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Um ensaísta como outro de si mesmo – Eugénio Lisboa: O sentimento de pertença e a literatura moçambicana 1*

Por: Luís Kandjimbo**

A sugestão da conversa convoca o nome de um escritor nonagenário, um dos mais importantes ensaístas de língua portuguesa que reivindica duas identidades, a moçambicana e a portuguesa. Trata-se de um ensaísta que segue a tradição inglesa deste género de discurso de que é constituída a maior parte da sua obra. Esta conclusão resulta da frequência que faço do que escreve, desde a altura em que me tornei assíduo leitor dos textos que ele publicava na revista portuguesa Colóquio/Letras. Em 1984, tive a oportunidade de vê-lo pela primeira vez como orador no Colóquio Internacional sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, realizado no Centro Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris. Era também o tempo do meu tirocínio porque aí apresentei a primeira comunicação em evento que reunia escritores, académicos, mulheres e homens de cultura. Mas, hoje, o motivo da conversa é a sua narrativa autobiográfica, com cinco volumes e título em latim, «Acta Est Fabula» [A Peça Está Representada], cuja leitura permite avaliar a utilidade do ensaio, quando se trata de compreender o fenómeno em que determinado sujeito é o Outro de si mesmo, como diria o filósofo francês, Paul Ricoeur (1913-2005).

Outro de si mesmo 

Estou a referir-me ao ensaísta Eugénio Lisboa (Maio, 1930), na imagem. Moçambique é o país onde se situam as suas raízes telúricas, culturais e literárias, o lugar da memória a partir do qual fala da sua infância, juventude e parte da sua vida adulta. E Portugal é o país cuja cidadania, cultura e literatura reivindica, igualmente. Em 1955, após a conclusão dos estudos secundários, seguiu para Lisboa. Aos vinte e cinco anos de idade, obteve a licenciatura em Engenharia Electrotécnica e regressou imediatamente às origens. Viria revelar-se como ensaísta, crítico literário e docente universitário de grande quilate, durante as duas décadas que se seguiram, além de uma actividade profissional desenvolvida no sector dos petróleos, entre Moçambique e África do Sul.

Quando decidiu escrever a narrativa autobiográfica, as suas «Memórias», logo no seu primeiro volume, confessa que estar vivo é um «acaso miraculoso». E em seguida, interroga-se: «Mas quem sou eu? Que sou eu? Que luxo é este de ser ‘eu’[…]». A sua atitude reflexiva é um sintoma da cisão do Eu, que faz o balanço de uma vida. Por isso, afirma: «Olho para trás e as minhas descidas por terrenos baldios, desde a casa na Mendonça Barreto até à baixa do Scala e das livrarias, aconteceram ainda ontem…». Esta é a voz narrativa de um Outro que habita em si mesmo e que relata acontecimentos e actos de que é ele mesmo o protagonista. Interessa perscrutar a memória de ambos, personificados por Si-mesmo e pelo Outro, para interpretar as manifestações da sua identidade. Assim se explica a razão das interrogações sobre o lugar em que se localiza o sujeito que enuncia o discurso autobiográfico. A leitura da sua obra e, especialmente, a sua posicionalidade no campo das literaturas de línguas portuguesa, suscita a pergunta: A que literatura pertence Eugénio Lisboa? Ele e outros escritores moçambicanos respondem em diversas ocasiões. 

Sentimento de pertença 

Vou contar um episódio, ocorrido em Lisboa e também testemunhado por mim, para ilustrar o modo como a nova geração de escritores moçambicanos tributava a sua admiração por Eugénio Lisboa e Rui Knopfli, (1932-1997), escritores que se viram obrigados a abandonar Moçambique, logo a seguir à independência.

Em 1989, com outros jovens representantes da geração literária emergente, integrei a delegação de escritores angolanos que, com os Mais-Velhos, participaram no I Congresso de Escritores de Língua Portuguesa. A delegação moçambicana, além dos nomes consagrados, entre os quais Eugénio Lisboa e Rui Knopfli, contava igualmente com um grupo representativo de novos escritores. Durante o almoço, que teve lugar no restaurante do Hotel Barcelona, nas proximidades da Fundação Calouste Gulbenkian, onde decorria o Congresso, alguns dos novos escritores, pretendendo gozar da simpatia e fazer prova da sua admiração pelos dois escritores da diáspora, protagonizaram uma ruidosa disputa que atraiu a curiosidade dos comensais do dia. Afinal, apesar de não terem regressado a Moçambique, desde 1975 e 1976, respectivamente, Eugénio Lisboa e Rui Knopfli continuavam a ser considerados escritores moçambicanos e a merecer, também, a estima da nova geração literária. 

Num excerto das «páginas de um diário moçambicano», capítulo do quarto volume das «Memórias», Eugénio Lisboa dá conta do seu ponto de vista, acerca do sentimento de pertença à Moçambique e, por conseguinte, à literatura moçambicana. Dois meses depois do Congresso, em Maio de 1989, visitou o país natal a convite da Embaixada portuguesa e da Universidade Eduardo Mondlane. Passado treze anos sobre a data da sua saída, o ensaísta nascido no bairro do Alto Mahé, sentia «o gosto de regressar». 

Antípodas do luso-tropicalismo 

No debate que animou na sede da Associação de Escritores Moçambicanos, foi chamado a responder à pergunta formulada sobre a definição de «escritor moçambicano». Sem hesitações, escreveu no seu diário: «O ambiente africano impregnou-me profundamente e ainda hoje faz parte de mim. Por outro lado, quase toda a minha cultura foi europeia e portuguesa. Eu era como tantos brancos aqui nascidos ou que aqui viveram muito tempo, um ser profundamente dividido – e que não rejeitava nem procurava disfarçar essa divisão.» Estamos perante a categorização da pertença a uma comunidade, correspondendo ao sentimento de um indivíduo que mantém vínculos com outra comunidade. 

Esse sentimento eclético de pertença que Eugénio Lisboa defende tem dignidade para ser tema de problematização filosófica, situando-se nos antípodas das teses luso-tropicalistas de Gilberto Freyre (1900-1987) e seus epígonos. É no domínio da Filosofia Política que se tem verificado maior fortuna reflexiva sobre o tema. Lamentavelmente, no âmbito dos Estudos das Literaturas de Língua Portuguesa, vai tardando o reconhecimento dos pluralismos linguísticos, culturais e literários, de tal modo que não se travam debates sobre experiências coloniais, circulação de culturas, pertença do indivíduo, cidadania, comunidade e Estado no espaço da CPLP. Neste sentido, o pensamento com que opera Eugénio Lisboa não visa a naturalização da diferença, o essencialismo ou a pureza das culturas, como fazem os epígonos do luso-tropicalismo com as teorias da crioulidade, em defesa de uma pretensa hegemonia do poder genésico português, esvaziando o valor que o espaço e o lugar têm nas civilizações e comunidades humanas.

Identidades não existem?

Actualmente, perpassa pela Europa uma vaga de negação das identidades. Registam-se diversas manifestações de incredulidade a respeito da sua importância. O filósofo francês, François Jullien, que integra a última geração de intelectuais de europeus do século XX, é um dos apologistas da inexistência das identidades. De resto, o título do seu livro, é um autêntico manifesto contra a identidade cultural francesa, «Il n’y a pas d’Identité Culturelle» [Não Existe Identidade Cultural] (2016). O primeiro nível da sua conclusão é de ordem conceptual. Decorre do cotejo que efectua entre o conceito de identidade e outros, tais como «universal», «comum», «uniforme» e «singularidade». Conclui que, a propósito da realidade que designa, se torna necessário abandoná-lo, sendo útil introduzir outros termos que julga mais adequados. Assim, os referentes da identidade lhe sugerem que, de modo privilegiado, sejam exploradas outras noções, tais como «distância», «diferença», «recursos» e «fecundidade». Ora, no contexto europeu, as teses de François Jullien são discutíveis, e ainda bem. 

Uma das propostas que tornam o debate fecundo têm a autoria de Paul Ricoeur, que se debruçou sobre a problemática do indivíduo e sua identidade pessoal ou relação dialéctica entre a «ipseidade» e a «mesmidade». Estes foram os temas das conferências que ele proferiu na Universidade de Edimburgo, em 1986, reunidas em livro, sob o título «Soi-Même comme un Autre»[O Si-Mesmo como Outro]. O interesse da perspectiva de Paul Ricoeur reside no facto de eleger a narrativa como objecto de estudo, articulando a identidade do sujeito e a identidade da narrativa. Assim, transforma a narrativa em fonte legítima de problemas susceptíveis de serem tratados à luz de perspectivas da Filosofia Moral ou da Filosofia Política. Mas, há histórias de vida, biografias e autobiografias cujas narrativas comportam experiências individuais que transpõem as expectativas suscitadas pela Ética da narrativa, tal como Paul Ricoeur a problematiza. Por outro lado, há situações-limite que se antecipam às conclusões de François Jullien. É o caso das emoções vividas por Eugénio Lisboa e outros moçambicanos de ascendência europeia, durante o período do «vento de insânia», marcado por acontecimentos que ocorreram em Moçambique, após o acordo de 7 de Setembro, assinado em Lusaka pelo governo português e a FRELIMO. A nacionalização de bens imóveis que constituíam propriedade privada e o não-reconhecimento da dupla nacionalidade são dois desses dramas que configuram situações-limite, relatadas no último capítulo do terceiro volume das «Memórias» de Eugénio Lisboa. 

Memória dos dramas  

A leitura desse volume (1955-1976) nos conduz ao mundo insondável da memória e das profundas motivações que levaram Eugénio Lisboa a abandonar fisicamente o território moçambicano. É um discurso autobiográfico que assegura a possibilidade de desvendar os mistérios do já referido fenómeno, o do «Si-mesmo como Outro». Sob esse olhar crítico autofocalizado, desenvolve-se uma densa malha de dramas alheios e próprios. O seu amigo Rui Knopfli foi expulso de Moçambique, por «razões de integridade», como refere, e em virtude de ter denunciado o repatriamento de um   refugiado político branco do regime rodesiano. Este é um drama alheio, ocorrido antes da proclamação da independência de Moçambique, a 25 de Junho de 1975. Seguiram-se os dramas próprios.

Para Eugénio Lisboa, a impossibilidade de dupla nacionalidade foi uma das mais importantes situações que tornaram insustentável a permanência em Moçambique. A intensidade do drama pode ser interpretada, quando ele se refere à obrigação que teve de manter a nacionalidade moçambicana, com a condição de renunciar à nacionalidade portuguesa. Considera que a lei da nacionalidade, aprovada na época, caracterizava-se por um «fundamentalismo primário e demagógico». Em seu entender, essa lei ignorava o facto de indivíduos como ele serem «profundamente portugueses e profundamente moçambicanos». Pode dizer-se que as ficções jurídicas identitárias produzem efeitos devastadores sobre a pessoa humana nos chamados contextos pós-coloniais.

A intensidade dessa aporia identitária, compreende-se melhor, quando, mais de meio século depois, se lê esta pungente confissão: «Nenhuma dessas vivências profundas podia ser erradicada por decreto. Dessem-me ou não me dessem passaporte, era moçambicano; dessem-me ou não me dessem passaporte, era português. O que eu era em profundidade, era o que eu sentia […] E ainda hoje penso e sinto assim. Quem decide a minha nacionalidade autêntica sou eu e mais ninguém. E venho de uma ilustre linha de representantes de uma cultura dupla, magnificamente exemplificada por gente como Henry James, T.S. Elliot, Joseph Conrad ou, se quiserem – e sem precisar de esticar muito a corda – Ivan Turguenev.

Portanto, se é verdade que a concessão ou negação da dupla nacionalidade é uma emanação das ficções jurídicas construídas pelo Estado moderno ocidental, já a sua eficácia depende do modo como se faz a interpretação e apropriação da história das comunidades humanas. Está em causa a relação entre o Estado e o indivíduo ou o cidadão, na medida em que as fronteiras da cultura a que o cidadão se sente vinculado não se confundem com as fronteiras do território estadual. O sentimento de pertença que vincula o indivíduo a uma cultura transpõe as fronteiras do Estado, quer dizer, é extraterritorial. Pode dizer-se que, com as suas «Memórias», Eugénio Lisboa transita da não-pertença ficcional para a reafirmação de uma relação de pertença à Moçambique, enquanto comunidade histórica. 

 

*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 21 de Agosto, aqui republicado com a autorização do autor.

** Ensaísta e professor universitário

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