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Inteligência Artificial: a nova face do assédio laboral

   Por: Flora Lopes

  A Inteligência Artificial (IA), outrora associada ao imaginário da ficção científica, tornou‑se hoje um dos pilares da vida contemporânea. Longe de ser uma moda passageira, a sua presença já se faz sentir em praticamente todos os domínios da sociedade, com impacto profundo no mercado de trabalho.

    Segundo Nuno Namora, apoiando‑se no relatório Job Creation and Local Economic Development 2024 da OCDE, cerca de 20% das tarefas actualmente desempenhadas pelos trabalhadores podem ser realizadas até 50% mais rapidamente com recurso a sistemas de IA generativa. Para o autor, este dado confirma aquilo que muitos especialistas já antecipavam: a Inteligência Artificial veio para ficar e continuará a expandir‑se.

      A exposição dos trabalhadores a estas tecnologias tende a aumentar, sobretudo em funções qualificadas de natureza intelectual. A IA tornou‑se um vector transversal de transformação, com influência em áreas tão diversas como a saúde, a educação ou o entretenimento.         

     No mundo laboral, não se limita a substituir tarefas tradicionalmente humanas: redefine critérios de produtividade e eficiência, impondo novas exigências sobre quem trabalha.

      Um exemplo claro é o sector dos recursos humanos. O recrutamento de candidatos é cada vez mais mediado por algoritmos, que analisam e filtram currículos de forma automática. Este processo, embora eficiente, levanta questões sobre transparência, imparcialidade e o risco de desumanização das relações de trabalho.

Vigilância sem descanso

    Softwares de monitorização registam cada clique, cada pausa e até o tom de voz em reuniões virtuais. A lógica é simples: medir desempenho em tempo real. O efeito, porém, é devastador.

    “É como se estivéssemos permanentemente sob avaliação, mesmo quando não há ninguém a observar”, descreve um trabalhador do sector dos serviços.

      Esta reflexão esteve em debate no 3.º Congresso Internacional do Trabalho 2030, realizado a 11 e 12 de Setembro de 2025, na Alfândega do Porto, onde especialistas discutiram os impactos da inteligência artificial e da vigilância algorítmica na saúde mental e nas relações laborais. 

Bots que falam sem ouvir

      Outra face desta realidade são os sistemas automáticos de comunicação. Mensagens padronizadas de cobrança de metas ou advertências chegam sem contexto, sem empatia e sem espaço para diálogo.

    “Recebo alertas de desempenho a qualquer hora do dia. Não há compreensão, apenas números”, conta uma operadora de apoio ao cliente.

    Este tipo de interacção desumanizada cria ambientes hostis, onde o trabalhador se sente isolado e reduzido a estatísticas. Psicólogos organizacionais alertam que o impacto emocional pode ser tão grave quanto o assédio tradicional.

A lei que ainda não acompanha

    A legislação laboral foi criada para regular relações humanas. Mas como enquadrar o assédio praticado por algoritmos? Quem é responsável: o programador, a empresa ou o sistema?

      Juristas defendem que é urgente repensar conceitos legais e criar normas específicas para lidar com estas novas formas de opressão. Sem enquadramento jurídico, os trabalhadores ficam desprotegidos perante práticas que, embora invisíveis, têm consequências reais.

Ética e responsabilidade

    Mais do que leis, há uma questão ética. Empresas que utilizam IA para monitorizar ou avaliar trabalhadores precisam de assumir responsabilidade. A tecnologia não pode ser usada como ferramenta de opressão.

   Especialistas defendem que a transparência algorítmica deve ser obrigatória: os trabalhadores têm direito a saber quais os critérios usados para medir o seu desempenho. Além disso, a supervisão humana deve estar sempre presente, para evitar que decisões automáticas se transformem em injustiças.

Caminhos para proteger o trabalhador

   Transparência: tornar visíveis as métricas e regras usadas pela IA.

    Supervisão humana: garantir que algoritmos não decidem sozinhos sobre desempenho ou penalizações.     Formação: capacitar trabalhadores para reconhecer e denunciar novas formas de assédio.

  Políticas públicas: adaptar a lei laboral à era digital, criando mecanismos de protecção específicos.

O futuro em debate

     O tema da Inteligência Artificial e do assédio laboral não é apenas tecnológico, é social. Está em causa a dignidade humana no trabalho. Se a inovação não for acompanhada por responsabilidade, corre‑se o risco de transformar o local de trabalho num espaço de vigilância permanente.

     “O futuro do trabalho não depende apenas dos algoritmos, mas da nossa capacidade de colocar a dignidade humana no centro da tecnologia”, resume um sociólogo.

O impacto social e cultural da inteligência artificial no trabalho

     A introdução da Inteligência Artificial no mundo laboral não se limita a questões técnicas ou jurídicas. Há um impacto profundo na forma como os trabalhadores percebem o seu papel e na cultura organizacional das empresas.

    O trabalho, tradicionalmente entendido como espaço de interação humana, está a ser progressivamente mediado por sistemas digitais.  

   Esta transformação altera não apenas a relação entre empregador e empregado, mas também a identidade profissional de cada indivíduo. 

  Muitos trabalhadores relatam sentimentos de despersonalização, como se fossem reduzidos a métricas e algoritmos, perdendo o reconhecimento pelo esforço humano.

      Além disso, a cultura empresarial enfrenta novos dilemas. A busca incessante por eficiência, impulsionada pela IA, pode levar a ambientes de trabalho mais competitivos e menos colaborativos. O risco é que a tecnologia, em vez de libertar tempo e energia para tarefas criativas, acabe por intensificar a pressão e o controlo sobre os trabalhadores.

      A tecnologia deve servir as pessoas, e não o contrário. “Se a Inteligência Artificial se tornar apenas um instrumento de vigilância, estaremos a comprometer valores fundamentais da vida laboral”, alerta um especialista em sociologia do trabalho.

O papel do Estado e das empresas

      A resposta a estes desafios exige uma acção conjunta. O Estado tem a responsabilidade de legislar, fiscalizar e criar mecanismos que assegurem a protecção dos trabalhadores. Cabe‑lhe definir regras claras sobre a utilização da IA e impor sanções quando esta é usada de forma abusiva.

      As empresas, por sua vez, têm o dever de cumprir essas normas e de adoptar práticas éticas na gestão dos seus recursos humanos. A responsabilidade empresarial não se limita à obediência à lei: implica também criar uma cultura organizacional que valorize a dignidade humana e utilize a tecnologia como ferramenta de apoio, e não de vigilância ou assédio.

Conclusão

    A Inteligência Artificial é inevitável e já molda o presente do trabalho. Mas o futuro dependerá das escolhas que fizermos hoje. O desafio é garantir que os algoritmos não se transformem em instrumentos de opressão, mas em ferramentas que potenciem o talento humano.

    O debate sobre assédio laboral mediado por IA é, na verdade, um debate sobre valores: queremos um mundo do trabalho centrado em métricas ou em pessoas? A resposta a esta pergunta definirá não apenas o futuro das empresas, mas também o rumo da sociedade.

      A IA pode ser uma aliada poderosa da produtividade, mas também pode tornar‑se um instrumento de assédio. O desafio contemporâneo é equilibrar inovação com respeito .

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