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Diálogo entre Jacques Derrida e Abdelkébir Khatibi-I: A desconstrução do monolinguismo do outro*

Por: Luís Kandjimbo**

A propósito da geopolítica das línguas, julgo ser interessante compreender a dialéctica das ideias de dois filósofos do espaço mediterrânico, Jacques Derrida (na imagem) e Abdelkébir Khatibi.

O debate aflorado por esse diálogo mantém a sua actualidade. Deve, por essa razão, merecer a atenção que lhe dedicamos. Entretanto, o impulso da nossa conversa tem a sua fonte no livro de Jacques de Derrida, «Le Monolinguisme de l’Autre. Ou La Prothése d’Origine» [O Monolinguismo do Outro ou a Prótese da Origem], publicado em 1996 e com uma edição portuguesa de 2001.

Derrida versus Khatibi

Não sou propriamente um derridiano, tais como o filósofo beninense Paulin Hountondji e o filósofo e crítico literário gabonês Grégoire Biyogo que reivindicam a condição de  antigos alunos de Jacques Derrida, nos anos 60 e 80 do século passado. Em Paris, tinham frequentado os seus seminários, respectivamente, na Escola Nacional Superior e na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. No entanto, o meu interesse pela obra de Jacques Derrida  reside no facto de ele ter dedicado uma boa parte da sua vida reflexiva à Filosofia da Literatura e da Linguagem. Neste sentido, seria também previsível que, em Angola, há quatro décadas, um jovem universitário preocupado com os problemas da linguagem e das literaturas, viesse a encontrar no caminho livros como «L’Écriture et la Différence», 1967, [Escrita e Diferença], «De la Grammatologie», 1967, [Gramatologia]. E, posteriormente, a biblioteca restante da obra de Jacques Derrida. 

Por outro lado, o escritor, filósofo e sociólogo marroquino, Abdelkébir Khatibi, é suficientemente representativo nas literaturas africanas do Magrebe para não ser ignorado. Lamentavelmente, são escassas as traduções da sua obra, em língua portuguesa. Entretanto, quando elaborei o programa da disciplina de «Literaturas Africanas não-Lusófonas» e o respectivo cânone pedagógico, que há uma década leccionei na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, não negligenciei a sua importância. Dele ouviram falar alguns jovens estudantes Angolanos.

A visibilidade pública do debate que aqui nos mobiliza, regista-se a partir em 1996, data da publicação do referido livro de Jacques Derrida, «O Monolinguismo do Outro. Ou a Prótese da Origem». O texto comporta várias referências que remetem para contextos precedentes. Uma delas é o topónimo Louisiana, denominação de unidade política situada no sul dos Estados Unidos da América. A sua frequência não parece casual. Foi na Universidade Estadual, implantada em Bâton Rouge, a capital do Louisiana, que, em 1992, se realizou o simpósio «Echoes from otherwhere/Renvois de l’ailleurs» [Ecos de Longe]. Nessa ocasião, Jacques Derrida reelaborava ideias sobre o problema do monolinguismo, formuladas dez anos antes, em outras comunicações apresentadas na Universidade Sorbonne com a organização do Colégio Internacional de Filosofia, em Paris, e em Montreal. Esse simpósio bilingue reunia especialistas da linguística, literatura, política e cultura, entre os quais o marroquino Abdelkébir Khatibi, que se propunham abordar problemas respeitantes à francofonia fora do espaço territorial da França. Importa referir o simbolismo do Louisiana, um Estado americano situado no sul, cuja história está intrinsicamente associada à presença de Africanos escravizados, à história da língua francesa e do colonialismo francês, bem como ao conceito identitário de «francité» [francidade]. 

Louisiana e francidade 

Do ponte de vista da geopolítica da língua francesa, o Estado do Louisiana e a sua capital, a cidade de Bâton Rouge é uma parcela representativa da noção de «francidade», localizada no território americano. Este neologismo entrou no vocabulário francês, por volta de 1963, pela mão de intelectuais como Jacques Berque (1910–1995), francês, Jean-Marc Léger (1927-2011), canadiano, e Léopold Senghor (1906-2001), senegalês. Para o poeta e político senegalês, a «francidade» deve ser definida como o «conjunto de valores da língua e da cultura que emanam da civilização francesa». O seu sentido completa-se com uma outra noção da mesma família, a de francofonia.

Enquanto colónia da França, Louisiana foi transferida, em finais do século XVII, sucessivamente, para a esfera da Espanha e da Grã-Bretanha, por força dos Tratados de Fontainebleau e de Paris, em 1762 e 1763, após o fim da chamada Guerra dos Sete Anos. Mas foi restituída à França, em 1800. Por fim, foi alienada a favor Estados Unidos da América por Napoleão Bonaparte, em 1803. A partir dessa data, Louisiana era um verdadeiro enclave que contava com uma população de língua francesa de que faziam parte católicos, políticos, republicanos e jornalistas exilados.  

 A história do Louisiana, comum a de outros espaços coloniais, é aqui tomada para compreendermos o alcance das reflexões de Jacques Derrida e Abdelkébir Khatibi. Nessa parcela dos Estados Unidos da América, há sobrevivências de variedades e dialectos da língua francesa, além de uma população significativa e heterogénea de falantes do crioulo, constituída por Afro-descendentes.    

 

Diálogo mediterrânico 

O diálogo amistoso, travado entre Jacques Derrida e Abdelkébir Khatibi, constitui um exercício de tematização filosófica do problema das línguas. Está em causa o estatuto e competências linguísticas de pessoas que podem ser monolingues ou bilingues, isto é, falantes de apenas uma língua ou de duas línguas. Os dois filósofos têm em comum o facto de terem nascido no Magrebe, reflectirem sobre as línguas, escreveram textos através dos quais manifestam desacordos sobre estatutos e competências perante problemáticas dos direitos linguísticos. 

A leitura do referido livro de Jacques Derrida permite concluir que se trata de um registo autobiográfico, estruturando-se a narrativa com base na experiência vivida pelo autor em contexto colonial e que é compartilhada com o escritor marroquino Abdelkébir Khatibi. É um diálogo descontrucionista ou descolonializante em que ambos os interlocutores obrigam-se a sondar os contornos questão linguística, desdobrando-se em problemas como o monolinguismo, o bilinguismo, o plurilinguismo, a língua materna e suas dimensões. 

Amizade e reciprocidade 

Jacques Derrida (Julho, 1930-Outubro, 2004) e Abdelkébir Khatibi (Fevereiro,1938-Março, 2009) são dois autores de língua francesa. Cultivaram uma amizade, desde 1974 até à morte. O primeiro, natural da Argélia, foi professor de universidades francesas e norte-americanas, além de ser considerado um dos mais importantes filósofos franceses do século XX. O segundo é marroquino, uma das vozes canónicas das literaturas africanas de língua francesa do norte de África. Professor da Universidade de Rabat, escritor, filósofo e sociólogo, tem o árabe como língua materna. Apesar disso, é, igualmente, falante do francês. Os seus países de origem, colonizados pela França, integrados no Medterrâneo ocidental, alcançam a independência política, respectivamente, em 1962 e 1956. 

Apesar da alternância nas posições que ocupam nesse exercício argumentativo, cada um deles enuncia juízos a respeito do pensamento do Outro, numa lógica de amizade e reciprocidade. No breve prefácio ao primeiro volume das obras de Khatibi, entre as quais se inclui o livro «Amour Bilingue» [Amor Bilingue], Derrida escrevia o seguinte: «O que Khatibi faz com a língua francesa, o que ele lhe dá ao imprimir a sua marca, é inseparável da sua análise sobre a situação nas suas dimensões linguísticas, certamente, mas também na perspectiva cultural, religiosa, antropológica e política».

Derrida e a experiência argelina

Com «O Monolinguismo do Outro», Derrida confessa parte dos dramas da sua condição de judeu nativo, vividos na sua Argélia natal, onde lhe era reservado um estatuto diferente dos chamados franceses argelinos. Conta que, após a atribuição da nacionalidade francesa aos judeus residentes, em 1870, ser-lhes-ia retirada em 1940, quando ele tinha apenas dez anos de idade. A França era governada pelo regime de Vichy. Sem a cidadania francesa, Derrida tinha deixado de frequentar a escola francesa. Profundamente marcado por essa situação traumática, afirmou muitos anos depois: «Essa foi uma das experiências arrasadoras da minha existência, uma das experiências argelinas arrasadoras da minha existência».

Para a formação da sua personalidade e motivações estruturais da sua actividade filosófica, Jacques Derrida reconhece a potência dos referidos dramas. Por isso, diz o seguinte: «A herança cultural que recebi da Argélia é algo que provavelmente inspirou meu trabalho filosófico. Todo o trabalho que tenho desenvolvido, no que diz respeito ao pensamento filosófico europeu, ocidental, dito greco-europeu, as questões que fui levado a colocar de alguma distância, de uma certa exterioridade, certamente não teriam sido possíveis se, na minha história pessoal, eu não tivesse sido uma espécie de criança nas margens da Europa, uma criança do Mediterrâneo, que não era simplesmente francesa nem simplesmente africana, e que passava o tempo viajando entre uma cultura e outra […]tudo isso causou o terramoto da experiência que acabei de mencionar».

Conceito de desconstrução 

É-lhe atribuída a vulgarização do conceito de desconstrução.Na conversa pública com o filósofo argelino Mustapha Chérif, realizada na capital francesa, em 2003,  Jacques Derrida considerava que o uso da desconstrução consistia em identificar a escrita e os rastos da metafísica ocidental que não sendo homogénea, também não podia ser definida no singular. 

Assim, Jacques Derrida entendia que a desconstrução permitia efectuar duas operações simultâneas: 1) Formular perguntas sobre a genealogia teológica dos conceitos do político no pensamento ocidental e europeu, em particular; 2) Concentrar em contextos determinados e determináveis os conceitos sobre os quais racaíam os questionamentos e a desconstrução. Assim, a desconstrução requeria um pensamento que devia ter em conta a pluralidade de linguagens, culturas e singularidades.

No contexto da história da filosofia francesa da segunda metade do século XX, a desconstrução é um método que aproxima Jacques Derrida a Michel Foucault (1926-1984). «Arqueologia» e «genealogia» são as designações do método com que opera Foucault, consistindo em estudar a história dos sistemas de pensamento, as formas discursivas e os conceitos, bem como as instituições que lhes dão forma.

No seu livro, «Maghreb Pluriel» [Magrebe Plural], Abdelkébir Khatibi, o filósofo do lado africano do Mediterrâneo ocidental, enuncia o «Outro-pensamento» ou a «Dupla crítica», métodos que se revelam adequados à tematização dos problemas que sustentam o diálogo com Jacques Derrida. Tais métodos assentam no «não retorno à inércia dos fundamentos de nosso ser», significando que o «Magrebe designa o nome dessa lacuna, esse não retorno ao modelo de sua religião e teologia […] um não retorno que, do ponto de vista teórico e prático, pode abalar os fundamentos das sociedades do Magrebe […] Esse Outro pensamento coloca-se diante das grandes questões que sacodem o nosso mundo hoje, onde se abre caminho ao desdobramento planetário das ciências, das técnicas e das estratégias». Portanto, Abdelkébir Khatibi enuncia-se aí uma outra forma de abordar os objectos da «descontrução» de Derrida. 

* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 17 de Julho, aqui republicado com a autorização do autor.

** Ensaísta e professor universitário

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