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Prioridades públicas em tempos de escassez

Por: Sónia Almeida

Há momentos na vida colectiva de uma cidade em que as escolhas dos seus dirigentes deixam de ser meramente discutíveis para se tornarem moralmente censuráveis. Não por uma leitura ideológica particular, mas à luz de critérios elementares de responsabilidade pública, proporcionalidade e prioridade social, amplamente reconhecidos na reflexão ética e na teoria democrática. 

São momentos em que a política abdica da sua vocação de serviço público e se converte num exercício cru de distração e cálculo. O anúncio, pelo Presidente da Câmara Municipal de São Vicente, de uma festança de cinco dias, num contexto de profunda dificuldade social e económica após a tempestade Erin, é um desses momentos.

É evidente, não por exagero retórico, mas pela simples observação dos factos. 

São Vicente vive hoje marcada pela escassez, pela fragilidade das infraestruturas, por famílias a tentar recompor-se após mais um choque climático e por uma juventude à deriva, sem horizonte claro. Neste cenário, optar por organizar uma cacofonia festiva de vários dias não é apenas um erro de prioridades: é um insulto à inteligência e à dignidade da população.

Do ponto de vista filosófico, esta decisão revela uma concepção utilitarista e cínica do poder, em que os fins políticos imediatos se sobrepõem a princípios universais como a dignidade humana, a justiça distributiva e a responsabilidade intergeracional. Em vez de colocar o bem comum e o cuidado com os mais vulneráveis no centro da acção política, escolhe-se o entretenimento como anestesia social — uma espécie de ópio moderno destinado a fazer esquecer a barriga vazia, os pés descalços e a ausência de perspectivas, reflectidas no vazio baço dos olhares.

Mas esse olhar não traduz leveza nem alegria. Ao contrário, é dor. Dor recalcada para não doer, mas que permanece inteira na alma, refletindo-se num olhar que causa dó e dor. 

Em A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera lembra-nos que a leveza, quando desprovida de sentido, não é graça, mas condenação. A dor que não encontra peso transforma-se em sombra: não se expressa, mas fixa-se no olhar. Não é ausência de sofrimento, mas sofrimento sem lugar. 

Talvez seja isso que vemos hoje: não esperança perdida, mas uma dor que aprendeu a calar-se para continuar a existir. A festa surge, assim, não como celebração comunitária, mas como mecanismo de evasão, um simulacro de leveza imposto a uma realidade que exige, desesperadamente, peso, sentido e responsabilidade.

Há aqui uma confusão deliberada — ou, no mínimo, convenientemente cultivada — entre espírito natalício e pândega desabrida. Importa sublinhar que a crítica não se dirige à cultura ou à celebração em si, mas à sua instrumentalização num contexto de carência extrema. O verdadeiro espírito natalício assenta no recolhimento, na sobriedade, na centralidade da família e da solidariedade concreta. Não é o ruído que define o Natal, mas o cuidado; não é o excesso, mas o gesto; não é o espetáculo, mas a presença. Reduzir este momento a um deboche ordinário empobrece o seu significado e banaliza valores fundamentais, sobretudo quando promovido por quem tem um dever acrescido de exemplo.

Se Sócrates observasse este tipo de conduta governativa, dificilmente se deteria na festa em si. Interrogaria, antes, a alma de quem governa. Para o filósofo, governar era um exercício moral antes de ser técnico, e o poder, quando desligado da virtude, conduzia inevitavelmente à corrupção da cidade. 

Sócrates advertia que a pior injustiça não é sofrer o mal, mas praticá-lo; e que nenhum governante pode alegar ignorância quando escolhe deliberadamente agradar em vez de agir com justiça. 

A política que se limita a seduzir o povo, em vez de o educar e proteger, não é política, mas demagogia. E a demagogia conduz, inexoravelmente, à decadência da pólis.

Não menos grave é o silêncio político do Governo central, aqui entendido num sentido crítico e metafórico. Ao não intervir, apesar de dispor de meios políticos e simbólicos para orientar prioridades e afirmar padrões mínimos de decoro institucional, contribui para a consolidação de uma narrativa de São Vicente como ilha da festa permanente, da leveza irresponsável, da irrelevância estrutural. Uma narrativa funcional para justificar desinvestimento crónico e ausência de políticas públicas sérias. Quando se pinta uma sociedade como frívola, torna-se mais fácil negar-lhe direitos e futuro.

A proximidade das eleições torna esta iniciativa tudo menos inocente. Não por imputação de ilegalidades, mas porque a história política demonstra como eventos festivos são frequentemente usados como instrumentos de mobilização emocional em contextos de fragilidade social. 

A festança pode ser legitimamente lida como tentativa de capitalizar a vulnerabilidade de uma parte substancial da população, oferecendo distração em vez de soluções, música em vez de políticas de emprego e euforia passageira em vez de esperança sustentável. É a política reduzida a espetáculo.

Num contexto em que jovens sem perspectivas se refugiam na droga e noutras distracções autodestrutivas — fenómeno amplamente debatido na sociedade são-vicentense — esta escolha é particularmente irresponsável. 

Em vez de investir em educação, formação e criação de oportunidades, reforça-se a lógica da fuga e do imediato. O poder público, que deveria ser força orientadora, transforma-se em promotor da alienação.

No fim, resta uma constatação amarga: cada um dá o que tem. Quando o poder público oferece ruído em vez de soluções e espetáculo em vez de estratégia, a crítica deixa de ser ataque pessoal para se tornar dever cívico. O vazio embrulhado em luzes e decibéis proibitivos, diz menos sobre o povo de São Vicente do que sobre a pobreza moral e política de quem o governa. 

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