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Ambiente

Cães e gatos mortos massivamente com pesticida proibido no país

Centenas de animais, entre cães e gatos, estão a ser vítimas de envenenamentos sistemáticos em vários concelhos do país. Na ilha do Sal, análises clínicas revelaram o uso de pesticida altamente contagioso, proibido em vários países, incluindo Cabo Verde. Várias denúncias já foram apresentadas às autoridades. Organizações de defesa dos animais pedem acção consequente.

Pelo menos três mil animais foram envenenados no último ano, em vários concelhos do país. A morte é rápida, porém agoniante e os sintomas são parecidos. Desconfia-se que o(s) veneno(s) esteja(m) a ser dispersado(s) na via pública, em alimentos destinados a cães e gatos.

No Sal, a Organização Salense de Protecção de Animais (OSPA Cabo Verde Cats and Dogs) registou, desde Agosto passado, mais de cinquenta casos, conforme avançou ao A NAÇÃO a representante da ONG, Birthe Leysen.

“Esses são os casos de que temos conhecimento, que morreram de forma suspeita, com sintomas iguais e que apontam no sentido de envenenamento”, declarou.

A ONG fez uma colheita de amostras que foram enviadas para análises na Europa e, nas primeiras amostras, foi identificado um pesticida chamado Carbofuran, altamente letal e sem antídoto.

Trata-se, segundo Birthe Leysen, de um pesticida proibido em muitas partes do Mundo, incluindo em Cabo Verde, pelo que considera que “ninguém deveria ter acesso a ele”, uma vez que representa riscos para os animais, o que é crime, mas também para a vida humana.

Acredita-se, outrossim, que o veneno tem sido dispersado na via pública, em alimentos para os cães e gatos, que, ao ingerirem o veneno, produz uma grande quantidade de gases do estômago e apresentam vómito, seguido de “uma grande aflição e dores, terminando a vida em espasmos violentos”.

Manifestação pacífica

Este cenário originou, no último sábado, uma manifestação pacífica na ilha, envolvendo civis residentes, nacionais e estrangeiros, assim como turistas de passagem pela ilha.

A Câmara Municipal do Sal também reagiu aos envenenamentos, condenando aquilo que classifica como “actos de crueldade” contra os animais, e recorda que os mesmos constituem crime, passiveis de punição com até dois anos de reclusão e multa até 240 dias.

MAA teria proposto protocolo às Câmaras Municipais

A Comunidade Responsável diz ter conhecimento de que o Ministério da Agricultura e Ambiente (MAA) propôs um protocolo, há mais ou menos dois anos, às CM, em que incluem a matança massiva dos cães como o primeiro método de regulação da população canina, isto já com a lei em vigor.

“Recebemos esta denúncia da parte de várias câmaras municipais que vieram ter connosco, porque o MCCR lançou Aliança Nacional de Gestão Ética e mais de metade das câmaras aderiu na espectativa de resolver esse problema eticamente”, revelou Maria Fortes.

Esta organização diz- -se receosa de que o MAA esteja a utilizar o PAPP, veneno utilizado no Fogo antes da implementação da lei, e que esse veneno estrará a ser usado directamente pelos criadores de gado.

“Pensamos que os envenenamentos são institucionalizados, seja quem for o autor do crime, porque eles acontecem sistematicamente e são massivos. Ou seja, são pensados, planificados. A quantidade dos animais, que neste momento estimamos em três mil num ano, é um número tão elevado que não é uma coisa aleatória”, sustenta.

Perto de 300 animais mortos na Boa Vista

Na ilha da Boa Vista, os animais mortos e registados pela organização de protecção animal Nerina, desde Fevereiro de 2022, indicam perto de 300 vítimas.

Os casos começaram na aldeia de Estância de Baixo, alastrando-se depois para a cidade de Sal Rei. Intoxicações ocorreram também em diferentes localidades do norte da ilha, como Cabeça dos Tarafes, Fundo das Figueiras e João Galego.

“Chegamos a um total de mais de 290 cães mortos. O que achamos realmente estranho e sem sentido é que cães foram mortos em ambiente urbano ou habitado. A maioria estava microchipada, vacinada e castrada. Muitos foram envenenados em propriedades privadas”, denunciou a organização Nerina.

A ONG entregou queixas à Polícia Judiciária e ao Ministério Público, apresentando, segundo a mesma, provas e testemunhas. Também diz ter levado os casos aos ministérios com interesse no desenvolvimento sustentável e atractivo, nomeadamente o Ministério da Justiça, Ministério das Finanças e Ministério da Agricultura e Meio Ambiente.

Suspeita de uso de PAPP

Ao contrário do Sal, na Boa Vista foram realizadas análises clínicas, através de amostras retiradas dos cães mortos, para 1500 tipos de substâncias tóxicas, incluindo a estricnina, todos com resultados negativos. Diante disto, a ONG suspeita que o veneno utilizado possa ser o Dogbait PAPP, um produto originário da Nova Zelanda, altamente tóxico para cães.

Veterinário, pede responsabilização

Ouvido pelo A NAÇÃO, o veterinário João Lopes da Silva, que actua na Boa Vista, recorda que os envenenamentos já acontecem há muito tempo, com criadores de gado a utilizar o método no campo como meio de controlo contra os ataques ao gado.

Entretanto, sublinha que os animais passaram a morrer também nos centros urbanos, e, apesar de todas as autoridades estarem informadas, até agora ninguém descobriu o autor dos actos.

O que se tem estado a fazer, diz, não é ético e configura um crime, pelo que tem de haver uma responsabilização, não somente de quem mata os animais, mas também dos próprios tutores, que os abandonam na rua e das próprias autoridades que devem actuar na fiscalização, tendo em conta o código de postura municipal. “A sociedade cabo-verdiana tem que começar a perceber que não se pode ter animais e não se tomar conta. Tem que haver a posse responsável”, reforça.

Quanto as autoridades, diz que, muito mais do que identificar os responsáveis, é necessário também vir a público dizer se o autor foi incriminado e qual foi a decisão do tribunal.

Câmara sensibiliza população

A CM da Boa Vista, segundo um dos subscritores da Aliança Nacional de Gestão Ética da População Canina e Felina, tem tentado sensibilizar a população no sentido de encontrar soluções eficazes e eficientes para pôr cobro à problemática dos cães na ilha, na linha de uma gestão ética da população canina.

Em 2022, a autarquia tinha-se manifestado contra qualquer tipo de violência contra os cães, dizendo-se consciente de que a sensibilização, o registo e a castração mostra-se o melhor caminho a seguir, atribuindo a responsabilidade dos envenenamentos ao Ministério da Agricultura.

O delegado do MAA na ilha, por sua vez, estranhou a demarcação da CMBV, que, segundo disse, fazia parte do projecto, socializado com várias organizações, também em outros municípios.

Xisto Baptista disse na altura, em conferência de imprensa, que o plano consistia em colocar veneno nos campos de pastagem para tentar controlar os ataques de cães vadios frequentes a rebanhos inteiros, com impacto negativo na economia das pessoas que vivem da pecuária.

De acordo com o vereador João Mendes, a autarquia tem se reunido com autoridades locais para tentar conter o envenenamento animal, e que as queixas recebidas têm sido encaminhadas à polícia, ao MAA e à Delegacia de Saúde, na busca de um “djunta mon” para equacionar o problema.

Para além da promoção da castração e registo dos animais de companhia, garante que a CMBV tem trabalhado também junto dos criadores, através do apoio na construção de currais, tendo em vista, também, combater os ataques de cães.

Queixas às autoridades sem efeito

As organizações de defesa dos animais dizem que têm encontrado dificuldades em apresentar queixas junto das autoridades competentes, e as denuncias apresentadas não tem surtido efeito, até agora, na contenção das ocorrências.

É o caso da OSPA, no Sal, que, segundo conta Birthe Leysen, ao tentar apresentar queixas junto da Polícia Nacional, não conseguiu mais do que uma participação geral, não obstante os cães terem donos e estes se terem deslocado às instalações da PN para formalizar queixa. Esta organização vai agora tentar a sorte junto da Polícia Judiciária ou da Procuradoria da República.

Também a Comunidade Responsável alega que tem chegado a ela casos de donos que, ao terem os animais envenenados, tentaram prestar queixa, mas sem sucesso.

“Temos casos em que a pessoa foi a polícia denunciar a morte do seu cão, apontou um suspeito, identificou a casa do suspeito mas não sabia o nome. A polícia então não tomou a denúncia. Isto não é um caso isolado. Não temos a sensibilidade da polícia para tomar estes casos e investigar”, Lamenta Maria Fortes, para quem não basta ter legislação. Ela tem de funcionar na prática.

Maria Fortes – MCCR

Extermínio em outros concelhos

Para além do Sal e da Boa Vista, a morte sistemática de cães tem afectado outras ilhas e concelhos, nomeadamente Praia, São Vicente, Fogo, Brava e São Nicolau.

Na Cidade da Praia, ilha de Santiago, a Comunidade Responsável aponta para um “extermínio de cães” em bairros como Cidadela, Fazenda, Achada Santo António e outros.

“Temos recebido denúncias de voluntários que estavam a alimentar cães e dizem que esses cães morreram massivamente. Em alguns casos morreram nove cães de uma vez,numa rua. Há donos que também perderam seus cães na sequência de envenenamento, muitos na Cidadela”, apontou Maria Fortes, representante do Movimento.

A autarquia praiense também a subscritora da Aliança Nacional de Gestão Ética. Porém, segundo Maria Fortes, ainda não houve qualquer avanço ou capacidade para implementar os projectos delineados.

De forma geral, a população tem apelado à medidas eficientes contra o abate de animais, que, inclusive, pode ter um efeito negativo também no turismo, essencialmente em ilhas como Sal e Boa Vista, onde os turistas tem juntado a sua voz à causa.

Até o fecho da matéria tentamos contacto junto do delegado do MAA na Boa Vista, por telefone, mas não foi possível ouvi-lo, pelo que o jornal vai continuar a tentar obter uma reação junto da tutela.

A Entidade Reguladora Independente da Saúde (ERIS) também foi abordada sobre os riscos que estes venenos representam para a saúde pública, mas remeteu a alçada do caso ao MAA.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 855, de 18 de Janeiro de 2024

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