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Homens de vários pareceres

Por: Germano Almeida

Homem de um só parecer,

D’um só rosto, uma só fé,

D’antes quebrar, que torcer,

Ele tudo pode ser,

Mas de corte homem não é.

Sá de Miranda 

Quando me lembro do último acórdão do Tribunal Constitucional que certamente ficará na nossa história política, infelizmente não pelas melhores razões, porque permitiu-se revogar uma norma constitucional, substituindo-a por um simples e episódico “uso” a que chamou “costume”, vem-me sempre à memória esses versos de Sá de Miranda: Homem de um só parecer…

Na realidade os nossos juízes constitucionais dizem-se de “corte”. Não da corte monárquica, mas sim da corte constitucional. 

  Um verdadeiro abismo deveria separar as duas instituições, qual seja, a insanável oposição entre súbdito e cidadão. Por isso que homem de um só parecer, jamais será de corte, porque é sempre cidadão, jamais aceita comportar-se como súbdito.

 Ou pelo menos deveria ser! Bem, na realidade os nossos juízes constitucionais, não só são da “corte”, como também de mais que um parecer. Vejamos então:

 – Citado no acórdão 17/23, o conselheiro Pina Delgado teria dito no acórdão 27/17: 

“A sua rejeição (do costume contra a Constituição) deverá acontecer mais substancialmente quando o costume atingir qualquer das matérias protegidas pela cláusula de limites materiais à revisão constitucional, o que significa que não se poderia formar costumes constitucionais contrários à independência nacional, à… e, por fim, mais representativamente, aos direitos, liberdades e garantias… Em matéria de direitos, liberdades e garantias o desenvolvimento de normas costumeiras que levassem à compressão não só seriam inconstitucionais, como não podiam ser reconhecidas por este Tribunal.”  

 – Nesse mesmo acórdão 27/17 teria dito o conselheiro Aristides Lima: 

  …”se a Constituição está no topo da hierarquia das normas, nem o Regimento da Assembleia Nacional, que tem força infraconstitucional, nem um costume parlamentar contra a Constituição, podem prevalecer face a um sentido claro da Constituição”.

 Isso disseram em 2017, portanto, há apenas cinco anos, dois dos três homens que compõem o nosso Tribunal Constitucional. Palavras que estão nos antípodas do que agora decidiram ao decretar que um “uso”, a que deram o nome de “costume”, é suficiente para prevalecer sobre o que diz a Constituição.

 Costuma-se dizer que só não muda de ideias quem não as tem e este acórdão mostra que ideias é coisa que não falta aos venerandos. São trinta e tal páginas. Porém, essa violenta violentação, mais que simples violação, da Constituição da República tem que nos ser explicada pelos ditos venerandos. Até Deus de alguma forma responde quando questionado sobre os malfeitos que acontecem. Portanto, os juízes do TC por maioria de razão. Porque a pergunta que temos o direito de fazer é esta: QUEM DEU AOS JUIZES DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL O PODER DE VIOLENTAR A CONSTITUIÇÃO DA NOSSA REPÚBLICA, INVENTANDO E TRANSFORMANDO EM LEI UM ABSURDO A QUE CHAMARAM COSTUME?

 Esta é uma pergunta legítima: saber se, tal como Calígula, se sentiram erigidos em deuses. E o presidente da República esteve muito bem ao exortar os cidadãos do país a refletirem, melhor diria, a questionarem, essa decisão que vale como um terramoto social porque põe em causa um bem essencial, que é a segurança jurídica.

  Pretende-se que as decisões dos juízes são intocáveis: decidem e ficou decidido! Porém, não é isso rigorosamente verdade, como certamente ficará provado no dia em que se lembrarem de condenar alguém à morte. 

  Dir-se-á que tal não será possível porque a Constituição da República é contra a pena de morte. Porém, é a mesma Constituição que proíbe a aceitação de “costumes” contra a lei e no entanto ela foi criada e justificada e votada pelos três juízes que não só tinham o particular dever de não o fazer, em nome dos princípios que enformam o “nosso estado de direito democrático”, como também porque há apenas cinco anos juravam a pés juntos que nunca deveria ser feito.

  Ora tendo agido desse modo, o TC deu uma fortíssima machadada no estado de direito democrático que apregoamos desejar construir. Pode-se dizer que o TC decapitou toda e qualquer aspiração à construção de tal estado, porque simplesmente destruiu a segurança jurídica que, como TC, tinha especial dever de defender, sobretudo porque é a última instância judicial a que se pode recorrer. 

  Tem que ser dito abertamente: o TC ignorou os princípios que enformam o nosso sistema, desprezou os nossos valores sociais, agiu como quem quer, pode e manda, como se fossem intangíveis deuses do olimpo cabo-verdiano contra o qual nenhum Sísifo tem coragem de atirar pedras. E tudo isso para manter preso um homem!

O mais triste nisso tudo é saber que a nação cabo-verdiana tem gente com saber e competência, constitucionalistas com obra feita e nome dentro e fora do país, que deveriam sentir-se ultrajados por essa decisão e, portanto, no especial dever de dizer que essa resulução, por mais embrulhada que esteja em palavras bonitas, é errada e iníqua. Mas mantêm-se mudos, assobiando para o leste, como que esquecidos que aqui é que é a nossa tapadinha. Fazem lembrar Cristo: Quando diversas vezes lhe pediram, diz alguma coisa, toma uma posição, tens que ter uma palavra a dizer, ele respondia singelo, Não, não é nada comigo, o meu reino não é deste mundo! Bem, quando deu por si estava dependurado de uma cruz porque todos, a ele, preferiram Barrabás.

 Com essa decisão, o TC quis dar como sanada a flagrante ilegalidade que foi a entrega de um deputado ao poder judicial sem previamente estar pronunciado por um juiz. Aqueles que julgavam o TC não pertencendo e agindo de fora da corporação judicial, terão ficado desiludidos. E com razão, todos os julgavam acima de toda e qualquer suspeita. De modo que a única consolação é sabermos que esses que se apresentam como heróis, afinal são homens de carne e osso como nós outros e que apesar dos títulos pomposos de que se arrogam, são tão pressionáveis como qualquer um, e não se importam de sacrificar um homem para aparentemente limpar a honra de uma instituição. Porém, terá a honra do Parlamento ficado salva com esse acórdão de triste memória? Muito pouca gente acredita que sim.

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