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Aristides Pereira – um estadista comprometido com o povo *

Por: Aristides Lima 

1. Um estadista antes do Estado …

Começo por afirmar que Aristides Pereira foi um estadista antes do Estado, avant la lettre, como dizem os franceses. Estadista aqui quer dizer, como vem no dicionário Houaiss de língua portuguesa, pessoa versada nos princípios ou na arte de governar; pessoa ativamente envolvida em conduzir os negócios de um governo ou moldar a sua política; homem de Estado; pessoa que exerce liderança política com sabedoria e sem limitações partidárias. 

Num Estado moderno, mormente democrático, a governação está intimamente ligada aos partidos políticos e ao exercício das suas funções. Ora bem, Aristides participou já em Bissau na criação de um partido político, instrumento fundamental para um Estado moderno poder funcionar. Ao fundar e sobretudo ao integrar a direção do partido político que haveria de conduzir os povos da Guiné e Cabo Verde às respetivas independências, deu um passo fundamental para o estadista pleno que viria a ser mais tarde. Assim, por esse seu percurso, Pereira pode ser considerado um estadista antes mesmo da proclamação do Estado de Cabo Verde.

2.  Homem de Estado com todas as letras 

No entanto, Aristides Pereira começou a sua vida de estadista cabo-verdiano no sentido próprio do termo, quando a 30 de junho de 1975 foi eleito deputado à Assembleia Nacional constituinte e eleito como o 1º Presidente da República de Cabo Verde (RCV). Tinha 52 anos. Foi reeleito mais duas vezes para esse alto cargo, sempre para mandatos de 5 anos.

O seu lugar na galeria dos Presidentes da RCV é único, não só por a sua eleição estar intensamente ligada à luta de libertação nacional, mas também porque co-presidiu o ato público de proclamação da independência de Cabo Verde. Até hoje é o único PR que exerceu o cargo por três mandatos, num total de quinze anos. Também foi o único eleito de forma indireta pelo Povo, isto é, através dos Deputados à Assembleia Nacional. Foi igualmente o único que enquanto PR dirigia um partido político em dois Estados distintos. Terminou o seu último mandato, quando perdeu as eleições em 1991. Tinha 68 anos. 

A. O estadista e os grandes desafios do I mandato 

Como o mais alto magistrado da Nação, foi ao lado do Primeiro Ministro Pedro Pires, o principal rosto na representação interna e externa da RCV. Teve a oportunidade de cunhar a governação do País num contexto em que se impunha criar as bases económicas do Arquipélago, pôr de pé instituições sólidas para a governação, reforçar a unidade nacional e desenvolver políticas de cooperação e amizade com os diversos países do mundo e participar em organizações internacionais de índole universal ou regional. 

Desde o seu primeiro mandato, pelo seu compromisso com o país, e as suas qualidades de líder, afirmou-se como uma figura respeitada no plano interno e junto das comunidades cabo-verdianas. 

Presidia as reuniões do Conselho de Ministros que eram realizadas no Palácio da Presidência da República e relacionava-se muito bem com o PM, o Governo no seu todo e as organizações de massas que gravitavam em torno do Partido e do Estado. 

Desempenhou um papel fulcral no desenvolvimento das relações internacionais de Cabo Verde com particular destaque para as relações com os Países de Língua Portuguesa e os países africanos, em especial os vizinhos de Cabo Verde. 

No contexto da guerra fria que marcou o tempo do seu exercício no poder, procurou, numa nota de equilíbrio, manter as melhores relações possíveis, quer com os países ocidentais, capitalistas, quer com os países socialistas, que tinham sido aliados dos movimentos de libertação nacional, colocando em primeiro lugar os interesses do povo cabo-verdiano. 

B. O estadista e os grandes desafios do II mandato (1981-1985)

Ao longo do seu segundo mandato, Aristides Pereira teve de enfrentar não só as tarefas normais da governação do país, a cargo do Governo, mas também as consequências do golpe de Estado de Nino Vieira contra Luís Cabral, o primeiro PR da Guiné Bissau.  

O período de 1981 a 1985 ficou particularmente ensombrado pelo incidente da Reforma Agrária, em que proprietários e populares, a 31 de agosto de 1981, se revoltaram contra a Reforma Agrária na Ilha de Santo Antão. Em março de 1982, os envolvidos nos acontecimentos do 31 de agosto foram julgados por um Tribunal Militar, tendo sido condenados a penas de prisão. Mais tarde, o Presidente Aristides usou o seu poder de clemência para proferir indultos que terão abrangido vários cidadãos presos, incluindo aqueles que o foram no contexto dos protestos e agitações políticas em Santo Antão. 

Como sabem, o indulto ou perdão é um instituto jurídico-constitucional que permite a um Chefe de Estado perdoar uma pena total ou parcialmente com base em critérios de justiça, tendo em conta o caso concreto, e corrigindo de certo modo a decisão do Poder Judicial por esta via especial, mas que se reconduz ao ius puniendi do Estado. No caso em apreço, o perdão foi proferido através do Decreto-Presidencial nº 1/83, de 15 de janeiro. O Preâmbulo do decreto-presidencial, que perdoou em 1/3 a 1/4 de penas por diversos crimes, entre eles crimes contra a segurança do Estado, invocou valores como «o humanismo, a fraternidade, a tolerância e a harmonia, por que sempre lutou Amílcar Cabral e que constituem, aliás, o apanágio da sociedade que se está edificando em Cabo Verde». 

O Golpe de Estado na Guiné-Bissau contra Luiz Cabral viria pôr termo à ideia da unidade Guiné-Cabo Verde, o que levou à criação do PAICV, a 20 de janeiro de 1981 e à revisão da Constituição de 1980. O PAICV passou a assumir o legado histórico político e ideológico do PAIGC. 

Uma das contribuições marcantes que, enquanto Chefe de Estado, Aristides Pereira deu no seu segundo mandato, tem a ver com a criação de condições para a realização  de conversações em Cabo Verde com vista à paz na África Austral. Além desta contribuição no âmbito do conflito que opunha a África do Sul a Angola, também os seus bons ofícios foram importantes no que diz respeito ao processo de independência da Namíbia. 

Facto digno de assinalar e que mostra o prestígio de que Aristides Pereira gozava no exterior foi a circunstância de ele ter sido escolhido por iniciativa das Nações Unidas para proferir um discurso na sede da Unesco, em Paris, em representação dos 50 Países Menos Avançados do Mundo, os PMA. 

Aristides Pereira

C. O III mandato de Aristides Pereira e o desafio da mudança política.  

Ao longo do seu III mandato como PR, teve a oportunidade de se mostrar não só como um líder com profunda consciência da história do seu país, como também como um estadista sensível à cultura cabo-verdiana e ao papel dos intelectuais cabo-verdianos na emancipação do povo das Ilhas. 

Um momento importante foi quando se realizou o Simpósio Internacional sobre a Cultura e Literatura Cabo-verdianas, em novembro de 1986, no Mindelo. Este Simpósio, para além dos seus objetivos histórico-culturais, visou uma certa reconciliação com as elites que representavam o movimento literário claridoso. É dessa altura a afirmação de Aristides Pereira no sentido de que «a vitória da luta de libertação nacional é tributária quer da cultura, quer da conduta cívica das pessoas». 

É isso que resulta da leitura da seguinte passagem do seu discurso no Simpósio acima referido: 

«As Nações têm história, as ideias têm história. A luta para a libertação nacional de Cabo Verde só foi vitoriosa pela maturidade cultural e política do seu povo. Os homens que fizeram e dirigiram essa luta – Amílcar Cabral e todos nós- são fruto de um ambiente cultural e social preparado por gerações anteriores cujos anseios retomamos e aprofundamos, mas também, preparado por homens concretos cuja conduta cívica marcou a nossa personalidade». 

25 anos mais tarde, em 2011, Aristides Pereira, avaliando a homenagem que se tinha realizado em S. Vicente aos claridosos, pontualizava o seguinte: «O simpósio tinha e teve um inegável significado político, era a prova de que nós não fazíamos tábua rasa do passado. Era a prova de que antes de nós, tinha havido outras pessoas que arriscaram, lutaram e sofreram por esta terra». 

Não deixa de ser um fator de interpelação cívica esta vibrante homenagem aos intelectuais claridosos feita pelo primeiro PR, Aristides Pereira, quando há hoje quem dá sinais de desgosto porque existe uma corrente forte de cidadãos e contribuintes de diversos quadrantes políticos que pretendem conferir abrangência comunitária e estadual ao reconhecimento que o povo cabo-verdiano deseja  patentear à figura de Amílcar Cabral, vulto maior da luta do povo das ilhas pela  realização do seu direito à autodeterminação e independência, e  um dos pensadores mais fecundos  e resultadistas do  nosso horizonte cultural. 

Durante o seu III mandato, Aristides Pereira desempenhou um papel importante na mudança do sistema político e de Governo em Cabo Verde. Em janeiro de 1990 ele dizia «Os acontecimentos políticos que se verificam no plano internacional impõem-nos uma reanálise do sistema político». Em setembro a Assembleia Nacional Popular procedeu à revisão da Constituição de 1980, que pôs termo ao regime de partido único, ao prever a livre constituição de partidos políticos, e afirmou um sistema de governo semipresidencial. Na sequência da revisão Constitucional viriam a ser aprovadas as principais leis da transição política. 

Não obstante ser candidato à sua própria sucessão, Pereira exerceu o cargo de PR na fase de transição de forma muito responsável e dialogante, com as forças políticas nascentes, tendo recebido em mãos o manifesto político do Movimento para a Democracia, em audiência concedida ao Dr. Carlos Veiga, líder histórico do MpD. Desempenhou então uma função moderadora e pedagógica. São dele as seguintes palavras: «Nas eleições legislativas de amanhã, 13 de janeiro, exorto todos os cidadãos recenseados a que exerçam o seu direito de voto, pensando-o como dever patriótico, com implicações no plano individual e coletivo. Apelo ainda ao espírito de solidariedade e de fraternidade dos cabo-verdianos, para que aceitem o resultado das urnas como uma consequência natural do sistema pluripartidário que nós escolhemos e ratificamos».

 Não se pode deixar de realçar este último aspeto, o da aceitação dos resultados eleitorais, princípio básico da democracia, que nem sempre era respeitado em várias regiões do mundo, particularmente em África. Hoje mesmo em países com uma história exemplar de democracia, encontramos estes problemas, como demonstraram os acontecimentos de assalto ao Capitólio nos EUA, a 6 de janeiro de 2021, após Donald Trump ter alegado que teria havido fraude nas eleições presidenciais que perdeu para Joe Biden, e recusado aceitar o veredito das urnas. Por isso, também, não podemos esquecer a mensagem de Pereira logo após os resultados das primeiras eleições verdadeiramente competitivas de Cabo Verde, as eleições legislativas de 13 janeiro de 1991, ao dizer o seguinte: «O país escolheu e o que o país escolhe deve ser respeitado como ato de soberania. O momento histórico que ora vivemos é a sequência natural de um processo iniciado com a independência nacional – ou mesmo antes- e que continuará para formas mais evoluídas de democracia… Sem dúvida que mais um passo se deu para o reforço da democracia cabo-verdiana, reforço esse que deverá continuar a traduzir-se em mais desenvolvimento.»

3. Exercício do poder de mensagem e comunicação com o povo

Para se ter uma ideia da ação de Aristides Pereira como homem de Estado comprometido com o seu povo é importante também olhar o modo como ele exerceu o seu poder de mensagem. Este poder não se confunde com aquilo que hoje em dia se chama de magistratura de influência, e que pode ser definida como o poder formal e informal desenvolvido pelo Chefe de Estado para levar  as instituições públicas e entidades da sociedade à assunção positiva ou negativa de determinadas condutas, relacionadas com  questões que se enquadrem no âmbito das suas funções constitucionais ou que com as mesmas mantêm uma relação de conexão instrumental (C. Blanco de Morais). Mas é muito importante.  

As mensagens assumiam essencialmente a forma de comunicações dirigidas diretamente à Nação por ocasião do Ano Novo ou de comemorações importantes, como as do dia da independência nacional, da realização de eleições ou de dias como o   da Mulher cabo-verdiana ou do trabalhador. Não se pode ignorar, embora noutro plano, o conjunto de mensagens que o Presidente dirigia a setores da vida político-institucional ou da sociedade civil, por ocasião das cerimónias regulares e anuais de apresentação de cumprimentos ao Chefe de Estado. 

Uma outra forma significativa de se relacionar com o povo, para além das visitas a instituições e às ilhas, era através do exercício do direito de petição. Muitos cidadãos dirigiam-se ao PR com sugestões, queixas, representações, pedidos e reclamações. Lembro-me, por exemplo, de situações relacionadas com a situação prisional ou com a inexistência de um anexo psiquiátrico nas cadeias. O PR tinha o maior cuidado com as petições do cidadão e em articulação com o Governo, procurava resolver aquilo que era possível fazer-se. Por isso, não me parece que Aristides Pereira fosse um Presidente distante do povo, como alguns dizem. Pode-se, eventualmente, dizer, que era um Presidente cerimonial, mas distante não. Por certo não era um homem que gostava de palmadinhas nas costas ou de abraços e beijinhos, mas podia ainda assim, fora do contexto onde pontificava a tradicional «gravitas» de certos atos de Estado, pertencer ao clube daqueles simples mortais que podiam ainda soltar uma boa gargalhada ou esboçar um belo sorriso, numa conversa. Era, uma pessoa cativante pela sua simpatia, serenidade, maneira de falar e pelo respeito que tinha pelas pessoas, independentemente da sua posição na escala social ou política.

4. Aristides Pereira, «elder statesman » 

Aristides Pereira foi um estadista único na história de Cabo Verde, um «elder statesman» e um «sage», um cidadão ilustre, profundamente comprometido com o seu povo. Foi um homem do seu tempo – combatente da liberdade e das independências – que se situou do lado da luta pelo progresso do seu povo e da África; de um tempo heróico, mas também de colocar a mão na massa. Colocou a mão na massa na luta pela independência de dois países africanos; mas também colocou a mão na massa na construção nacional em Cabo Verde. Foi um defensor convicto da importância do não alinhamento com as duas superpotências e os seus blocos político-militares, como uma via importante para a estruturação naquele tempo das relações internacionais no interesse dos Estados do chamado Terceiro Mundo.

Intra muros, o Presidente Pereira funcionou como uma reserva política e moral de inteligência, lucidez, moderação e bom senso. Estas suas qualidades pessoais e políticas, foram a meu ver, um «abono de família» para o seu partido e para o nosso Estado , pois ajudaram a evitar o  escalar de muitas situações delicadas ou difíceis por que  o regime instalado com a independência .   

Deixou a política, mas era procurado, quer internamente, quer externamente. por individualidades, organizações internacionais e fundações estrangeiras, certamente pela forma como ele exerceu o seu cargo, pela ética de responsabilidade que o guiou e pela sua inteligência e bom senso.  

* Versão adaptada da conferência proferida na Presidência da República, no dia 17 de Novembro, por ocasião do centenário do nascimento de Aristides Pereira.  

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