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Convidados

A diplomacia no tempo de Aristides Pereira

 

Por:  António Pedro Lima

1.Não podia deixar de começar esta intervenção sem uma saudação triste e um comentário desiludido. Uma saudação triste neste mês e meio do conflito na Palestina, às crianças da faixa de Gaza que, dia após dia, são vítimas de uma guerra que não respeita mais nada e que nenhuma autoridade consegue parar, entre bombardeamentos indiscriminados de uns, a cruel desumanização daqueles que lavam as mãos perante o inadmissível e a benevolência envergonhada de alguns. É necessário reafirmar aqui o imperativo de um cessar-fogo antes que seja tarde demais. Torna-se urgente parar de transformar Gaza num “cemitério de crianças” como disse e bem o SGONU, parar o estádio de sítio e apelar para o respeito do direito internacional humanitário e não pela sua caricatura. Sem o que um verdadeiro genocídio estará acontecendo a olhos vistos.

  1. 2. O meu comentário desiludido vai para o nosso parlamento que soberanamente chumbou o centenário de Amílcar Cabral. Em dezenas de outros países, não só em Africa, mas no mundo, Cabral será celebrado condignamente como merece essa referência intelectual mundial e esse genial estratega e líder da nossa longa caminhada para a liberdade e dignidade. E Cabral já não precisa de culto de personalidade, pois é já reconhecido no mundo inteiro e será lembrado durante muito tempo. Pertence doravante a História.

Na atual cena internacional, cada vez mais incerta e belicosa e, por isso mesmo, altamente perigosa, pequenos países com muitas necessidades como o nosso – e devemos sempre lembrarmos disso – arriscamos muito se perdermos o sentido da realidade ambiente, o sentido do bem comum, a necessidade de princípios e valores universais e da simples humanidade. Mas avante!

  1. Para falar da Diplomacia no tempo de Aristides Pereira iremos concentrar-nos em alguns factos e princípios significativos:

3.1. A contribuição do prestígio pessoal de AP. Ele era um homem reto, tranquilo e experiente. A sua elegância fina que realçava a seriedade do homem e os raros sorrisos discretos impunham logo respeito. Era capaz também de rir franca e abertamente. A sua aura e capacidade de influenciação podiam-se ver, por exemplo nas cimeiras da OUA quando depois de uma intervenção sempre clara e argumentada, concitava a adesão da maioria, permitindo a Cabo Verde influenciar as decisões finais. Contando com personalidades experientes e pragmáticas como Pedro Pires, Abílio Duarte e Silvino da Luz, a política externa de Cabo Verde sob a orientação apaziguadora e realista de A. Pereira tirava a sua inspiração e as suas constantes das experiências e ensinamentos da luta de libertação nacional e da experiência rica e multifacetada do homem e do dirigente AP, numa altura prenhe de mudanças e de incertezas que marcaram definitivamente a face do mundo.

Aristides Pereira, influenciou verdadeiramente na definição dos princípios na base da política externa de CV e da cooperação com outros países. Com certeza que herdávamos um país exausto e no abandono durante decênios senão séculos e de um povo submetido a uma alienante dependência. Mas logo em 1976 ou 1977, o Presidente A. Pereira deixou claro aos quadros do país que tínhamos de deixar de responsabilizar o colonialismo por tudo e por nada. Pese embora a terrível herança recebida, «A partir de agora nós é que somos responsáveis por aquilo que fazemos do nosso país» dizia-nos. Isso teve implicações de amplo alcance.  Eramos responsáveis, portanto devíamos fazer o melhor que podíamos. Significou, igualmente, que devíamos pegar nas rédeas do país e não aceitar cegamente o que nos queriam impor de fora. A ajuda externa devia servir os nossos planos, os nossos projetos porque éramos nós os responsáveis pelas mudanças que queríamos para o país.

3.2. A coesão dos princípios e de ação da política externa. No tempo de AP, havia uma visão da política externa baseada numa análise realista e objetiva das relações internacionais com base nos interesses fundamentais do país pequeno e pobre que herdamos dos tempos coloniais, no cumprimento e realização do direito internacional, mas também no respeito do direito dos povos à autodeterminação e independência. O sentido de ponderação e de equilíbrio nas negociações e na diplomacia foi um lema mestre inspirado diretamente pela atitude e as palavras do Presidente A. Pereira que disse: «Sempre preferir o diálogo à confrontação, o respeito da dignidade do outro ao espírito de menosprezo e prepotência…” A nossa política externa procurava adotar orientações acertadas nas lides internacionais e ganhar credibilidade. Não podendo arriscar dececionar ou surpreender negativamente, tínhamos de ser previsíveis na nossa política externa, por isso tínhamos de aparecer como gente fiável para os amigos e coerentes para todos. Nesse contexto exigente, a dura realidade no país e a dependência do exterior obrigavam ao comedimento assumido e uma ousadia calculada nomeadamente nos atos engajando o futuro. Falando de relações de Estados, necessitávamos de muita ajuda e precisávamos de um Arauto. Éramos convencidos de que sendo um pequeno país arquipelágico e desprovido de recursos devíamos ter uma capacidade de relacionamento com todos em prol de valores universais e dos nossos interesses de Estado.

A Africa ainda não estava completamente liberta do jugo da exploração e do apartheid e precisávamos de um continente unido e solidário.  A solidariedade tornar-se-á um valor cardinal da nossa política externa nomeadamente para com as antigas colônias de Portugal. A criação dos PALOPS foi assim um momento ímpar não só para erigir um instrumento de diplomacia ativa benéfico para os movimentos de libertação ainda em luta, mas ainda para confirmar e cimentar essa linha de pensamento essencial para os fins de libertação almejados e de irmandade na cooperação. Estivemos sempre ao lado desses companheiros de armas e tivemos um papel importante para a ANC, a SWAPO, a FRETILIN e outros ainda que a história revelará.

3.3. O não alinhamento ativo e inteligente da governança de CV na primeira República e o futuro. A nossa defesa como país pequeno e desejoso de preservar a sua independência de pensamento e de ação residia numa política externa de afirmação do não alinhamento e da defesa intransigente dos direitos humanos e dos  princípios eminentes que sustentam a Organização das Nações Unidas baseada na Paz.  Não alinhamento não quer dizer nem neutralidade, nem equidistância, quer dizer independência de pensamento e ação. O multilateralismo preconizado pela ONU constituía uma pedra angular essencial nessa arquitetura de defesa dos interesses do Estado de Cabo Verde. O não alinhamento foi de facto uma arma de conquista dos nossos direitos enquanto pais independente, mas também permitiu uma margem de manobra político-diplomática e uma capacidade de defesa dos nossos interesses globais e nacionais.

Depois o Movimento Não Alinhado esvaziou-se de significado, aparecendo como um instrumento ultrapassado, sobretudo depois da entrada da China (Movimento do Não Alinhados+ China), adulterando-o com o seu peso, a sua dimensão e o seu poderio. Certamente que as outras potencias mundiais viram com desconfiança essa movimentação da China. A cena geopolítica mundial foi se transformando num enorme jogo de xadrez onde cada peça mexida significava uma enorme sacudidela sísmica abalando região por região, a terra inteira como na Síria, no Iraque, na líbia e no Afeganistão. As consequências foram sempre trágicas em custos humanos e sobretudo a Paz ficou duravelmente abalada e a geopolítica local ou regional cheia de incertezas. As guerras na Ucrânia e em Gaza chamam a atenção dos observadores pela dupla linguagem e a prática de dois pesos duas medidas.

Por outro lado, os movimentos militares na região do Sahel chamam igualmente a atenção pela “remise en cause” do status quo colonial existente e pela vontade de afirmação das suas independências da antiga potencia colonial e de uma recuperação das suas soberanias capturadas. A luta contra movimentos subversivos naquela região permanece um elemento crucial, o Mali tendo dado recentemente um passo decisivo nesse sentido com a tomada da cidade de KIDAL no norte do Pais, sem a ajuda da MINUSMA (Contingente militar da ONU) já evacuada. Não nos podemos enganar sobre o que será amanhã uma nova equação para o futuro de Africa e do mundo e nos preparar para apostar na hora certa, nos aliados certos. Hoje, sabemos que o terrorismo não aparece por si só no Sahel. As tentativas de desestabilização dos países vizinhos nossos, não são frutos do acaso. A situação mundial hoje exige muita ponderação na escolha do nosso melhor escudo de defesa face as ameaças do presente. As problemáticas podem ser complexas e as soluções não tão evidentes.

Cabo Verde terá de encontrar a melhor forma de integrar o novo sistema ou nova configuração mundial que está a desenhar-se debaixo dos nossos olhos, com os BRICS (Brasil, Rússia, India, China, Africa do Sul) em fase de aumento dos membros, a desafiar estruturas globais, algumas em fase de derrocada e mostrar-se atento às novas regras de jogo entre as Grandes potencias desse novo mundo multipolar. Fala-se muito hoje da nova dinâmica dos países do Sul global onde um novo MNA poderá estar na forja com apelos por parte de importantes pensadores atuais. Nisso tudo subalternizar nas nossas reflexões e perspetivas, os desafios prementes das mudanças climáticas seria como subalternizar a nossa própria sobrevivência.

3.4. O processo de paz na África austral e Cabo Verde.

  1. As conversações secretas em Cabo Verde. Entre 1979 e 1984, organizamos no Sal e noutras ilhas, a pedido do Presidente angolano Agostinho Neto, várias reuniões secretas entre as partes interessadas na paz na África austral. Pela primeira vez no mundo se sentaram à mesma mesa para dialogar, os representantes do Governo do apartheid, os do Governo cubano, da URSS, dirigentes do MPLA, da SWAPO e os representantes da Administração Americana. Uma primeira mundial que passou despercebida aos olhos do mundo. Nos bastidores as contribuições de Silvino Da Luz, Pedro Pires e Aristides Pereira permitiram muitas vezes evitar a rotura e reatar o diálogo e o país ganhou em prestígio e o respeito das partes em conflito. Cabo Verde serviu a causa da Paz ao oferecer à essas partes um ambiente facilitador do diálogo, a descrição necessária à criação da confiança e uma vontade inquebrantável de ajudar a encontrar os caminhos do respeito mútuo e dos consensos necessários ou possíveis, essenciais para construir a Paz. Cabo Verde soube, com um sigilo absoluto, naquela altura conturbada do mundo e no meio do conflito na África austral mostrar dotes diplomáticos dignos de um país responsável, sério e digno da confiança dos seus parceiros. A paz na África austral e o fim do apartheid têm também as suas raízes nestas pequenas ilhas.
  1. Passagem dos aviões cubanos pelo Sal. Quando se pôs a questão do transporte de tropas cubanas para Angola, falou-se da passagem dos voos da Cubana Aviacion para transferência urgente de contingentes cubanos desde Cuba. Cabo Verde estava ciente dos «enjeux» da sua decisão e não hesitou muito, pois como disse o Comandante Pedro Pires «não podíamos falhar na nossa solidariedade com esse país irmão». Assim, perante os nossos parceiros ocidentais, precisávamos de uma explicação não só válida como credível. Então dissemos: Se os aviões da SAA passavam pelo Sal porque não a Cubana Aviacion? Sob a égide do Presidente Aristides Pereira foram organizados os transportes das tropas cubanas sem dar muito nas vistas. No terreno (no território angolano e na Namíbia concretamente), o conflito tomava dimensões que criavam incertezas entre as partes. Os angolanos e os cubanos obrigaram os teóricos do apartheid sul-africanos a se convencerem que não eram tão poderosos militarmente e podiam ser derrotados como o foram em Cuito Cuanavale, batalha que durou de novembro 1987 a março de 1988. A evolução no terreno criou condições para as partes enveredarem para as negociações finais e a paz.

A ilha do Sal foi assim um ponto estratégico para o diálogo entre beligerantes antes de servir também de retaguarda para a derrota dos tanques sul africanos e tropas do Zaire no território angolano, favorecendo a mudança do regime na África do Sul, com repercussão em toda a África austral.

Nesse processo de extrema delicadeza e destreza político-diplomática, Cabo Verde visando resultados positivos, nunca olvidou três aspetos essenciais:

– Um empenhamento sério e uma disponibilidade constante;

– Uma postura perene de seriedade e abertura para com todos;

– A solidariedade para com Angola e os movimentos de libertação presentes e lealdade para com todas as partes em discussão;

Cabo Verde, com esse processo diplomático de alto nível na África austral obteve sem dúvidas, maior respeito e compreensão por parte dos seus parceiros e ali também, todos se aperceberam do tipo de regime que existia em CV na altura: um regime pragmático, sério e empenhado em ter um papel útil e positivo no processo de paz na África austral. Talvez não tenhamos sabido tirar melhor proveito de todo esse processo.

3.5. A cooperação e amizade com os países vizinhos e com o resto do mundo. O país, fragmentado em dez ilhas pequenas, acabada de sair de 500 anos de presença colonial, sofreu vários períodos de fome, com chuvas escassas alternando com secas prolongadas, que não produz muito, não tem recursos naturais visíveis, e tem de fazer funcionar e gerir além das relações sociais, a máquina do Estado e todo o resto. Com isso, éramos literalmente dependentes da ajuda externa, o que exigia uma enorme sagacidade e prudência. O recurso a ajuda externa não foi uma escolha, mas uma exigência premente sem o que devíamos aceitar a asserção dos que diziam que o país não era viável. Estávamos condenados a ser pragmáticos e realistas para merecermos a ajuda de todos, mas também o seu respeito.Cientes do que éramos e do que a história fez de nós, íamos, na nossa diplomacia encarnar essas virtudes cardinais. 

Constituiu ousadia para um pequeno país em desenvolvimento explorar vias novas de relacionamento e de cooperação com os seus parceiros e afirmar um pensamento autónomo num contexto de guerra fria e marcado pelo poderio do doador, onde o direito do poder sobrepunha-se, muitas vezes, ao poder do direito…

Cabe assinalar aqui também que o Presidente A.P em nome dos 21 Países Menos Avançados de Africa na altura, participou na primeira Conferência das Nações Unidas sobre os Países Menos Avançados em Paris, 1 a 14 de setembro de 1981) onde pronunciou um discurso magistral sobre a situação desastrosa desses países, as causas da mesma e denunciava a superestrutura de dominação que dificultava o seu desenvolvimento. Um novo programa de ação para os PMAs para os ano 80 foi adotado em Paris. Aristides Pereira abriu assim novas oportunidades para esses países e teve ainda a possibilidade de se reunir com eminentes interlocutores.

Assim podemos dizer que a Diplomacia de Cabo Verde, nos primórdios da independência do país, foi construída com base no prestígio da luta, na ousadia dos propósitos do seu governo, no pragmatismo e no realismo das suas posições e na prudência e ponderação do Presidente Aristides Pereira. Cabo Verde ganhou um prestígio apreciável junto dos parceiros ao pensar os dossiers de forma autónoma e ao discutir os mesmos de forma franca e aberta, seguindo sempre os seus princípios de base. Ficou demonstrada a importância nas relações entre Estados soberanos dos princípios e dos valores como o rigor na gestão da coisa pública, a integridade do servidor público e a abertura nas discussões.

A nossa defesa foi a procura constante do diálogo e da Paz e evitar aparecer como ameaça a quem quer que seja. Por isso, contrariamente a outros países vizinhos, fizemos da rejeição de bases militares no nosso território um «credo», um ponto fulcral da nossa política externa que tranquilizou uns e desencorajou outros, mas nos permitiu viver mais tranquilos. E procuramos sempre ser úteis a todos dentro do respeito dos direitos fundamentais de todos e particularmente dos direitos humanos. Tínhamos de conter ou adequar as nossas políticas àquilo que era possível e factível em tempo de paz frágil, isto é, num tempo em que muitos procuram os seus interesses em detrimento de todos e antes de tudo. 

  1. A passagem dos aviões da SAA pelo Sal. Logo após a Proclamação da nossa Independência a 5 de julho de 1975, surge um pedido da South African Airways no Sal a solicitar a nossa posição sobre a passagem dos seus aviões pelo Sal, como durante o tempo da administração colonial. Os tempos tinham mudado e o contexto africano daquele momento era de luta contra o Apartheid. Mas o Governo respondeu que CV ia manter as suas relações com a SAA e garantiu a passagem dos seus aviões pelo Sal.

O mundo estava no início do processo de sanções contra o regime do Apartheid e foram necessários não só uma coragem política ímpar, mas também um cálculo estratégico ariscado, mas assumido, para o governo de Cabo Verde adotar tal posição. Pois ela podia alienar alguns dos nossos amigos e trazer hostilidades onde esperávamos compreensão e apoio. Diz-nos P. Pires que «foi uma decisão pragmática, realista e pensada». A continuação da passagem dos aviões da SAA no aeroporto do Sal foi aceite pela OUA com muito diálogo a vários níveis e vencendo algumas dissensões. Após o relatório da Comissão de sanções da OUA que visitou Cabo Verde em 1977 a esse propósito, uma resolução do Conselho de Ministros da mesma sufragada pelos Chefes de Estado e de Governo virá considerar Cabo Verde como sendo um dos países da linha de Frente e, portanto, isento de sanções.

Foi assim que a SAA continuou a operar no Aeroporto do Sal para tranquilidade dos habitantes do Sal que na altura dependiam do aeroporto para fazerem a sua vida e é assim que demonstramos a todos que quem decide do rumo do país somos nós, sempre procurando preservar os interesses das partes.

O embaixador dos EUA na altura perguntou ao Cte. P. Pires porque é que Cabo Verde não fechava o aeroporto do sal aos voos da SAA. Foi-lhe respondido que o aeroporto do Sal não era aeroporto de destino, mas sim de escala técnica e que no dia em que Nova Iorque, Londres, Zurich ou outros fechassem, nós também fecharíamos o nosso único aeroporto. Acho que a resposta merecia uma menção aqui, pois, além da sua sagacidade, isso mostra que os grandes às vezes podem pensar que a ironia política não faz parte da moldura intelectual dos mais pequenos.

  1. Enfrentar as instituições internacionais. As Organizações de Bretton Woods chegavam com um pacote preparado pelos peritos da casa e assumiam que devíamos nos encaixar no pacote. Mas isso não correspondia a ideia que tínhamos do relacionamento com essas Organizações. Chegamos na altura a negar a montagem de uma grande cimenteira porque os termos que nos queriam impor não nos convinham. Também recusamos a dada altura transformar as ilhas num recetáculo para os lixos do mundo industrial, perdendo certamente uma boa compensação, pensando já, além do mais, na preservação do meio ambiente iniciada nos dias seguintes a independência com a plantação de milhares de arvores por todo o país.

A nossa atitude e os nossos argumentos surpreendiam os nossos doadores pois não estavam habituados a que quem recebesse ajuda ou uma boa quantia estivesse a ter firmeza e solidez de argumentação na recusa de um pacote formulado por peritos nos gabinetes de Washington, Londres ou Paris. Enquanto aprendíamos a formular as nossas ideias, os nossos parceiros aprendiam a melhor conhecer e a respeitar esses africanos que vinham de uma luta armada de libertação e sabiam defender-se. Esse tipo de apropriação das ajudas era raro senão desconhecido entre os doadores naquela época, sobretudo por parte de um país pequeno e sem recursos conhecidos como Cabo Verde.

5.1. A questão do PAM: com a obstinação e firmeza do Governo de CV, fizemos entender aos dirigentes do PAM que nos preferíamos à distribuição da ajuda alimentar, a venda da mesma e transformar os rendimentos em recursos financeiros para financiamento de projetos de utilidade pública. Propomos para isso, agir com a maior transparência e o pessoal do PAM podia verificar cada cêntimo recoltado com a sua ajuda. Soubemos tirar proveito da nova situação que impusemos ao PAM agindo a todos os níveis com profissionalismo, rigor e transparência nos atos todos desse processo. Era «acountability» ou prestação de contas antes da hora. Sem entrarmos em conflito com o PAM, soubemos defender o nosso ponto de vista e mostrar a viabilidade da nossa opção. Como o diz o Comandante P. Pires, “Quem não entende que a distribuição gratuita aumenta a dependência e é uma forma de não investir no futuro. É uma forma de gastar o que se tem para aumentar a nossa dependência”. Criamos o Fundo de desenvolvimento e com os desembolsos foi criada a EMPA (Empresa pública de abastecimento) no qual o preço dos produtos essenciais era o mesmo em todas as ilhas beneficiando assim as populações vulneráveis e as periferias. Com o tempo, o caso piloto de Cabo Verde foi generalizado no seio do PAM. Muitos não sabem dessa pequena vitória nossa, de grande alcance para o mundo em vias de desenvolvimento. Podemos dizer que mudamos uma certa conceição da ajuda do PAM, pondo o acento na responsabilização dos governos recetores da ajuda e afastando eventuais situações de corrupção.

5.2. Aprogramação da ajuda foi uma outra ideia brilhante que Cabo verde trouxe, isto é a necessidade de haver uma previsibilidade das ajudas para uma melhor absorção e utilização delas em benefício das populações. Com Cabo Verde, as reuniões de doadores transformaram-se em «mesas redondas» entre parceiros à nossa iniciativa. A primeira mesa-redonda teve lugar na «Casa Padja», no parque 5 de julho nos finais dos anos 70 e reuniu pela primeira vez – talvez no mundo – e por iniciativa nossa, as multilaterais, as ONGs, a sociedade civil e representantes do Governo. Cabo Verde dava assim mais um sinal da sua maturidade e da sua credibilidade política, na cena internacional.

  1. A aposta nos pequenos países europeus com um certo nível de vida e capacidade financeira como a Islândia ou Luxemburgo visava uma cooperação para o desenvolvimento com projetos a dimensão humana e capaz de explorar relações desprovidas de apriorismos e mutuamente vantajosas. A presença de um grande número de cabo-verdianos no Luxemburgo, certamente ajudou na manutenção e prossecução de relações profícuas de cooperação até hoje.
  1. Solidariedade para com os povos em luta.

Na política externa daquele tempo, não podemos deixar de falar da Solidariedade internacional com os povos em luta e a recusa de servir de base a qualquer potência militar. Inscrevemos isso na nossa constituição para evitar tentações malévolas. O primeiro Ministro dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde Abílio Duarte, dizia que «com essa política retiramos um punhal do flanco de África». A solidariedade de Cabo Verde se exprime sobretudo nas instâncias da ONU e na OUA através das resoluções e outras decisões implicando uns e outros, mas a nossa maior solidariedade com o mundo é de facto nos certificarmos e a África e o mundo possam ter a certeza de que nenhuma ameaça possa surgir do solo de Cabo Verde contra ninguém.

  1. A rotura com o golpe de Nino Vieira. 

A decisão de 1984 de romper com o novel regime instituído após o golpe na Guine Bissau, foi assumida por Cabo Verde após amplo debate dentro do Partido na altura. A África perdia uma experiência interessante de unidade, mas nas circunstâncias criadas na Guine Bissau, essa unidade seria uma unidade podre destinada ao fracasso um dia ou outro. Um dos membros do Conselho da Revolução tinha dito que era uma unidade de cavalo e de cavaleiro, mas nós não tínhamos vocação para ser cavaleiro de nenhum cavalo traiçoeiro.

  1. A. Pereira colocou CV no mapa.

Para além dessas contribuições pela paz e pela cooperação no mundo, devemos lembrar igualmente que A. Pereira consciente da sua imagem positiva e da sua influência como «mais velho» ou «Sage», nomeadamente entre os africanos, participou em várias reuniões da OUA, da CEDEAO, do CILSS, dos PALOP, da ONU e visitou vários países do mundo a convite dos seus Presidentes ou Líderes. Cabo Verde recebeu também vários chefes de Estado nos anos 70/80. O Presidente AP recebeu igualmente vários Graus de «Doutor Honoris causa» de diversas Universidades pela sua ação nos domínios da paz e do desenvolvimento. A. Pereira acreditava nas relações pessoais entre dirigentes e nos contatos interpessoais na resolução de problemas. Essa postura mais do que uma posição política vinda de uma longa experiência no tempo da luta traduzia antes de mais uma aposta profunda nas relações humanas e no diálogo entre gente de boa-fé. Resolver tanto quanto possível os problemas pelo diálogo, a persuasão, o compromisso ou a arbitragem era um modus-vivendi nos tempos da luta e seria uma profissão de fé em tempos de paz. Recorreu igualmente a Enviados especiais junto dos seus pares, quando a necessidade se fazia sentir. Sendo Presidente do Comité Inter-Estados de Luta contra a Seca no Sahel (CILLS), recebeu uma reunião deste organismo sub-regional na praia. O Banco Africano de Desenvolvimento também se reuniu em CV etc. Perante um assunto premente ameaçando a paz na nossa sub-região ou na iminência de um acontecimento de extrema gravidade, o Presidente A. Pereira na impossibilidade dele se deslocar pessoalmente mandatava um Enviado especial que encontrava os dirigentes dos Estados implicados a fim de ele poder receber informações fidedignas e eventualmente poder aconselhar ou fazer recomendações suscetíveis de apaziguar a situação e eventualmente debelar as fontes do problema.

  1. Aristides Pereira na política externa deixava transparecer as características seguintes:

Tinha uma postura de dignidade, uma posição de equilíbrio e procurava ter uma visão exata dos acontecimentos e de quem os instigava na cena internacional. Equilíbrio, paciência, ponderação, temperança, honestidade intelectual, primando sempre o coletivo em detrimento do individual. Gozando do prestígio do mais velho e de líder da luta armada, vi-o muitas vezes nas cimeiras da OUA fazer pender as discussões para uma via de saída com poucas palavras, mas sempre assertivas e ponderadas que levavam os outros chefes de Estado a enveredar pelas suas sugestões. Fazia prova de realismo, de pragmatismo, de ambição pelo progresso do povo e do país. Evitava qualquer protagonismo e valorizava o papel do conhecimento pessoal nas relações Internacionais.

Conclusão.

A ousadia nas relações externas no tempo de AP viu um pequeno país, sem recursos e dependente da ajuda externa desempenhar um papel importante na mudança da situação de dominação do apartheid na África austral. Essa ousadia traduziu-se na forma inovadora em África como o Governo de Cabo Verde repensou as relações com os doadores, tornando-os Parceiros do desenvolvimento, como instaurou novas práticas nas suas relações com os organismos da ONU como o PAM e como estabeleceu relações novas e inovadoras na cooperação com os seus parceiros lançando antes da hora o render de contas e relações “win-win”. O Governo de então e o Presidente AP souberam com humildade, mas com a força das convicções e dos argumentos, convencer e forçar o respeito dos parceiros e merecer o seu apoio e reconhecimento pela postura de dignidade e abertura e pelos esforços inegáveis em prol do desenvolvimento por parte deste país.

  1. Pereira, pelo que me foi dado observar foi, em regra, um fator de equilíbrio, de pragmatismo e de moderação no seio dos órgãos de decisão do país, no seu tempo, em Cabo Verde, mas não hesitava, na ação, em expor-se e caminhar por vias pensadas, mas ousadas com base em princípios sólidos e comprovados. Foi dando exemplos de serenidade e de tranquilidade pela sua maneira de ser e o trato fino que lhe era peculiar sobretudo connosco a geração mais jovem. Às vezes certas atitudes mais rígidas e silenciosas dele podiam passar por frieza ou um distanciamento desdenhoso ou outro. Penso hoje que devemos poder compreender e apreciar esse homem que conviveu tantos anos com feitios, caracteres e vivências diferentes que muitas vezes teve de avaliar o ser humano em contextos difíceis, que viu até onde podia ir uma vontade humana e sofreu tanto na sua pele como na sua alma, em situações drásticas e díspares como aquando do seu rapto pelos assassinos de Cabral ou o doloroso desaparecimento físico ou situação de doença prolongada dos próximos. Nas terríveis provações que vivenciou, esse homem de educação cristã, terá acabado por adquirir um arcaboiço permitindo-lhe ultrapassar-se e integrar uma filosofia de asceta que podia as vezes transparecer num suspiro ou num silencio mais prolongado. E quiçá, como filho de padre que era, a educação católica dele pudesse, às vezes, se sobrepor à alma do guerrilheiro e do homem de Estado. Lembremos que foi no seu tempo que o Papa João Paulo 2 visitou Cabo Verde, logo antes das mudanças de 90.

Que descanse em paz o meu “homi grandi”, o líder humilde, mas de grande relevância na construção dos nossos destinos e o sonhador das esperanças dos povos de Africa, da Guine e Cabo Verde.

*Versão adaptada da Conferencia proferida na Presidência da República, no dia 17 de novembro, por ocasião do Centenário do nascimento de Aristides Pereira.

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