
Por: Joaquim Arena
Três meses depois do desastre causado pela “Tempestade Erin”, que deixou na ilha de São Vicente, sobretudo na cidade de Mindelo, um rasto de nove mortes e desaparecidos, e grande destruição de casas, infraestruturas e meios de subsistência, a cidade parece recuperar rapidamente o seu antigo esplendor. A maior parte dos apoios financeiros anunciados (Banco de Cabo Verde, Banco Africano de Desenvolvimento, entre outros) chegam a conta-gotas às pessoas. Mas a cidade está limpa das marcas físicas da sua dor e destruição.
Estas vivem apenas na memória dos seus habitantes e algum receio ainda em alguns moradores em zonas de risco. Ainda se vêm aqui e ali sacos de areia junto de algumas portas, para protecção contra as cheias, tal como em épocas de bombardeamentos aéreos. Isto apesar da época das chuvas parecer já ter passado. A Praça Estrela está renovada e composta. Os artigos e mercadorias voltaram a estar expostos aos clientes e os vendedores retomam a sua actividade e a rotina de sempre, espreitando clientes locais e turistas de passagem.
E foram estes turistas europeus que praticamente lotaram o Boeing 737 – 8 Morabeza, da TACV, que partiu da Praia com seis horas de atraso, rumo a São Vicente. Outros passageiros foram obrigados a voar para a ilha do Porto Grande, mas via o Sal. Mas o destino de todos os turistas, que não procuravam sol e praia por estes dias em Cabo Verde, parecia ser mesmo São Vicente. E, claro, Santo Antão. Por estes dias, depois assolada há três meses pela tragédia, a cidade de Mindelo vive uma animação sem precedentes.
São vários os grupos de turistas que percorrem as suas ruas, enchem os seus restaurantes, suas esplanadas, percorrem a avenida marginal, procurando conhecer mais do Mindelo. A tristeza de há algumas semanas deu lugar a uma satisfação e tranquilidade espelhada no semblante dos mindelenses e alguns expatriados que escolheram a cidade para sua residência. É o caso de Clemmens, reformado suíço que arrendou um primeiro andar no bairro do Alto-Miramar e que todas as manhãs desce para uma imperial e uma boa prosa com outros expatriados europeus, na esplanada da Casa Café Mindelo. Chegou à cidade um mês antes da tragédia de 11 de Agosto.

Clemmens, o expatriado
Quando as chuvas chegaram em peso nesse dia, já Clemmens estava apaixonado pela cidade e os seus habitantes, como conta a um casal de turistas franceses. Quem hoje passeia pela cidade não faz ideia de como a chuva transformou a cidade, conta ele.
Clemmens fala francês, inglês, alemão e arranha um pouco de crioulo que mistura com o espanhol. Viveu e trabalhou muitos anos em Bamako, no Mali. Também conhece o Burkina Faso, o Níger, Mauritânea e o Senegal. Aprendeu um pouco de wolof, bambara e outras línguas da região. É por isso que quando chega, faz questão de saudar Sidi, o senegalês que vende máscaras e estatuetas africanas, do outro lado da rua, na Praça D. Luís, em wolof. Este tira um momento, aproxima-se, senta-se e fuma um cigarro com Clemmens.
Outros expatriados chegam e juntam-se à conversa. Clemmens, de brinco de ouro na orelha e apoiado numa bengala de castão prateado, assume-se como um guia turístico para os europeus de passagem. Sentado e de cigarro na mão, dá conselhos e indicações sobre São Vicente e Santo Antão, horários do ferry e como se deslocar pelos vales férteis. Diz-lhes que nem tudo na cidade é tão “bonitinho e arrumado” como estão a ver, ali no centro histórico. “Há muita pobreza por trás dos morros, nos bairros de lata.” Vai contando um pouco de si, também. Dali a pouco irá passar o seu senhorio, o dono da casa onde vive. “Um cabo-verdiano de muito respeito, antigo emigrante na Holanda, faz questão de não me faltar nada, vamos a um armazém para eu escolher um lavatório novo para a casa”, relata.
Sidi é um senegalês alto e magro como as estatuetas de madeira que vende. Veste um conjunto verde e tenta convencer um grupo de turistas portugueses do bom preço das máscaras e colares. Mas estas, dentro do restaurante, falam entre si do Mindelact e do espectáculo da noite anterior, no Auditório Jotamonte, Cabral Corpo, por três bailarinos do grupo Raiz di Polon. Uma performance centrada na figura de Amílcar Cabral e o seu papel nas lutas de libertação em África. Uma delas achou o espectáculo ‘enfadonho’ e ‘demasiado longo’, e outra ‘quase dormiu’… Este ano, dado que a tempestade do dia 11 de Agosto inutilizou o Centro Cultural do Mindelo, os espectáculos do Mindelact foram transferidos para o Jotamonte e o Centro Social da Ribeirinha.

Estórias pela Praça Nova, música na noite
Mas também para a contação de estórias, com grupos organizados, na Praça Nova. O pintor Tchalé Figueira e o antigo arquivista da RCV, Sequeira, foram dois dos contadores de estórias integrados neste projecto, que reuniram curiosos à sua volta. No cais, um gigantesco paquete anunciava a chegada de mais turistas de passagem pela cidade. Daí a necessidade de se organizar a animação necessária. Na zona histórica e central da cidade, fecharam-se ruas, trouxeram colunas de som, cadeiras e mesas. Dali a pouco, não havia restaurante, bar ou lanchonete, na zona, sem música ao vivo, incluindo um recital de música barroca frente ao bar Bambu Minino, de Tony Tavares. Igualmente, com a cantora Kyra ao vivo no bar Djan Djan, na Pracinha da Câmara.
Já na noite mais profunda, a rua paralela à Senador Vera Cruz transformou-se em baile popular, de conjunto, mesas e cadeiras, bar aberto e animação total, vários casais de turistas europeus, casais de mindelenses, tudo em profunda dança, tudo para fazer esquecer mágoas passadas. E num registo mais intimista, na rua do Palácio, centenas de metros mais acima, o bar Jazzy Bird oferecia a voz de Luís Firmino, dos Acácia Maior, numa viagem pela música tradicional de Santo Antão e numa evocação de Midge ma Tambor, do saudoso Kiki Lima. Um espectáculo com palco no passeio, com dezenas de pessoas do público sentadas em cadeiras e outras de pé transbordando para a estrada. Sobretudo turistas e expatriados, de copo na mão e sorriso na cara, o corpo em movimento.
Rapazes crioulos do engate tentando a sua sorte, laçando a cintura das europeias mais disponíveis. No dia seguinte, restaurantes e supermercados recebem mais grupos de turistas. Num destes, um aviso afixado, em português e inglês, pede aos clientes, “por respeito”, para não darem “dinheiro ou artigos aos rapazes de rua.” Junto à Praça Nho Roque, frente à Avenida Marginal, decorria a Grande Feira do Livro (de 4 a 8 de Novembro), onde a jornalista e escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho falou sobre Gaza e o problema dos palestinianos e de Israel, ao longo de mais de um século. E ali mesmo ao lado, no restaurante Nautilus, no antigo Clube Naval, davam-se os primeiros acordes de Garota de Ipanema, para os turistas que iriam lotar o espaço, aquele início de noite.
Por estes dias, Mindelo insiste em esquecer o estado de calamidade e os maus dias vividos, com música, estórias, teatro e literatura, em cada canto, em cada praça. A meio da noite, o grupo de turistas portuguesas, do Mindelact, subiam as escadas de madeira da Pensão-Restaurante Chave d’Ouro, convencidas pelo empregado em camisa alva e calças pretas, numa autêntica viagem no tempo, para irem conhecer o salão do restaurante, “os candeeiros, o longo corredor, o chão de soalho e pé direito alto”. Uma verdadeira relíquia, a marca de outros tempos, diz uma delas. “Foi num destes quartos que o antigo dirigente do PAIGC e primeiro ministro, Pedro Pires, viveu quando era estudante do Liceu Gil Eanes”, contou o empregado, enquanto as encaminhava. E foi também aí, saberá ele?, que o líder angolano Agostinho Neto e a mulher, Maria Eugénia, pernoitaram antes de seguir para o desterro em Santo Antão.



