PUB

Convidados

DI POVU PA POVU: mobilizar sem organizar? as repetições e os impasses da ação popular em Cabo Verde

Por: Alexssandro Robalo

Apolo de Carvalho

Perante um membro do partido, o povo cala-se, torna-se «carneiro» e manifesta alguns elogios ao governo e ao dirigente. Mas na rua, pela noite, no sossego da aldeia, no café ou junto do rio, deve ouvir-se essa amarga decepção do povo, essa desesperança, mas também essa raiva contida. (Fanon, 1961:189)

DI POVU PA POVU LISBOA

Em setembro deste ano decorreu em Lisboa a 2ª Grandi Marxa Cabral, sob o mote “Di Povu Pa Povu: Libertação, Dignidade, Soberania Popular”. Organizada pela Konferénsia Panafrikanu di Lisboa, a Marxa levou as celebrações do cinquentenário das independências à principal rua da antiga metrópole colonial, respondendo ao compromisso assumido por altura do centenário de nascimento de Amílcar  Cabral de, em cada setembro, fazer daquela avenida de nome Liberdade, uma grande tribuna das lutas panafricanas.

Autónoma,  a iniciativa se inspira nas Marxas Cabral realizadas em Cabo Verde desde 2010, sendo um dos espaços mais consistentes de mobilização popular no arquipélago. Em Lisboa, a Marxa foi assumida pela organização como uma nova tradição crítica radical negra, um espaço de afirmação política e de panafricanização da luta antirracista.

O mote “Di Povu Pa Povu: Libertação, Dignidade, Soberania Popular” foi pensado duplamente como resposta e proposta.  Por um lado, confronta a continuidade dos projetos capitalistas e coloniais, produtores de desigualdade no Sul Global e, por outro, afirma a urgência de recuperar a capacidade coletiva de “fazer povo”, isto é, de construir um projeto de sociedade  que leve em conta as necessidades reais e a possa transformar. Alinhado com o pensamento político de Cabral, este princípio relembra as razões fundamentais da luta de libertação: “retomar o caminho ascendente da cultura e recuperar o protagonismo sobre a própria história”, condições indispensáveis para fortalecer as bases populares e  ampliar a sua capacidade de autodeterminação.

“Di Povu Pa Povu” é, então, sobretudo uma afirmação de que tudo o que é do povo pertence ao povo, ao mesmo tempo que convoca a memória de momentos de solidariedade e unidade entre povos do Sul Global marcados por experiências comuns de resistência. Foi essa solidariedade combativa que ajudou a abrir os caminhos para a libertação. Há momentos na história em que os povos precisam mudar de interlocutor, olhar para si e entre si, reconhecer-se enquanto corpo pensante e agente. Quando olhamos para a Palestina, o Sudão e o Congo, entendemos melhor o quanto a solidariedade internacional entre os povos continua indispensável.

No longo percurso da Tradição Radical Negra, da mesma forma que a solidariedade, os conceitos de Libertação, Dignidade e Soberania Popular têm sido constantes em todas as lutas contra as estruturas de poder colonial e capitalista. Desde os quilombos à revolução ayitiana, passando pelos movimentos de libertação, até às mobilizações contemporâneas no continente, transportando concepções de mundo que recusam a dominação e a opressão. Lembramos aqui as manifestações na Nigéria contra a violência policial; a longa resistência da Abahlali baseMjondolo na África do Sul pelo direito à terra e habitação; a rutura contra o imperialismo francês no Sahel protagonizado por países como o Burkina Faso; e mais recentemente, as revoltas populares em Madagascar e no Marrocos contra a degradação dos serviços públicos essenciais, como saúde, água e energia. O que conecta essas mobilizações populares, nas quais se insere o espírito das  Marxas Cabral, não é tanto o diagnóstico do colapso do neoliberalismo global, mas sobretudo a convicção de que é cada vez mais urgente o despertar da consciência popular.

DI POVO PA POVO CABO VERDE

Se é verdade que as lutas não são produtos de importação, o diálogo com iniciativas populares que emergem em diferentes contextos é fundamental para uma reflexão crítica e propositiva sobre o emergente movimento Di Povo Pa Povo em Cabo Verde. Assim como as pessoas, também as palavras, os conceitos e as formulações viajam, ressurgindo noutros lugares com sentidos que nem sempre coincidem com o contexto que lhes deu origem. Essa mobilidade revela o quanto são fictícias as fronteiras e a importância da contextualização das palavras para melhor compreendermos o sentido político que lhes é dado. É nesta circulação que, por coincidência ou confluência, o mote da segunda Marxa Cabral em Portugal, “Di Povu Pa Povu”, reaparece em Cabo Verde, inicialmente como nome de uma página no Instagram, associada a um vídeo de convocação para um protesto que se quis nacional. Nesse vídeo, o promotor da iniciativa, Alberto Koenig, apelava a uma “união histórica”, sobretudo dos jovens, para assumir responsabilidades e sair à rua como povo, independentemente de classes ou cores partidárias.

O seu discurso expressava indignação face à degradação das condições básicas de vida, mormente no acesso à água, luz, transportes, saúde, etc. Ao mesmo tempo, insistia que o protesto não era contra nenhum partido, posição que foi reforçada no manifesto do movimento, um documento de cariz reformista. A iniciativa apresentava-se, então, como uma ação cívica de descontentamento generalizado, orientada unicamente para a melhoria das condições básicas de vida.“Estamos a pedir o mínimo”, afirmava Koenig numa  entrevista à Inforpress.

Importa sublinhar que tudo isto ocorreu no rescaldo de outra manifestação convocada semanas antes contra os cortes sistemáticos de luz na cidade da Praia, mas também num contexto global em que, em várias cidades do Sul Global, a chamada geração Z tem protagonizado grandes mobilizações, levando inclusivamente à queda de governos, como no caso do Nepal, onde o processo culminou na eleição de uma nova liderança. Na supracitada entrevista à Inforpress, Koenig advertia que, se o povo não agisse agora, “Cabo Verde poderia enfrentar tensões semelhantes às registadas no Nepal, em Madagáscar, em Timor ou em França, onde os protestos atingiram níveis de rutura e violência”. O principal rosto da iniciativa di Povo pa povo  em Cabo Verde congratulava-se ainda com o facto do país não ter chegado a esse ponto de ruptura e avisava que era preciso agir para que tal não acontecesse.

No seu discurso, identificamos um dos pontos mais delicados do posicionamento do movimento, uma fragilidade política-ideológica que o dilui e descredibiliza. Não apenas pela ausência de qualquer gesto de solidariedade com estes levantes da juventude do Sul Global, mas sobretudo pela leitura equivocada das dinâmicas de violência. Nos países mencionados,  não foi o povo que provocou tensões ou violência; foi justamente quando o povo, cansado, decidiu agir que o Estado respondeu com  repressão. A violência veio sempre do braço armado do Estado. As manifestações populares não existem para criar conforto ao poder, mas para confrontá-lo. O seu papel sempre foi o de expor a incapacidade das elites em garantir condições básicas de vida, assim como os abusos e desigualdades que sustentam a sua autoridade. E o poder tem nomes! As manifestações servem precisamente para nomear esses responsáveis, interpelá-los diretamente e pedir contas.

Ao afirmar que “a mobilização não é política. Não é contra partidos, nem a favor de nenhum”, o movimento Di Povo Pa Povo produz um paradoxo: ao mesmo tempo que convoca o povo a agir, deslegitima-o enquanto sujeito político, esvaziando a própria  política enquanto campo de disputa pelas condições de vida. Num país onde a lógica partidária funciona como “fenómeno sociopolítico total”, essa posição pode ser lida não apenas como ingenuidade, mas também como uma estratégia de distanciamento, tendo em conta as proximidades afetivas e familiares de alguns dos seus protagonistas com figuras que ocuparam cargos relevantes no aparelho de Estado.  Contudo, a recusa de nomear os responsáveis pela precariedade social, reduz a revolta a um simples  descontentamento, sem capacidade de confrontar o poder. Em suma, a pretensa neutralidade do movimento acaba por neutralizar o próprio poder popular.

Nesta linha, o pensamento político de Amílcar Cabral e o sentido que atribuía ao “povo-classe”,  enquanto entidade que luta por transformações radicais das estruturas que impactam a sua vida, e não por meras reformas, é de absoluta relevância. Para Cabral, se era necessário compreender bem o que é o povo, o problema fundamental era saber contra quem o povo estava a lutar.

“O nosso povo está, a lutar contra a classe colonialista capitalista portuguesa e, lutando contra ela, está a lutar necessariamente contra o imperialismo (…) nessa base a nossa luta não pode ser só contra estrangeiros, tem que ser também contra alguma gente dentro da nossa terra. O nosso povo tem que lutar ao mesmo tempo contra os seus inimigos de dentro. Quem? Toda aquela camada social da nossa terra, ou classes da nossa terra, que não querem o progresso do nosso povo, mas querem só o seu progresso, das suas família (…) e que fazem qualquer coisa que possa prejudicar a marcha do nosso povo para a conquista completa da sua dignidade, da sua liberdade e do seu progresso.”

Nem o povo nem a consciência são dados adquiridos ou categorias fixas, mas produtos da história. É nesse sentido que Cabral distingue o povo de população, o primeiro como uma força política consciente, capaz de intervir e produzir transformações e a segunda, um dado demográfico. Qualquer transformação radical exige que a população se constitua enquanto povo. Como operar essa transição é talvez uma das questões políticas mais urgentes que temos hoje para responder.

Apesar de os índices internacionais posicionarem Cabo Verde em lugares de destaque no que diz respeito à qualidade da democracia, internamente observa-se uma letargia generalizada que impede a ativação plena da dita sociedade civil. A super partidarização da vida pública tem sido apontada como causa central dessa inércia. Podemos dizer que, é, de certo modo, na arena partidária que o mito da homogeneidade nacional se desfaz, revelando a existência de um tribalismo interno onde tudo o que entra na esfera pública é imediatamente apropriado pelos partidos, generalizando a desconfiança, autocensura e desinteresse pelas questões políticas. Os partidos monopolizaram de tal forma a política que, ambos, partido e política, passaram a ser percebidos quase como sinónimos.

A recusa do movimento Di Povo Pa Povo em dizer “contra quem” protesta, ou em assumir a política como campo legítimo de disputa, é sintomática desse ecossistema público tribalizado, onde falar politicamente equivale, quase sempre, a ser sequestrado pela lógica partidária. No entanto, ao evitar identificar as estruturas de poder que produzem a precariedade que denunciam, o movimento acaba por reforçar o mesmo ambiente de medo e fragmentação do qual supostamente busca escapar.

Em Cabo Verde, muitas vezes, na tentativa de se desvincularem de uma esfera pública altamente tribalizada e saturada pelo partidarismo, certos movimentos acabam por adotar,  discursiva e simbolicamente, um pacifismo despolitizado que é, no fundo, reflexo de uma condição social onde o medo é silenciosamente partilhado. A recomendação de vestir branco para participar na manifestação e a recusa de nomear responsáveis concretos fazem parte dessa mesma lógica que apela à uma caricatural pax crioula, que, não confrontando o poder, perde-se num redemoinho de repetições que enfraquecem toda e qualquer nova iniciativa popular.

Recusando qualquer tipo de moralismo sobre organizadores ou participantes e evitando simplificações de cunho demagógico, é inegável que existe uma elitização persistente do campo da mobilização social em Cabo Verde. Por outro lado, os movimentos emergentes revelam grande vitalidade no espaço digital, mas continuam a ter dificuldades em comunicar com o povo real, isto é, com as camadas populares fora das redes sociais. O resultado são iniciativas que, apesar da intenção popular, têm quase sempre fraca adesão. É certo que a adesão, por si só, não é um critério absoluto para medir a qualidade ou a legitimidade de um movimento. No entanto, numa era em que as plataformas digitais ocupam um lugar cada vez mais central na vida social e política, a incapacidade de converter “visualizações” online em mobilização e organização,  é um sinal claro das fragilidades que atravessam hoje a ação coletiva.

A dificuldade em construir movimentos de massa em Cabo Verde não é recente. A experiência da MAC#114 é o exemplo mais ilustrativo da forma como mobilizações com significativo potencial de transformação social, tendem a ser rapidamente cooptadas por dinâmicas partidárias, resultando na sua fragmentação e consequente descredibilização.

O QUE FALTA PARA QUE O “BARRIL DE PÓLVORA” EXPLODA?

Em 2015, após a aprovação do Estatuto dos Titulares de Cargos Políticos pela Assembleia Nacional, assistiu-se a uma das mais expressivas mobilizações populares desde a independência. Num contexto marcado pelo desgaste do partido no poder e por uma crescente descrença nos partidos políticos, o Estatuto serviu como catalisador de uma indignação generalizada resultando numa ampla mobilização popular, que levou milhares de pessoas às ruas, em várias ilhas e cidades do país. É incontornável reconhecer o papel unificador assumido pela MAC#114, um movimento  recém-criado, que conseguiu articular e massificar o descontentamento popular pre-existente,  através de dois atos públicos inaugurais, culminando na manifestação de 30 de março daquele ano, com forte expressão na cidade da Praia.

Importa salientar que a manifestação teve outros bastidores para além dos atos públicos de janeiro. Nas vésperas da discussão e aprovação do Estatuto, realizou-se uma edição do Djumbai Libertáriu, espaço de diálogo crítico e radical levado a cabo por um coletivo multidisciplinar e politicamente incorreto, entre os quais um dos autores destas linhas, sendo  Rony Moreira o orador convidado. O então identificado como representante  da MAC#114 apresentou algumas linhas do seu pensamento crítico em relação à situação do país, em particular a sua preocupação com aquilo que representava a aprovação do já referido Estatuto.

O resultado desta mobilização popular é de inegável relevância histórica. Só na Praia, estima-se que cerca de cinco mil pessoas tenham saído à rua, posicionando-se  à frente  da Assembleia Nacional, para expressar indignação contra o Estatuto e a governação do país. Em outros pontos do país, protestos articulados pela MAC#114 reforçaram essa contestação.

Não obstante, o período pós-manifestação  mostrou as fragilidades da mobilização.  A dificuldade em converter a MAC#114 numa estrutura nacional, organizada , politicamente  consequente, foi o primeiro sintoma da fragilidade da nossa sociedade civil.

O movimento não conseguiu articular-se com organizações  já existentes nem criar espaços  deveras populares, democráticos e orgânicos, capazes de catapultar a mobilização de 30 março a um patamar que pudesse, no futuro, fazer tremer a estrutura do poder estabelecido. Esta dificuldade em fazer corpo com coletivos já existentes, com trabalho de terreno, é talvez uma das principais lacunas do movimento Di Povu Pa Povu. Ao recentrar-se na sua identidade recém-criada, incentivando e privilegiando envolvimentos atomizados, baseados na circulação digital e em iniciativas individuais, antecipava já o facto de que, nem toda a visibilidade, por mais massiva que seja,  se traduz necessariamente  em ação coletiva efetiva e correspondente. A este propósito é curioso notar que, talvez pelo facto do promotor da iniciativa ser um conhecido artista, esta terá sido das manifestações com mais aderência virtual de artistas renomados e que costumam encher grandes palcos  nacionais e internacionais. Ficou, contudo, evidente que nem sempre o circuito de visibilização ecoa o poder das ruas. Parafraseando Kwam Toure, “visibility is not power”.

A “morte” súbita  da MAC#114 deu-se quando a sua liderança admitiu a possibilidade de transformar o movimento num partido político. Num contexto de forte rejeição aos partidos, essa opção foi amplamente percepcionada como uma traição à confiança popular, esvaziando o capital político acumulado. Pode-se, com justeza, afirmar que foi um “suicídio” do movimento..

Ironicamente, o mesmo “líder” que convocou as manifestações veio assumir, com assiduidade, o papel de defensor das políticas levadas a cabo pelo partido que assumiu o poder após as eleições realizadas um ano depois daquela histórica manifestação. Na esfera cibernética, o jovem “líder” passou a desempenhar um papel ativo na legitimação do partido da situação, uma contradição com tudo  o que pregava durante a sua “militância” na MAC#114.

O percurso da MAC#114 é paradigmático para pensar o lugar efetivo da sociedade civil num país que se pretende  democrático. Longe de ser um caso isolado, insere-se numa longa repetição de mobilizações que não se consolidam. Dar conta dessa questão exige uma leitura mais crítica das principais manifestações públicas ocorridas em Cabo Verde na última década.

Apesar de sucessivas tentativas de ocupar a rua como espaço de participação democrática e cidadã, prevalece uma cultura de medo,  subserviência e retração que impede a passagem da indignação privada à ação coletiva organizada. Muito provavelmente as mobilizações mais bem conseguidas, desde MAC#114, foi aquela designada de Stadu di Nason (2022) e a dos professores (2023). A primeira constituiu uma recusa explícita dos diagnósticos partidários sobre o “Estado da Nação”, afirmando uma leitura popular e a partir de baixo sobre a governação. A mobilização dos professores, por sua vez, colocou no centro do debate público as condições de trabalho e as políticas educativas nacionais muito particularmente no que concerne às condições salariais. No entanto, em ambos os casos, a capacidade de manter a mobilização mostrou-se limitada, com uma quebra progressiva de adesão e crescente apatia social. Nem sempre as fragilidades dos movimentos sociais decorrem exclusivamente de limitações internas. Muitas vezes, estes tornam-se alvos de estratégias deliberadas de infiltração, cooptação e sabotagem. Em boa verdade, as iniciativas populares têm sido convertidas num verdadeiro mercado de exploração política, onde forças partidárias atuam de forma calculada, apropriando-se das lutas acabando por desarticula-las internamente e comprometer o seu potencial transformador.

Todos estes  exemplos servem-nos para refletir sobre os rumos da nossa sociedade civil. É necessário questionar o seu potencial na perspetiva de consolidar a democracia além da lógica liberal de representação. Na esteira do cientista político Suzano Costa, é tempo de indagar seriamente se essa sociedade civil não tem sido, na prática, uma sociedade servil ao dispor  dos verdadeiros “donos de poder” em Cabo Verde.

Cabral lembrava-nos que a nossa luta não era apenas contra os colonialistas mas também contra  os agentes do colonialismo. Cinquenta anos após as independências, é cada vez mais evidente que é no campo interno que se tem de travar a luta pela soberania popular. Na linha de Fanon, há que despertar a consciência nacional, povoá-la de ideias fecundantes capazes de transubstanciar a população num povo, que “pensa para melhor agir e age para pensar melhor”.

DA MOBILIZAÇÃO À ORGANIZAÇÃO: A URGÊNCIA DE UMA TRANSUBSTANCIAÇÃO 

Um dos grandes paradoxos da sociedade cabo-verdiana é a sua aparente letargia , que mostra um défice de consciência política,  quando confrontada com uma história marcada pela contestação. Desde a invenção da língua cabo-verdiana, enquanto dispositivo de afirmação da nossa humanidade e forma antecipada de soberania popular, às revoltas do século XIX, mesmo no contexto das terríveis fomes coloniais, a história do arquipélago foi forjada na recusa da dominação. É dessa longa tradição radical que emerge a geração da independência. Quando olhamos para o cenário sociopolítico atual, perguntamo-nos, com confessa desilusão: onde terá ficado toda essa tradição de resistência?

Se entre as estratégias dos movimentos MAC#114  e Di Povo Pa Povo há uma repetição evidente de pressupostos, essas repetições, para além de fragilizarem os próprios movimentos sociais, tendem a aprofundar a descrença na sua capacidade de produzir mudança concreta Torna-se, por isso, necessária uma outra forma de repetição crítica: não a reprodução dos mesmos erros, mas a reinscrição consequente dos movimentos sociais na longa tradição radical do arquipélago, capaz de produzir rupturas criativas.  Em suma, trata-se de construir um país habitado por pessoas conscientes da sua capacidade de autogovernação.

Voltar a fazer povo, neste sentido, implica reinventar a sociedade civil a partir da reconstrução de afetos, da confiança coletiva e da despartidarização da política. Fruto da colonização, instalou-se em Cabo  Verde uma naturalização da censura quando alguém tenta tecer alguma crítica sobre os rumos do país. Expressões como  “N ka gosta di pulítika”; “Bu sta da só pa pulítiku”; “Abó é mutu pulítiku”; “Ka bu papia di pulítika ku mi”, entre outros fazem parte de um fascismo linguístico que busca a todo o momento privar o exercício da cidadania, empobrecendo e degradando o próprio debate público onde apenas alguns são autorizados a tomar a palavra.  Pensamos que é urgente reinventar e radicalizar  o movimento social em Cabo Verde como única forma de abrir o espaço à palavra contestatória cidadã. Radicalizar aqui significa, no sentido cabralista do termo, voltar à fonte, ou seja , à uma cultura de massas  onde a crítica é vista  não como ataque a honras individuais e suscetibilidades alheias, mas um exercício da cidadania. Radicalizar, ainda, exige abordagens de pedagogização  e tradução da palavra política para as massas populares, de modo que esta deixe de ser a propriedade privada da elite partidária nacional.

Tudo isto pressupõe também o fortalecimento dos vínculos entre o arquipélago e a diáspora que, longe de repetir discursos demagógicos ou meramente económicos no que respeita às remessas, reconheça e valorize o imenso espaço de Djunta-mô já existente, de circulação de ideias e acção política.

A segunda Declaração de Lisboa da Marxa Cabral, “Di Povu Pa Povu: Libertação, Dignidade, Soberania Popular”, aponta essa urgência ao afirmar a articulação transnacional, a solidariedade entre os povos e a necessidade de desconexão, no sentido que lhe dá Samir Amin. A escolha dos termos Marxa e Declaração, em vez de manifestação, reflete um pensamento político situado, que compreende a organização panafricana como uma resposta crítica ainda possível, num contexto global em que os povos, sobretudo do Sul Global, continuam a ser alvo de ataques por parte de elites nacionais e transnacionais.

Importa sublinhar que os dados mais recentes do Afrobarómetro confirmam aquilo que atravessa todo este ensaio: um profundo mal-estar social. A maioria dos cabo-verdianos avalia negativamente o desempenho do governo em praticamente todas as áreas e manifesta uma crescente vontade de emigrar, sobretudo entre os mais jovens. Num contexto bipolarizado em que o descontentamento tende a ser capturado e instrumentalizado pelas dinâmicas partidárias, sobretudo em períodos eleitorais, é necessária uma politização da insatisfação, transformar a indignação geral, muitas vezes dispersa em consciência crítica e ação coletiva organizada.

Estabelecendo a diferença entre mobilização e organização, Kwame Toure dizia que as mobilizações são eventos espontâneos, passageiros, quase epidérmicos, enquanto  que as organizações são estruturas pensantes e permanentes que disputam o poder. Toure desafiava-nos, assim, a  converter mobilizações em organização: construir estruturas de poder popular capazes de se manter no tempo, para lá das lideranças individuais e dos ciclos momentâneos de indignação.Para Toure, se o poder é um objetivo político, este só pode ser alcançado através de massas politizadas e organizadas. Mobilizar é uma etapa necessária, mas, para transformar a realidade, é preciso ir mais além: organizar, organizar, organizar.

PUB

Adicionar um comentário

Faça o seu comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PUB

PUB

To Top