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Santiago

Os “centenários”: Margarida Frederico Delgado, 101 anos de história

Margarida Frederico Delgado, ou Guida, carrega com ela 101 anos de história. Da esfera pessoal e do último século deste país, desde o governo autoritário de Salazar, passando pela independência até aos dias actuais. Lembra-se de tudo e de todos, incluindo dos vários alunos que pelas suas mãos passaram para receber explicação, muitos hoje figuras da nossa política e governo. 

“06 de Setembro de 1922”. Diz-me, após refletir por instantes, quando questionada quando nasceu. Embora hoje em passos mais lentos, a memória ainda alcança a vivência de um século, desta praiense que nasceu e cresceu no Centro Histórico do Platô, onde vive ainda hoje. 

Teve uma única filha, Filomena Delgado (antiga ministra da Educação e presidente do MpD num dado período), logo ela, Guida, que descende de uma família numerosa. As contas já não alcançam, com precisão, quantos irmãos teve, ao que responde “um monte”, quando questionada. 

Guida ao lado da filha Filomena Delgado

Na verdade, segundo a filha, nha Guida teve dois irmãos maternos e 23 irmãos paternos, dos quais não chegou a conhecer todos. Faleceram 10, incluindo os dois irmãos maternos. Filomena acredita, inclusive, que a longevidade da mãe foi herdada do lado paterno, já que teve uma irmã que faleceu com 100 anos e tem outro irmão em São Vicente que este ano corta a meta de um século de vida. 

Memória fina

Apesar de ainda gozar de uma fina lucidez, a fraca audição e algum cansaço, próprios da idade, já não permitem a esta nossa centenária conversas longas. Ainda assim, a tudo aquilo que consegue compreender, numa breve conversa intermediada pela filha, responde com espantosa precisão. 

Desde os nomes dos padres e bispos que foi conhecendo na Igreja Católica ao longo da vida, passando pelos protagonistas do último século da história de Cabo Verde, e até de Portugal, incluindo os nomes dos mais pequenos netos e sobrinhos-bisnetos. 

“Ela ainda conversa. Pergunta pelas crianças quando elas não estão, pelos que estão na escola, pergunta pela minha filha, se já foi trabalhar, se já voltou. Tem boa memória, reconhece bem as pessoas”, diz Filomena Delgado.

Até há poucos anos dona Guida ainda acompanhava pelos noticiários da televisão a vida de Cabo Verde e do Mundo, escutando o que lhe era possível e acompanhando o resto nas notas de rodapé do aparelho.

Actualmente já quase não vê televisão, vai à mesa para o almoço, mas o jantar é-lhe servido no quarto, onde passa a maior parte do tempo.

Adepta do chocolate 

Assim como a mente recorda as pessoas e os acontecimentos, o paladar também mantém vivos seus sabores de eleição. É ainda hoje uma apaixonada por chocolates. “Se puder, come chocolate todos os dias. Tem chocolate em casa praticamente o ano inteiro, porque as pessoas da família já sabem e enviam para ela”, diz a filha Filomena.

Guida é um dos rostos da exposição fotográfica “Os Centenários de Cabo Verde”, do fotojornalista João Paulo Tavares. Também, ainda antes dos 100, foi homenageada em 2017 pela Câmara Municipal da Praia, por altura do 19 de Maio, Dia do Município, o que naturalmente deixou-a contente de orgulho. 

Feriado “Dá ku pedra, dá ku pó”

Aliás, o 19 de Maio é um feriado que tem um significado especial na vida de Margarida Frederico Delgado e que ainda hoje é recordado com algum gozo. 

Instituído como símbolo da resistência colonial pelos praienses, quando em 1974 um grupo de cidadãos foi vítima de represálias da tropa portuguesa devido a uma manifestação contra o regime, para Guida é o feriado “dá ku pedra dá ku pó”, referência que utilizava para apoquentar seu amigo Chico Xan, um dos nacionais feridos nessa altercação.  

“Chico Xan era um dos que estavam envolvidos. Nós morávamos na Ponta Belém, perto da esquina dos Travadores, e quando ele e os outros rapazes provocavam ou brigavam com os portugueses eles corriam e desapareciam naquela esquina. Com a confusão de 19 de Maio, o Chico Xan levou um tiro, e quando se declarou feriado no dia, ela dizia que aquele era um feriado “da ku pó, da ku pedra”. Ao que Chico respondia: “Nha ê desprezenta”. 

Uma brincadeira que lhes valeu uma amizade de longos anos, fruto da qual Guida guarda, até hoje, uma caixa de presente enviada por Chico Xan, de Portugal, e onde se pode ler “Da ku pedra, da ku pó”. 

Eterna professora 

Nha Guida aprendeu a ler e a escrever na Escola Grande, no Platô. Sobrinha de uma explicadora, também herdou a arte de ensinar. E pelas suas mãos, em casa, passaram várias crianças, que com ela aprenderam as primeiras letras e números. 

Entre essas crianças estão personalidades e anónimos das últimas gerações, entre as quais a actual ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, Edna Oliveira, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Filipe Tavares, e o deputado e presidente do PAICV, Rui Semedo. 

“Hoje é dia de celebrar a vida daquela que me apresentou as cinco letras mágicas, as vogais  a, e, i, o ,u.  A vida da Sra. Margarida Frederico Delgado”, escreveu, aquando dos seus 100 anos, Edna Oliveira, que diz ter frequentado diariamente a casa de Nha Guida dos três aos cinco anos de idade. 

“Acordava bem cedo e de saco de rendas (de lã) colorida ao ombro, pelas mãos da minha tia Luísa, dirigia-me à casa da Nha Guida para conhecer um novo mundo, o mundo da descoberta das letras, números, cores e do saber”, recordou, lembrando Nha Guida como a sua primeira bússola em direção ao conhecimento, mas também uma professora “paciente, dedicada e carinhosa”.

Platô d´outrora01

Nha Guida sempre viveu no Platô, entre uma ponta e outra daquilo que, quando criança, era uma Praia mais enxuta. Em poucas palavras, ressalva que as casas eram quase todas rés do chão, mas que havia muitas pessoas no Platô a viver, mais do que hoje, uma vez que muitas residências foram vendidas ou arrendadas para o comércio. O convívio também era diferente, ia muito à igreja, missas e outras actividades religiosas.

Este ano, no dia 06 de Setembro, Nha Guida completa os seus 102 anos de vida, uma idade bonita e rara nos dias actuais. A NAÇÃO deseja-lhe muita saúde e que nos continue a contar como era a vida neste mais de um século que já carrega consigo. 

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 870, de 02 de Maio de 2024

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