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Desmontando os números “martelados” da pobreza em Cabo Verde

Por: João Serra*

A redução da pobreza protege a dignidade e os direitos das pessoas, promove a coesão social e a estabilidade política e é imprescindível para um desenvolvimento económico sustentável e justo. Por isso, na formulação de políticas públicas, os Governos, geralmente, atribuem-lhe especial prioridade. 

Porém, para que essas políticas sejam eficazes, é absolutamente necessário conhecer quem são os pobres, estabelecendo limiares claros, atualizados e contextualizados que permitam orientar e focalizar intervenções de combate à pobreza. Em Portugal, por exemplo, há um hiato temporal de apenas um ano entre o levantamento de dados e a publicação de informações sobre a situação da pobreza à luz de limiares atualizados. Assim, no dia 17 de outubro de 2025, foram divulgados, por ocasião do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, os resultados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento realizado pelo INE português em 2024, relativos aos rendimentos do ano anterior (2023).

Segundo os dados divulgados, a taxa de risco de pobreza em Portugal diminuiu 0,4 pontos percentuais em comparação com 2022, fixando-se em 16,6%. Em 2023, a taxa de risco de pobreza correspondia à proporção de habitantes com rendimentos monetários líquidos (por adulto equivalente) inferiores a 632 euros por mês (69.687$00/mês), valor correspondente a 60% da mediana do rendimento por adulto equivalente. Para efeitos de comparação, refira-se que, relativamente ao mesmo ano de 2023, o INE cabo-verdiano estimava como “linha de pobreza absoluta” o rendimento per capita mensal de 7.992$00 nas zonas urbanas e de 6.884$00 nas zonas rurais, valores esses 9 e 10 vezes, respetivamente, inferiores aos de Portugal.

Já em Cabo Verde, até à data de hoje (8 de novembro de 2025), ou seja, passados cerca de três anos após o início (em dezembro de 2022), o INE ainda não publicou o relatório dos resultados do IV Inquérito às Despesas e Receitas Familiares (IV IDRF), pelo que se desconhece, com rigor, quem eram os pobres em Cabo Verde e quantos havia em 2023. A razão invocada –pasme-se – terá sido a necessidade de “corrigir alguns problemas ocorridos na base de dados do IDRF, em resultado de subnotificação de alguns bens alimentares”, segundo afirmou o próprio presidente desta instituição em entrevista ao programa Ponto por Ponto da TCV, realizada no dia 10 de junho de 2025. 

Entretanto, os poucos dados parcelares do IV IDRF publicados, em agosto de 2023 e em outubro de 2024, dando conta de alguma redução da pobreza, são de todo inconsistentes, conforme escrevi em vários artigos de opinião após a sua divulgação. No essencial, e muito resumidamente, são estas duas ordens de razões que me levam a considerar tais dados pouco fiáveis, nos artigos publicados:

Primeira. Nos dados divulgados em agosto de 2023, as estimativas apresentadas foram determinadas com base nos limiares de pobreza do III IDRF, realizado em 2015. Segundo o INE, essa escolha teria sido motivada por recomendações técnicas do Banco Mundial (BM), que desaconselharam uma atualização do limiar antes do término da operação em curso. Ora, os valores referentes às linhas de pobreza de 2023 tinham, necessariamente, de ser atualizados relativamente a 2015, devido à inflação média anual acumulada (IMA) de 2015 a 2023, superior a 16%, mas sobretudo à IMA acumulada do índice referente aos produtos alimentares não transformados e às bebidas não alcoólicas, superior a 25%. Dito de forma simples: para que os dois limiares de pobreza sejam “comparáveis”, o limiar da pobreza de 2023 tem de refletir, pelo menos, a inflação acumulada de 2015 a 2023.

Segunda. Para a estimativa da pobreza extrema nos dados divulgados em outubro de 2024, o INE adotou, pela primeira vez, a linha internacional de pobreza de 2,15 dólares (PPC de 2017), o que levou a que a taxa de pobreza extrema caísse de 4,56% em 2015 para 2,28% em 2023. Contudo, esse limiar estava incorreto, pois, desde 2008 Cabo Verde era já um país de rendimento médio baixo, pelo que o limiar aplicável deveria ter sido 3,65 dólares, e não 2,15 dólares, que se destinava a países de baixo rendimento. Aliás, é o próprio presidente do INE que afirmou, na já referida entrevista ao programa Ponto por Ponto da TCV, que, “por recomendação do BM, esse valor será atualizado para 3,15 dólares”.

E se a situação da pobreza em Cabo Verde já era confusa, fruto de “martelamento” e “atamancamento” dos dados oficiais face à sua real dimensão, tornou-se ainda mais confusa a partir de meados de 2025.

Na verdade, com a reclassificação pelo BM de Cabo Verde para país de rendimento médio alto e a correspondente atualização da linha internacional de pobreza para 8,3 dólares (PPC de 2021), surge o seguinte quadro em termos de pobreza extrema, em coerência com a abordagem do INE de adotar a linha internacional de pobreza como limiar da pobreza extrema.

Considerando que, em termos de PPC, 1 dólar em 2021 equivalia a aproximadamente 47,23 escudos, segundo o FMI (via DataMapper), o limiar de pobreza extrema corresponderia a 392 escudos/dia (8,3 dólares × 47,23). Isto significa que todos os que o INE considerara em situação de pobreza absoluta em 2023 passaram a ser classificados como em situação de pobreza extrema: de cerca de 11.280 pessoas (2,28% de 510.000 residentes) para aproximadamente 126.225 pessoas (24,75% de 510.000 residentes). Além disso, todos aqueles com rendimentos mensais inferiores a 11.760 escudos (392 escudos × 30 dias) – pensões, reformas, rendimentos sociais – seriam considerados em pobreza extrema. Assim, muito facilmente poderemos chegar a 30% da população total a viver em extrema pobreza. E se 30% dos cabo-verdianos estarão em situação de pobreza extrema, uma percentagem muito maior da população estará a viver em situação de pobreza absoluta.

Deste modo, com a reclassificação de Cabo Verde para país de rendimento médio alto e a correspondente atualização da linha internacional de pobreza para 8,3 dólares/pessoa/dia, a ilusão da erradicação da pobreza extrema e da redução da pobreza absoluta, tão propalada pela Situação (Governo e MpD), desfaz-se perante a fria realidade das novas linhas de corte, expondo a fragilidade de um discurso que se baseia em meros números atamancados, sem considerar a complexidade das metodologias subjacentes. 

O INE, que tem estado muito mal na fotografia, deve fazer o seu trabalho com o rigor que se impõe. Se, em 1993, 2001 e 2015, Cabo Verde foi capaz de definir limiares de pobreza atualizados e ajustados às circunstâncias do país e em conformidade com padrões geralmente aceites, com maior razão, décadas depois tem de ser capaz de fazer o mesmo. Caso contrário – salvo as partes interessadas na manipulação – ninguém levará a sério os dados oficiais do INE convenientemente atamancados, o que só conduzirá ao total descrédito desta instituição, outrora muito prestigiada. De nada valerão os autoelogios do presidente do INE nem os elogios de circunstância da situação e dos parceiros internacionais, sem qualquer sustentação técnica.

Praia, 8 de novembro de 2025

*Doutorado em Economia/Blog: www.economianaserra.blogspot.com)

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