, mas apelando para que a reacção de Israel não fosse “desproporcionada”, de modo a “respeitar o direito internacional humanitário”, algo que outros países, mas também o secretário-geral da ONU, António Guterres, haveriam de dizer também.
Com o seu novo posicionamento, o PR demarca-se, assim, do Governo, depois de ambos terem condenado, a 7 de Outubro, os ataques do Hamas a Israel. A tese de que Cabo Verde tem duas posições diplomáticas surge, uma vez mais, para efeitos de análise de estudo, caso alguém quiser se interessar por isso.
A cidade da Praia repete, com o episódio do passado dia 27, também, o seu procedimento ocorrido aquando da invasão da Ucrânia pela Rússia, há mais de um ano. Primeiro condenou a Moscovo pela invasão para depois, numa outra votação, abster-se, o que também surpreendeu vários observadores.
“Autêntico disparate”
Para Fernando Wahnon, embaixador aposentado e com passagem pelas Nações Unidas, a votação de Cabo Verde “é um autêntico disparate e não há nada que o possa justificar, é absolutamente contra todos os princípios que Cabo Verde defendeu, contra as resoluções que Cabo Verde tem defendido ao longo dos tempos, de apoio aos direitos da Palestina, não faz qualquer sentido”.
Wahnon é da opinião de que uma votação como a do último fim de semana só vai afectar a imagem de Cabo Verde, no plano internacional, para além de que “expõe-nos, desnecessariamente, ridiculariza-nos, é incoerente e inconsistente com as nossas posições”.
A mesma opinião tem o também ex-embaixador Manuel Amante da Rosa, que recorda a linha seguida por Cabo Verde nas votações na ONU, na área dos direitos humanos. “É inexplicável e inusitada este sentido de voto e que só leva a crer que Cabo Verde foi pressionado e a decisão final só pode ter vinda da Praia”. A seu ver, “numa votação destas, o Representante Permanente é obrigado a consultar a sede sobre que atitude tomar. Ou seja, foi parar ao Rui Figueiredo Soares (MNEC) e este levou ao Primeiro-Ministro”.
Para Amante da Rosa, o país sai “altamente prejudicado” e por isso, enquanto antigo diplomata, “duvida muito” que Cabo Verde, com este voto, consiga ir para a Comissão dos Direitos Humanos da ONU. “É inqualificável o que Cabo Verde faz com os Palestinianos e com as vítimas, já que a maior parte delas são crianças. Um verdadeiro tiro no pé”, conclui.
Quem também reagiu nas redes sociais, foi o antigo ministro da Saúde, Luís Leite, na década de 1990, que “condena a abstenção de Cabo Verde na votação da resolução das NU que apela a um cessar-fogo humanitário”. Entende que “Israel está a ultrapassar todos os limites com a guerra, matando milhares de civis palestinianos”, daí que Cabo Verde não deveria ficar indiferente a isso, abstendo-se.
Também César Monteiro, um outro antigo diplomata, lembra que é “recomendável que haja sempre articulação entre o Governo e o PR”. “O Governo devia ter votado a favor da Resolução das NU e não ter-se abstido”, escreveu.
Cabo Verde e Israel, uma aliança por desvendar
Para além do único lusófono, Cabo Verde foi um dos 11 países africanos que se abstiveram na votação desta resolução das Nações Unidas. Por curiosidade, mesmo micro-Estados com um historial de voto indefectível a favor das posições americanas, como é o caso de Palau, no Pacífico, acabaram por votar a favor da resolução proposta pela Jordânia.
O seguimento de uma coerência de posições, segundo Fernando Wahnon, tem sido uma doutrina respeitada pela diplomacia cabo-verdiana, nestas votações. “E só respeitando o direito internacional poderemos, amanhã, numa situação de emergência, apelar a este direito internacional, que é o único meio de defesa de que dispomos”, advoga.
O entendimento do sentido de voto, segundo fontes também consultadas pelo A NAÇÃO, vão todas para a pressão que o governo de Cabo Verde terá sofrido, para votar como votou. Pressões vindas, eventualmente de Israel e sobretudo dos EUA.
Apesar de as pressões fazerem parte do jogo dos corredores diplomáticos, o facto é que para muitos observadores, Cabo Verde tem sido inconstante e cedido demasiado, ultimamente. Algo que decorre desde que o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Filipe Tavares, a propósito do tratado SOFA, elegeu os EUA como o país principal aliado deste arquipélago.
Alguns recordam, entretanto, que, quando chegou ao poder, o governo do MpD disse que ia ter uma relação privilegiada com Israel. O próprio primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, quando ainda era presidente da Câmara da Praia, tinha estado de visita a Israel.
Noutra ocasião, o então presidente Jorge Carlos Fonseca, durante uma reunião da CEDEAO, recebeu o ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel, quando este país pretendia ser candidato ao Conselho de Segurança da ONU, tendo se encontrado também com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Netanyahu chegou a escrever, na altura, na sua página do twitter que a partir de então Cabo Verde deixaria de votar contra Israel nas Nações Unidas, facto este que a cidade da Praia tratou de desmentir.
Enquanto embaixador, o ex-PM Carlos Veiga apresentou as cartas credenciais a Israel, onde já José Tomás Veiga também tinha estado, enquanto MNE, na década de 1990.
Apesar da aproximação e até viragem pró Israel, e que quase levou a cidade da Praia a reconhecer Jerusalém como capital do Estado hebreu, por pressão de Donald Trump, não se pode dizer que Telavive seja um doador de ajuda pública ao desenvolvimento de Cabo Verde. Pelo contrário, o pouco que este arquipélago já adquiriu a esse país do Médio Oriente foi sempre devidamente pago. Daí muitos perguntarem o que pretende o Estado cabo-verdiano, neste caso o Governo de Ulisses Correia e Silva, com votações como o do passado dia 27 de Outubro.
Pressionado pelo PR e a Oposição, Governo explica-se
Através do ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Figueiredo, o Governo justificou a abstenção de Cabo Verde, revelando não ter ficado satisfeito com a versão da resolução apresentada pela Jordânia, “por ser demasiado parcial, sem uma única palavra de condenação dos ataques violentos perpetrados pelo Hamas.”
Em conferência de imprensa, a menos de 24 horas depois de o Presidente da República ter, por uma segunda vez, criticado o voto de abstenção, Rui Figueiredo referiu que Cabo Verde alinhou com uma emenda importante, apresentada pelo Canadá (país que também se absteve), que não foi atendida. Esta mencionava a clara responsabilidade daqueles que atacaram Israel no dia 7 de Outubro, o Hamas, e que indicava esse facto como a causa directa da guerra em curso.
Rui Figueiredo disse ainda que “os promotores do projecto de resolução votaram contra tal emenda, inviabilizando a sua inserção num texto que seria mais equilibrado”, salientando o perfil do país autor da emenda, o Canadá, que tem desempenho “inquestionável” nas questões humanitárias.
Como que acalmando os críticos, este governante salientou que Cabo Verde é “um acérrimo defensor e promotor da paz, da liberdade e da coexistência pacífica entre os povos, do respeito integral pela Carta das Nações Unidas e pelo direito Humanitário”, e por isso, afirmou, “condena o terrorismo sobre todas as formas e reconhece o direito ao Estado de Israel de viver em paz e segurança.”
Quanto à falta de informação e concertação com o Presidente da República, o ministro disse que “compete ao Governo definir e executar a política externa, e assume a responsabilidade dos seus votos. Não deve haver articulação ou concertação para se votar num sentido ou não, informação que nós prestamos na devida altura”, concluiu.
Com Inforpress
Joaquim Arena
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 844, de 02 de Novembro de 2023