
Por: Américo Medina
O símbolo que ficou em terra
A taxa de carbono de 550$00 sobre bilhetes aéreos e marítimos foi inscrita no Orçamento do Estado de 2025 e anunciada com pompa e circunstância pelo Vice-Primeiro-Ministro e Ministro das Finanças, como sinal de compromisso com a transição verde. Um ano depois, porém, a lei não foi regulamentada e esfumou-se. O artigo 80 do OE-2025( Lei n.º 45/X/2024,de 31 de Dezembro) repousa na gaveta do Governo, como mais um símbolo de boas intenções sem execução, um gesto político sem base técnica e um sinal preocupante dessa distância intransponível entre discurso e implementação que caracteriza a governação destas duas últimas legislaturas.
Num país onde o transporte aéreo é infraestrutura vital para o acesso à saúde, educação, comércio e turismo — que representa mais de 25% do PIB — taxar a mobilidade essencial antes de consolidar a conectividade é, do ponto de vista técnico e socioeconómico, uma medida regressiva e contraproducente. Um dos riscos identificados, é transformar a sustentabilidade num exercício retórico, desconectado da realidade operacional e económica do país.
Entre o discurso e o vazio normativo
Apesar do discurso no Parlamento e das promessas de operacionalização imediata, a taxa de carbono não passou do papel. O Fundo do Ambiente existe formalmente e dispõe de enquadramento legal próprio que define as suas fontes de financiamento e objetivos ambientais. Contudo, o artigo 80 do OE-2025( Lei n.º 45/X/2024,de 31 de Dezembro) que previa a afetação das receitas da nova taxa de carbono ao Fundo, nunca foi regulamentado, o que inviabilizou a execução prática da medida. O país anunciou uma medida de vanguarda climática, mas mais uma vez, parou na pista(!)… sem plano de voo, sem tripulação e sem autorização da TWR.
A governamentalização da regulação e a exclusão da Agência da Aviação Civil (AAC) do processo decisório desde a fase inicial, contradizem as boas práticas recomendadas pela Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO). Segundo os documentos de referência da ICAO — Doc 9562 (Manual de Aspectos Económicos de Aeroportos) e Doc 9626 (Manual de Regulamentação do Transporte Aéreo) —, quaisquer taxas ambientais sobre a aviação civil devem ter base técnica comprovada, ser proporcionais, transparentes e definidas pela autoridade aeronáutica, não pelo poder político.
As LCCs e a necessidade de arrepiar caminho
Entretanto, Cabo Verde poderá estar no limiar de uma nova era de conectividade. As companhias low-cost passaram a operar em todos os aeroportos internacionais do país, introduzindo uma dinâmica inédita de competição tarifária. Essa eventual nova geografia de mobilidade em curso, exige um quadro regulatório previsível, competitivo e alinhado com os princípios da ICAO-CORSIA (Carbon Offsetting and Reduction Scheme for International Aviation) e não uma política fiscal improvisada, ou um modelo regulatório que não dá conforto aos diversos players já presentes no game bem como possíveis entrantes outros! Essa captura inoportuna por parte do governo das competências de regulação econômica que foram amputadas à AAC, não está em sintonia com os modelos recomendados na indústria.
A sustentabilidade do setor aéreo não se constrói com tributos isolados, medidas ad hoc, mas com abordagem programática, sistêmica e integrada, onde entram políticas de incentivo à eficiência energética, renovação de frota, compensações baseadas em métricas e integração com mecanismos regionais, dentre outros. É preciso arrepiar caminho e devolver à AAC o papel que lhe cabe, o de regular com base em dados, como mandam as regras e, as boas práticas internacionais, nunca em decretos ocasionais que quando conjugados, tendem a alterar artificialmente as condições normais de concorrência, preços, oferta ou procura, geralmente através de interferências do Estado.
Aplicar uma taxa isolada e dessa envergadura sem as devidas coordenações internas e regionais, pode anular o efeito positivo da chegada das referidas LCCs. Ora, todos sabemos que, em economias dependentes do turismo, cada euro acrescentado ao custo de um bilhete é um travão à conectividade e ao crescimento.
COP30 e o paradoxo da coerência climática
Na COP30-2025, em Belém do Pará, Cabo Verde voltou a posicionar-se como defensor da justiça climática global. O Ministro do Ambiente, Gilberto Silva, sublinhou que o país é responsável por apenas 0,0017% das emissões globais de CO₂ e pediu uma “aliança justa e solidária” entre países – Contudo, entre Belém e Praia, a distância é mais do que geográfica, é institucional, ao mesmo tempo que pedimos equidade internacional, deixamos por regulamentar a nossa própria política doméstica!
A experiência internacional está aí para nos mostrar que os compromissos multilaterais desta natureza não se traduzem automaticamente em políticas domésticas eficazes, sobretudo em economias pequenas e insulares. O risco é repetirmos o erro de muitas nações em desenvolvimento, que consiste em adotarmos instrumentos de “conformidade diplomática”, sem construirmos a base técnica e institucional que lhes dão sentido. Ora, Cabo Verde não pode continuar a cair na armadilha de copiar formas e comprometer-se com elas sem lhes dar o melhor conteúdo!
A coerência climática começa em casa e políticas climáticas credíveis exigem regulação sólida, métricas auditáveis e visão integrada — uma taxa verde sem regulamentação sabe a uma manobra fiscal travestida de sustentabilidade.
Comparação internacional e proporcionalidade
Mesmo sem ter sido implementada, a taxa proposta colocaria Cabo Verde entre os países que mais cobram por passageiro em proporção à sua capacidade económica. Veja-se a comparação no quadro seguinte:

Nenhum outro pequeno Estado insular aplica uma taxa tão elevada em proporção ao seu rendimento per capita. Mesmo os países de alta renda mantêm valores moderados, baseados em estudos técnicos e mecanismos de compensação, algo ainda inexistente no caso cabo-verdiano. Nunca é demais relembrar que as instâncias internacionais de supervisão e regulação recomendam a separação clara entre receitas fiscais e regulatórias, sob pena de se perder rastreabilidade e proporcionalidade. Analisando os dados em presença, tudo indica que estamos perante uma medida francamente desproporcional e socialmente regressiva!
Devolver o leme à autoridade aeronáutica
Cabo Verde tem legitimidade para exigir justiça climática global, mas perde coerência quando falha no desenho e na execução das suas próprias medidas(!) – O nosso desafio agora é transformarmos o gesto em medidas de política e o discurso em regulação efectiva, em que as taxas e encargos sobre a aviação civil devem ser estabelecidas pela autoridade aeronáutica, com base em critérios técnicos e de proporcionalidade.
Ainda vamos a tempo de arrepiar caminho e de transformar a “Taxa de Carbono” que nunca levantou voo, num verdadeiro instrumento de sustentabilidade, transparência e desenvolvimento equilibrado, pois que a mesma, tal como foi concebida, parece mais um instrumento fiscal do que uma ferramenta de sustentabilidade e um exemplo de má coerência entre política climática e política económica.
Nota: a relação (€ / 10.000 USD PIB) indica o peso relativo da taxa face ao rendimento per capita de cada país.
*Consultor em Aerospace



