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Palestina no coração

Por: António Pedro Monteiro Lima*

A 15 de novembro de 1988, Cabo Verde reconheceu o Estado da Palestina. A 29 de novembro de 2012, o Estado da Palestina recebeu o estatuto de Estado observador não membro nas Nações Unidas. Estava lá. Ao longo dos anos, durante os 40 anos da minha carreira diplomática, lidei com esse conflito, aprendendo a conhecer a história da região, os posicionamentos de uns e outros para poder formular posicionamentos de Cabo verde e defender as mesmas onde fosse necessário. 

Desde o último ataque no dia 7 deste mês de outubro, de militantes do Hamas do outro lado do muro que separa a faixa de Gaza da zona de controlo militar israelita, que o mundo vive na angústia e numa espécie de sideração perante o desencadeamento brutal de uma beligerância que, atingindo também alvos civis em grande proporção, ato condenado pelo Direito internacional humanitário que só pode ser qualificado como crime de guerra. 

Cabo Verde condenou esse ato com outros países. Pela sua amplitude inesperada, sua perícia em atingir simultaneamente alvos determinados a partir do ar, da terra e do mar, essa operação mostrou ter sido longamente pensada, preparada e estrategicamente decidida, o que demonstra que a resistência palestiniana, longe de ser abatida, desmoralizada ou desmotivada é capaz pelo contrário, de ações militares importantes e de perturbar o comando militar adverso, sabendo que a resposta desse mesmo comando será sem comum medida. 

Essa ação acontece igualmente no momento em que um grande ator político e diplomático da região, a Arábia Saudita, estava em negociações no quadro dos Acordos de Abraham e estava ao que parece, sentindo alguma dificuldade, sendo esse país guardião dos lugares sagrados do Islão. 

Deve-se à verdade mencionar que essa ação da resistência palestiniana veio revelar, uma vez mais, uma guerra encoberta que se desenrola sob os olhos do mundo desde decénios e que os grandes medias internacionais fingem não ver ou ignoram propositadamente, como se a Palestina não existisse e muito menos a causa palestiniana. Israel desrespeita descaradamente as resoluções da Assembleia Geral da ONU apoiado por membros do Conselho de Segurança. 

Um responsável palestiniano diz “O que é violento é a colonização, é o roubo de terras, a brutalidade do exército israelita. Na Palestina, os colonizados, os oprimidos não têm escolha, é uma questão de sobrevivência. Eles tentaram por todos os meios pacíficos e Israel não deu nada”.

Equação possível 

É assim que os Acordos de Abraham, que envolvem vários países árabes e Israel sob a impulsão dos EUA, ignoram pura e simplesmente os palestinianos, dando prioridade aos interesses económicos de uns e outros em detrimento daqueles sem os quais nada é possível nessa região do mundo. Pois, construir uma cooperação saudável entre os países árabes e Israel e alcançar a paz parecem incompatíveis sem uma solução duradoira do problema da Palestina. É uma equação impossível. 

Assim, o último ataque dos militantes do Hamas não foi estrondoso só por mostrar a sua capacidade militar moderna finamente planeada e organizada, mas também por revelar falhas de palmatoria no sistema de segurança israelita considerado dos melhores do mundo. Mas sobretudo, o ataque do Hamas neste preciso momento impõe a todos a existência do fator palestiniano que muitos querem enterrar. 

O ataque contra Israel conseguiu igualmente colocar os olhos do mundo sobre uma realidade incontornável da essência do atual governo israelita influenciado ou mesmo controlado desde as últimas eleições pelos ultra ortodoxos – em linguagem política moderna: a extrema-direita ou fascismo –  e do verdadeiro apartheid no qual vivem não só os habitantes de gaza, mas todos os palestinianos controlados por Israel. É o atual Ministro da defesa do governo de Netanyahu que chama os palestinianos de «animais», o que revela a dimensão do ódio racista e do fosso criado entre as duas entidades destinadas a viverem lado a lado um dia. Perante os «enjeux» dessa nova guerra é fundamental ter elementos de compreensão e de claridade para evitar juízos errados ou posicionamentos precipitados.

Acordar o mundo 

A atual guerra entre Israel e a resistência palestiniana vem não só acordar o mundo para uma realidade encoberta e deliberadamente ignorada de uma colonização que dura há mais de 60 anos com todas as suas sequelas e abominações, mas também colocar à luz do dia a hipocrisia descarada e maligna nas relações internacionais de hoje que vêm as grandes potenciais de outrora que contribuíram para a grande catástrofe (Nakba) vivida pelos palestinianos nas sua terras, fazerem bloco atras de Israel com a clara vontade de esconder as suas responsabilidades e mistificar o mundo, esquecendo a realidade dos refugiados palestinianos no mundo e a situação insustentável que é a desse povo há decénios. Muitos financiam a sobrevivência dos palestinianos nos campos de refugiados ao mesmo tempo que fecham os olhos perante o alargamento permanente dos espaços outorgados aos Kibouts, reduzindo assim dramaticamente as terras palestinianas na Cisjordânia. Os mapas da Palestina desde 1947 são assim assustadores e demonstratives não só da realidade colonial vivida pelos palestinianos da Cisjordânia, como da inépcia da ação da comunidade internacional desde então. 

Pogroms contra palestinianos 

É o jornal israelita Haarez que fala de pogroms dos colonos de Kibouts contra os palestinianos da aldeia de Haoura e de muitos outros, esses últimos tempos. São jornalistas e observadores imparciais e pesquisadores que dão conta do verdadeiro linchamento contra simples crentes nas suas devoções ocorrido na praça sagrada da mesquita Al Aksa umas semanas antes do desencadeamento da operação justamente nomeada Al Aksa. É verdade que os extremistas religiosos daquele país chamam para a destruição da mesquita, a fim de “reconstruir” no seu lugar o Templo de Jerusalém, o que seria um absurdo político e um erro histórico dramático, tendo em conta que se trata, para os muçulmanos do mundo, de um dos lugares mais sagrados do islão. O “Maki, Partido Comunista Israelita” e a “Frente Democrática pela Paz e Igualdade” acreditam “que o governo fascista de Israel é responsável pela escalada brutal e perigosa que custou a vida de muitos cidadãos inocentes”. 

Os bombardeamentos quotidianos dessa cidade martirizada já reduziram uma parte da mesma em cinza. “Todo homem do Hamas é um homem morto…” para o PM israelita Netanyahu. Seis mil bombas já foram lançadas sobre Gaza desde o início da ofensiva das FDI, o que seria equivalente aos bombardeamentos pelos aliados, de Tóquio e Dresden durante a Segunda Guerra Mundial. Numa área de um pouco mais de 365 km2, podemos apreciar a dimensão da vingança israelita. 

Crime de guerra 

O estado de sítio da Faixa de Gaza ou seu isolamento total decretado pelas autoridades israelitas, ou seja, a privação de água, eletricidade e alimentos a 2 milhões de civis é sem dúvida um crime de guerra ao abrigo do direito internacional. Na sua opinião de 15/10/23 no jornal Diário de Notícias, o observador Daniel Deusdado diz o seguinte: “O desespero cria soldados-suicidas com grande facilidade em Gaza. E mais: Israel sabe que por cada líder morto do Hamas, outro se levanta, ainda mais feroz e criativo”. 

Como diz o antigo primeiro-ministro francês Dominique de Villepin: “O direito à legítima defesa não é o direito à vingança indiscriminada”. Diz ainda que “não há responsabilidade coletiva de um povo pelos crimes cometidos por poucos”. O Direito humanitário nasceu precisamente desse tipo de situação.

A vingança perseguida pelas autoridades israelitas irá permitir evitar mais crimes de guerra e mais atrocidades? Iremos sair deste conflito mais perto de uma solução de paz ou devemos esperar novas barbaridades e um conflito sem fim? 

Receio que com os sentimentos de ódio e vingança subjacentes a essas ações militares, estejamos a caminhar a largos passos para situações incompatíveis com os Direitos humanitários e posicionamentos irreconciliáveis com o diálogo e a paz que permanecem as chaves da resolução desse conflito geracional que já durou demais. A presença de um grande líder tanto de um lado como do outro já se faz sentir com acuidade e um posicionamento mais consentâneo com os valores defendidos pela ONU devera ser exigido a todas as partes para ficarmos seguros de estar na via certa para o futuro dessa região.

Conclusão

Neste conflito há crimes contra a humanidade que exigem uma intervenção célere de todos suscetíveis de terem alguma influência sobre as partes. Existe um risco de internacionalização e divisão da comunidade internacional que não se pode ignorar. O Conselho de segurança deveria agir no sentido de evitar mais derramamento de sangue e levar os beligerantes de novo a explorar as vias oferecidas pela solução de dois Estados que é a melhor garantia para Israel. 

A operação Al Aksa mostra que não pode haver segurança nessa região do mundo sem a resolução do problema palestiniano. É importante que as grandes potencias ocidentais reafirmem os seus valores democráticos e deixem de assumir a hipocrisia reinante. Citando uma vez mais um político europeu: “É preciso que haja um sentido de humanismo, justiça e honra na política. Não devemos tentar tirar proveito desta ou daquela comunidade, deste ou daquele segmento da população para fins eleitorais. Quando você quer servir, você tem que ser lúcido, você tem que olhar as coisas de frente, você não tem que ter amnésia, você não tem que olhar para apenas um lado das coisas. Precisamos ter uma política de equilíbrio”. 

À imagem do que fizeram Yasser Arafat, Yitzhak Rabin ou Shimon Pérez, a comunidade internacional deve poder encontrar um caminho de esperança, regressar à abordagem do preço da paz, isto é, a partilha justa da terra, ou seja, a solução dos dois estados com garantias para cada um.  

*Embaixador na reforma 

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