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Estado, etnicidade e pluralismos: A diversidade linguística no federalismo étnico Etíope*

Por: Luís Kandjimbo**

A celebração do Dia de África, ocorrida no passado 25 de Maio, pode ser um bom pretexto para reflectir sobre o melhor Estado e correspondente governação para as comunidades políticas no nosso continente. O federalismo, tópico da filosofia política com o qual se tematiza a busca do que pode ser o óptimo Estado em África, é a nossa proposta de conversa, hoje.

Bicefalia assimétrica do Estado 

Numa perspectiva geral, o federalismo ocidental caracteriza-se como pensamento elaborado sobre uma forma assimétrica e bicéfala do Estado, sustentada pela consagração constitucional de dois níveis de poder, compreendendo os seguintes elementos:   1)   Autoridade do governo federal; 2) Autoridade das unidades locais, isto é, Estados federados, províncias ou regiões; 3) Distribuição territorial do poder; 4) Competências exclusivas em cada um dos níveis; 5) Princípio da soberania partilhada; 6) Princípio da subsidiariedade.

Uma definição universalizável não se esgota nessas dimensões jurídico-políticas. Como veremos mais adiante, a cultura, a língua, a moral, constituem de igual modo elementos úteis para a compreensão dos critérios de classificação e modelos de federalismo, designadamente, étnico, linguístico, multinacional, político, religioso e territorial. 

Na sequência do que escrevi no texto anterior, o legado colonial das classificações etnonímicas não existe em igualdade de circunstâncias históricas no nosso continente. É o caso da Etiópia, país que nunca conheceu o povoamento colonial de longa duração. Por isso, o critério de avaliação dos efeitos da violência étnica em África nem sempre pode ser semelhante a outros critérios com que se opera em contextos diferentes. Apesar disso, na Etiópia registam-se igualmente resistências dos políticos e epistemofobias, quando se trata de aproveitar o que de melhor produzem os intelectuais e académicos Africanos sobre a problemática das etnicidades. 

No dia 4 de novembro de 2020, o Primeiro-Ministro etíope Abiy Ahmed, que se encontrava no cargo há dois anos, por renúncia de Hailemariam Desalegn, desencadeou uma contra-ofensiva militar para travar o avanço da Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF), por força do confronto que a opunha ao governo federal. Quase um ano depois, em Agosto de 2021, um grupo de mais de cinco dezenas de intelectuais Africanos, entre os quais o filósofo senegalês Souleymane Bachir Diagne, a socióloga angolana Cesaltina Abreu e a antropóloga moçambicana Maria Paula Meneses, publicou uma carta aberta com a qual faziam apelo ao fim do conflito e lamentavam a contínua falta de aceitação das abundantes recomendações produzidas por intelectuais africanos sobre a resolução dos conflitos africanos.

A ofensiva do braço armado da Frente de Libertação do Povo Tigray constituía uma manifestação das tendências centrífugas e secessionistas que, no contexto multiétnico etíope, têm hoje cobertura constitucional com os devidos freios. Tal fenómeno caracteriza o tipo de causas que solicitam adequadas abordagens teóricas e filosóficas a que se referem intelectuais Africanos, subscritores da carta. Em semelhantes conjunturas políticas, o federalismo tem sido encarado como modelo para a solução de tais crises, perante tendências centrífugas. Esta foi a resposta dos políticos etíopes, durante a governação de Meles Zenawi (1955-2012), na imagem. Por essa razão, a Etiópia conta com uma organização política assente no federalismo étnico, consagrado pela Constituição que vigora desde Agosto de 1995. 

Experiências falhadas 

A história de África comporta várias narrativas sobre experiências, modelos, tipos e formas do Estado, quer federal, quer unitário. O Estado federal, em grande parte dos casos, correspondia e corresponde a opções que visavam a resolução dos conflitos africanos nas suas diferentes tipologias. Lamentavelmente, não se atribui utilidade às perspectivas comparadas e, por isso, aos modelos e tipos de organização política ou instituições africanas antigas poucas referências são feitas. A este propósito, «Indigenous African Institutions», (2006), [Instituições Endógenas Africanas], a síntese história elaborada pelo economista e filósofo ganense George Ayittey (1945-2022) é uma obra de leitura obrigatória. De resto, os diferentes volumes da História Geral de África da UNESCO, permitem chegar a essas conclusões.

Sem prejuízo do conhecimento dessas arquitecturas institucionais, admite-se que em África possam ter existido formas de organização do Estado que se aproximam dos conhecidos modelos ocidentais, tais como a federação, a confederação e o império. O tipo de federalismo com que se opera em África, enquanto forma de Estado, aparentemente, é o que foi introduzido no período colonial. 

A experiência permite concluir que existem quatro tipos históricos de federalismo, no continente africano: a) Federalismo tentado, com subsequente triunfo do unitarismo (Uganda, Camarões, Congo Democrático); b) Federalismo por agregação (Etiópia, Cirenaica e Tripolitânia, Fezzan e Camarões); c) Federalismo territorial consolidado (Nigéria); d) Federalismo étnico (Etiópia).

Um dos primeiros projectos de federalismo colonial foi ensaiado pelos britânicos no Uganda, em 1952. Nove anos depois, o Estado ugandês independente nascia sob o signo  do federalismo.Entre 1953 e 1963, um outro federalismo colonial reunia a Rodésia do Sul, actual Zimbabwe,  a Rodésia do Norte, actual Zâmbia e a Niassalândia, actual Malawi, naquilo a que se desigou Federação da Rodésia e Niassalândia, também conhecida como Federação Centro-Africana. Deixou de existir em 1963, quando a Zâmbia e o Malawi alcançaram a independência, e na Rodésia do Sul a minoria de origem britânica tomou as rédeas do poder, através de uma declaração unilateral de independência, em 1965.

No Congo-Leopoldville, actual República Democrática do Congo, foi igualmente realizada uma experiência de federalismo colonial que viria a causar a crise secessionista do Katanga, em 1960. No entanto, triunfou o tipo de Estado unitário.

Em 1961, surgiu a República Federativa dos Camarões com a fusão dos territórios que tinham sido ocupados por duas potências coloniais, no norte, os britânicos e no sul, os franceses. Em 1972, passou a denominar-se República Unida dos Camarões. Doze anos depois foi abandonada federação e triunfou o Estado unitário.

O federalismo por agregação regista-se em dois casos, Etiópia e Cirenaica/Tripolitânia.  Em 1947, a Etiópia reconquistou a sua independência, após o período de ocupação da Itália que se estendia à Eritreia e à Somália. Entre 1952 e  1962, a Eritreia foi integrada na Etiópia por Hailé Selassié (1892-1975), numa solução federal proposta pela ONU, a que se seguiu depois a sua transformação definitiva, em unidade territorial do Estado centralizado etíope. Dessa situação política surgiria o movimento separatista, a partir de 1960.

O caso da Líbia é outro a ter em conta. Inicialmente, sob ocupação italiana, a partir de 1912, era integrada por três territórios, nomeadamente, Cirenaica, Tripolitânia e Fezzan ou Sahara italiano. Após a Segunda Guerra Mundial tornaram-se três unidades políticas controladas pela Grã-Bretanha, tendo a Cirenaica alcançado a independência em 1949. Fezzan encontrava-se sob controlo da França. Entretanto, sob os auspícios da ONU, os três territórios formaram o Reino Unido da Líbia, que se tornou independente em 1951.Uma década depois, triunfou o unitarismo.

Temos aí exemplos que ilustram quatro tipos de experiências fracassadas do federalismo de curta duração.

Federalismo, multinacional ou étnico? 

A República Federal Democrática da Etiópia, formada por onze Estados regionais, assenta em bases étnicas e linguísticas. Esta foi uma solução encontrada, após a queda do regime autoritário de Mengistu Hailé Mariam, em 1991. Sob a liderança de Meles Zenawi, Primeiro-Ministro que também detinha a condução da Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope, foram desencadeadas transformações políticas e foram lançadas as bases políticas para uma cidadania étnica. Mas, as tensões fundadas na etnicidade e que estão na origem do federalismo adoptado, são bem mais antigas. Por isso, o federalismo étnico procura corresponder a um modelo ideal do óptimo Estado, garante de uma boa governação. Foi definitivamente consagrado, quando em Agosto de 1995, passou a vigorar uma nova Constituição que, na sua formulação preambular, é a emanação do poder constituinte exercido por nações, nacionalidades e povos da Etiópia. 

À luz desse texto constitucional, por «Nação, Nacionalidade ou Povo» entende-se «um grupo de pessoas que têm ou compartilham grande parte da cultura comum ou costumes semelhantes, a intercompreensão da língua, crença em identidades comuns ou conexas, estrutura psicológica comum, habitando um território identificável e predominantemente contíguo». 

Os Estados regionais realizam suas próprias eleições. Os seus representantes na câmara alta do parlamento bicameral ocupam lugares de acordo com um sistema de cotas que lhes são atribuídas. A cada um destas nações, nacionalidades e povos da Etiópia é reconhecido o direito à autodeterminação e o direito à secessão. 

Pluralismo cultural e linguístico 

Em matéria de critérios de classificação dos diferentes modelos e tipos, o sistema etíope apresenta uma originalidade que se vem revelando como uma caixa de surpresas para as teorias do Estado e filosofias políticas ocidentais. O filósofo canadiano Will Kymlicka, especialista do multiculturalismo, tal como se manifesta na Europa e na América do Norte, reconhece dificuldades perante os apelos de uma filosofia política comparada do federalismo.

No capítulo que assina, inserido na obra colectiva «Ethnic Federalism. The Ethiopian Experience in Comparative Perspective» (2006), [O Federalismo Étnico Etíope. A Experiência Etíope numa Perspectiva Comparada], Kymlicka opera especificamente com um conceito que tem pertinência na abordagem do federalismo ocidental. Por essa razão, prefere tratar do «federalismo multinação», confessando o seu relativismo e, ao mesmo tempo, recusando o uso da expressão «federalismo étnico». Justifica o facto invocando a razão segundo a qual nos países ocidentais o termo «grupo étnico» faz referência aos imigrantes, enquanto que os «grupos históricos» referem os «grupos nacionais». Parece-lhe que o conceito de «multinação» qualifica melhor a acomodação dos «grupos históricos». Assim, considera mais adequado falar de «federalismo multinação». Para Kymlicka, o reconhecimento da identidade étnica e linguística no Ocidente ocorre apenas quando os grupos étnicos e as nações a reivindicam. O exemplo é suportado pelo caso de Espanha, onde existem nacionalidades que não são reconhecidas para efeitos de autonomia federal. A Constituição da República Federal Democrática da Etiópia aponta para uma solução diferente. Neste sentido, pode dizer-se que o federalismo linguístico a convocar, neste esforço de comparação, tem a sua expressão no modelo da Índia. Rajeev Bhargava é um autor que o caracterizou bem num capítulo da referida obra colectiva, dedicado a uma abordagem histórica do modelo indiano.  

Para todos os efeitos, o pluralismo linguístico é um dos mais sedutores problemas que o federalismo étnico etíope suscita. Requer um olhar crítico sobre os debates que opõem liberais e comunitaristas. Em termos comparativos, exceptuando o já mencionado modelo indiano, a nível global são poucas as soluções de federalismo linguístico. Este distingue-se, especialmente, pelo facto de ser suportado por valores morais intrínsecos à pessoa humana e às comunidades a que pertence. A sua consagração, nas democracias ocidentais, no entender de Kymlicka depende de lutas que mobilizam minorias étnicas. Refiro-me aos valores da tolerância, respeito, diversidade, identidade e reconhecimento do Outro. A este respeito, a Constituição etíope estabelece que a diversidade cultural e a linguística têm protecção do Estado, sustentando expressamente que as línguas etíopes gozam de igual reconhecimento. Apesar de o Amárico merecer o estatuto de língua de trabalho do Governo Federal, admite-se, por outro lado, que os Estados federados podem, por lei, determinar as suas respectivas línguas de trabalho.

* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 29 de Maio, aqui republicado com a autorização do autor.

** Ensaísta e professor universitário

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