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Será que os Cancros em Cabo Verde estão a aumentar? Alguns dados para ajudar no melhor conhecimento e ação

Por: António Pedro Delgado*

Habitualmente, os meses de Outubro e Novembro são dedicados ao reforço das estratégias de promoção da luta contra os cancros, com vista à melhoria do conhecimento e à qualidade das ações e de alargamento dos intervenientes esclarecidos nessa luta, particularmente contra os cancros da mama, útero e próstata. Nessa conjuntura, decidi trazer ao vosso conhecimento alguns elementos estatísticos e de reflexão, recolhidos após ser confrontado com uma pergunta de pessoa amiga, se eu também tinha a perceção de haver um aumento da incidência dos cancros em Cabo Verde, nos últimos tempos. Mesmo não tendo, à partida, o mesmo entendimento, achei por bem munir-me de informações fidedignas e partilhá-las de forma amplificada, através de um meio público de comunicação, como uma contribuição ao processo.

Recorri aos dados sistematicamente registados e publicados nos Relatórios Estatísticos do Ministério de Saúde, desde os anos 90 do século passado e que nos fornecem séries de dados que traduzem a situação efetiva dos problemas de saúde-doença e utilizar os particularmente referentes à mortalidade, já que os registos destes eventos são mais fidedignos porque assentados sistematicamente.

A análise da série de dados sobre a evolução dos óbitos por tumores ou neoplasias no intervalo de 17 anos, de 2005 a 2021, (Gráfico1) constatamos uma tendência pouco acentuada para aumento de número de óbitos por cancros, quase uma estabilização, sobretudo se tivermos em conta o aumento constante da longevidade da população verificada. 

Contudo, embora os cancros se manifestam em maior número em pessoas com idade mais avançada, eles NÃO são doença de “velhos”, estritamente ligado ao processo de envelhecimento, e sofrem a influência de diversos fatores de risco. Pessoas jovens, felizmente em menor número, também manifestam o cancro, não porque a doença ficou mais grave, mais ‘invasiva’ na modernidade, mas porque há mudanças nos vários fatores de risco ligados ao estilo de vida que contribuíram ou por fatores genéticos mais acentuados.

Olhando em particular para os cancros mais conhecidos e, sobretudo ligados ao género e à função da reprodução – da mama, útero e próstata – deparamos com evoluções diferentes, que evidenciamos a seguir, diferenças que são, provavelmente resultantes de causas diversas, mas que nos obriga a adotar abordagens diferenciadas, adequadas e permanentes. 

Os óbitos registados por tumores da mama, no geral, (Grafico2) não ultrapassaram os 20 casos no ano 2016, oscilando em torno de uma linha de tendência crescente de forma lenta. Esse comportamento é bom, mas não suficiente e não retira motivos de preocupação às pessoas afetadas e às instituições. Isto pode traduzir o resultado de ações concertadas, desde a promoção da vigilância individual, da prática dos rastreios descentralizados, do encaminhamento dos casos duvidosos, e dos tratamentos precoces. Não nos esqueçamos que os cancros da mama podem se manifestar nos homens, embora raro, mas requer sempre deste não baixar a guarda, nomeadamente o exame ao espelho pela palpação frequente. Ainda considerar como importante o número de mulheres, cada vez maior, que recuperam a sua saúde, após um sofrerem um episódio deste.

No que respeita aos cancros do útero, o registo de óbitos mostra, entre 2007 e 2021, (Gráfico3) uma evolução com uma tendência decrescente, embora pouco acentuada ainda, mas podendo ser interpretada como a tradução de uma melhoria e consistência das abordagens e intervenções conjugadas que englobam maior atenção das mulheres perante o seu corpo, diminuição da exposição aos riscos e adoção de intervenções experimentadas e acompanhadas, que produzem melhores efeitos. 

Aliás, o cancro do útero é um dos cancros com maior probabilidade de ser eliminado nos tempos próximos, em Cabo Verde, sendo a melhor estratégia essa conjugação de esforços, a que se acrescenta a introdução alargada da vacinação contra o vírus do papiloma humano/HPV e o aumento da frequência dos rastreios para deteção precoce e subsequente tratamento de lesões pré-cancerígenas.

Quanto ao cancro da próstata (Gráfico4) regista-se uma tendência crescente do número de óbitos não ultrapassando, no período em análise, os 50 casos por ano, atingidos em 2015. Traduzem por um lado, provavelmente a descoberta tardia de casos acumulados, escondidos pelos tabus ligados ao exame pelo toque retal, p. ex., mas por outro, a uma consciencialização crescente dos homens que os fazem estar atentos e disponíveis para o exame, mas também das mulheres suas parceiras sexuais, das instituições, organizações da sociedade civil e profissionais de saúde, para a necessária dinamização de abordagens e de ações que conduzam a uma deteção precoce de sinais e sobretudo, à identificação dos fatores de risco sobre os quais atuar.

Contudo, apenas estas constatações estatísticas não sustentam a tese que a situação do cancro piora ou melhora no nosso país. Há, sim uma maior atenção das pessoas e das instituições para esse problema, o que é um fator para sucesso da luta contra o cancro. Precisará de ações mais inteligentes, enérgicas e de envolvimento das pessoas em risco ou afetadas, para reverter a situação.

Os cancros são classificados como “Doenças não transmissíveis crónicas /DNTC” degenerativas (OMS). Estas doenças resultam de deteriorações de órgãos e funções no nosso organismo, por ação da exposição repetida e frequente aos fatores de riscos, trazidos e mantidos pelos hábitos e costumes que determinam o estilo de vida de cada indivíduo na sua família e/ou no círculo de amigos – o uso do tabaco, do álcool, ingestão do sal, açúcar e gorduras em excesso, a obesidade, o sedentarismo e inatividade física, a exposição em excesso aos raios ultravioletas, ao sol, etc. O fator biogenético, hereditário, que interfere em maior ou menor grau, não é, quase sempre, o vilão. Contudo, quem tenha registo de cancros na família deve estar bem alerta.

A exposição aos riscos começa à nascença, em função das condições, estilos e formas de vida do agregado familiar e do meio ambiente circundante, podendo resultar numa acumulação dos efeitos nocivos ao longo de primeiros anos de vida, manifestando-se mais tarde, maioria das vezes em idades mais avançadas (por volta dos 50 anos ou mais), mas também em idade mais jovem e em crianças.

As diferenças entre as DNTC (cancros) e as “Doenças transmissíveis e contagiosas /DTC”, são enormes tanto no que diz respeito à génese, como ao curso da doença e ainda nas consequências, incluindo formas de intervenção.  No caso das DTC, as infeções agudas resultantes representam um risco iminente de perda da vida e exige uma ação imediata de profissionais competentes, ministrando medicamentos, cuidados e atenção convenientes, para reverter a situação a curto prazo. Estas infeções se traduziram, na história, em variadas epidemias vividas pelos nossos antepassados, de que a humanidade guardou triste memória. 

Mas esta forma de olhar não pode ser transferida para a abordagem das DNTC. Nestas, são relevantes e primordiais a atitude, o comportamento e o conhecimento de cada indivíduo em relação aos fatores de risco, enquanto agente principal, quer para prevenir a sua exposição aos fatores de risco, quer para a promoção da saúde da família e da sua, quanto para fazer os rastreios preconizados para deteção precoce de eventuais alterações e seguimento.

Terra Branca, Praia, 14 de Novembro de 2023

* Médico, Mestre em Saúde Pública e Doutor em Saúde Internacional

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