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Esther Duflo, Nobel da Economia de 2019: É uma caricatura pensar que todos os pobres são empreendedores

Por: João Serra*

No quadro das estratégias bem-sucedidas de desenvolvimento económico e social dos diferentes países não desenvolvidos, incluindo Cabo Verde, o microcrédito ocupa um papel de relevo.

Na sua origem, o microcrédito visa potenciar o acesso ao crédito a pessoas, especialmente mulheres, de baixos rendimentos que, em processos tradicionais, normalmente teriam muita dificuldade de acesso aos mercados financeiros, com o objetivo de iniciar ou desenvolver pequenos negócios, promover o emprego e reduzir a pobreza.  

O microcrédito tem, assim, uma componente social – cujo conceito foi desenvolvido por Muhammad Yunus, considerado o “pai do microcrédito”, – que é precisamente o que o distingue dos mecanismos de financiamento tradicionais. 

As Nações Unidas designaram o ano de 2005 como o “Ano Internacional do Microcrédito”. Quando o Prémio Nobel da Paz foi atribuído a Muhammad Yunus e ao “Grameen Bank”, em 2006, o Comité do Nobel classificou o microcrédito como “um instrumento cada vez mais importante na luta contra a pobreza”. Por seu turno, ciente da importância do microcrédito, a estrela “pop” da banda U2, Bono, mundialmente conhecido pela sua intervenção social, foi ainda mais longe ao fazer a seguinte afirmação: “Dê a um homem um peixe, e ele vai comer por um dia. Dê a uma mulher um microcrédito, e ela, o seu marido e os seus filhos comerão por toda a vida”.

Tenho elaborado vários trabalhos para diversos organismos nacionais e internacionais e escritos vários artigos sobre o microcrédito, sendo o último publicado nesse jornal, edição de 22 de abril de 2021, e do qual recupero algumas ideias-chave, para efeitos de elaboração do presente artigo. 

Fugindo de um mercado tradicional, o dos bancos clássicos e investidores no mercado de capitais, o microcrédito surge como o principal financiador na criação de micro e pequenos negócios e seu desenvolvimento, e quem assume o risco moral, cumprindo com a sua missão social: a promoção da inclusão financeira. De igual modo, sendo um instrumento de política económica, é um incentivo para injetar fôlego na economia local das diversas regiões e localidades, na medida em que dá acesso a recursos financeiros, criando novas oportunidades de desenvolvimento económico e social.

Ademais, quando a oferta é diversificada, o microcrédito pode ser utilizado, designadamente, para a aquisição de bens (máquinas, matérias primas) necessários à produção e ao desenvolvimento de empreendimentos, ao financiamento do fundo de maneio e à contratação de mão-de-obra qualificada. Juntamente com isso, surgem novas oportunidades e investimento no capital humano que, consequentemente, criam incentivos e novas oportunidades, alimentando a economia.

Nesse quadro, o microcrédito representa um elo importante para mitigar o fosso existente entre os pobres e o setor financeiro, promovendo a inclusão financeira e social. 

Todavia, evidências cuidadosamente recolhidas ao longo de muitos anos demonstram que a concessão de créditos, por si só, não basta para alimentar uma família inteira por toda a vida. Na verdade, uma série de testes sublinhou a importância do desenho do programa de microcrédito e, em muitos casos, confirmou que esses esquemas, simplesmente, não proporcionam bons resultados na erradicação da pobreza. Na maioria dos casos não aumentam os rendimentos médios de forma substancial e arriscam-se a sobrecarregar os mais pobres com dívidas adicionais.

Pelo que é absolutamente necessária uma correta política de microcréditos que não tenha subjacente os chamados “incentivos perversos” (“moral hazard”, no original em inglês), por um lado. Por outro, tal política terá que ser acompanhada de outras medidas, nomeadamente de capacitação, sobretudo tratando-se de um público-alvo com baixo níveis de escolaridade e de literacia financeira. O êxito dos programas de microcréditos no combate à pobreza dependerá, portanto, também da capacitação das pessoas nas técnicas e ferramentas básicas de gestão e na elevação dos seus níveis de literacia. 

Mesmo com essa abordagem integrada, o sucesso não é automaticamente garantido. Ora, não obstante relatos de sucesso, também se multiplicam as situações em que o microcrédito não potenciou a redução da pobreza dos seus beneficiários, como demonstram, por exemplo, estudos a propósito de programas de microcrédito com enfoque em agregados pobres de vários países (Índia, Bósnia Herzegovina, Etiópia, Marrocos, México e Mongólia), feitos pelos economistas do desenvolvimento Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer. 

Os referidos economistas fizeram também experiências no terreno para avaliar programas de microcrédito que já estavam implementados em larga escala, tendo as experiências demonstrado apenas pequenos efeitos positivos nos investimentos em pequenos negócios já existentes. Eles não encontraram efeitos significativos no consumo ou em outros indicadores de desenvolvimento, mesmo passados 18 ou 36 meses.

Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer foi o trio de economistas laureado com o Nobel da Economia de 2019 pela sua “abordagem experimental para aliviar a pobreza global, projetando estratégias com a utilização de uma metodologia semelhante à aplicada em testes clínicos”. 

Tal estratégia consiste em ir a pequenas comunidades, selecionar aleatoriamente um grupo para aplicar um projeto de política pública e avaliar depois como foram os resultados. Se positivos, implementar de uma forma mais ampla. Se negativo, tentar de novo. 

Essa metodologia, aplicada em países como Índia e Quénia, fez com que particularmente Esther Duflo derrubasse alguns “mitos” sobre os mais pobres, mostrando que dar um empréstimo para pessoas pobres iniciar um novo negócio não leva, necessariamente, a uma melhoria significativa no seu bem-estar.

“É claro que não estamos dizendo que não existem empreendedores genuínos entre os pobres, conhecemos muitas pessoas assim. Mas também há muitos deles que gerem um negócio condenado a permanecer pequeno e não lucrativo”, escreve Duflo no seu livro “A Economia dos Pobres” (Editora Zahar, 2021).

Para essa economista francesa, “a ideia de que todos os pobres são empreendedores é uma outra caricatura. Há algumas pessoas assim, mas não muitas”, acrescenta em entrevista dada à BBC News Brasil, em 02 de julho de 2024.

“Não creio que haja menos empreendedores entre os pobres do que entre os ricos. Só que não é uma qualidade muito frequente na mente humana ser amante do risco e ter um espírito empreendedor. Poucas pessoas são assim. Portanto, também é um mito pensar que todas as pessoas pobres são empreendedoras e tudo o que precisamos fazer é dar-lhes dinheiro e deixá-las se lançar no seu próprio projeto que elas vão descobrir.”

E explica porquê:

“Porque a maioria das pessoas quer viver uma vida tranquila. Elas gostariam de cuidar dos seus filhos, ganhar algum dinheiro, fazer algo útil na sociedade, mas sem necessariamente correr muitos riscos. As pessoas são muito avessas ao risco. Elas odeiam colocar a si mesmos ou a sua família em uma situação em que sentem que causaram um problema. É o que chamamos de viés do ‘status quo’. E todo o mundo é assim, pessoas pobres e pessoas ricas. As pessoas odeiam ter causado um problema. Então isso torna o ser humano médio extremamente conservador. Claro, há sempre algumas pessoas que nascem com cérebros diferentes e não têm isso. Algumas pessoas escalam montanhas sem cordas, mas a maioria das pessoas não. Da mesma forma, algumas pessoas são amantes do risco, mas a maioria, não.”

E o que pensaria Esther Duflo do Governo de Cabo Verde cuja retórica parece sugerir que é possível, com o “rendimento social de inclusão” e o “ecossistema de financiamento”, tornar, praticamente, todos os cabo-verdianos – pobres, não pobres e ricos – em empreendedores de sucesso? 

Praia, 01 de novembro de 2024

*Doutorado em Economia

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