
Por: João Baptista-Vieira
Cabo Verde tem sido, ao longo das últimas décadas, frequentemente apresentado como um exemplo de estabilidade democrática no espaço africano e lusófono. A regularidade dos processos eleitorais, a alternância pacífica do poder e o respeito formal pelas instituições constituem pilares centrais da sua trajectória política.
Contudo, a consolidação democrática não é um estado definitivo, mas um processo contínuo, vulnerável a tensões e erosões progressivas. É neste contexto que a crescente polarização política e a degradação do discurso cívico exigem uma reflexão séria e inadiável.
A polarização política ultrapassa a simples existência de divergências ideológicas, algo inerente a qualquer democracia plural. O problema surge quando essas divergências se radicalizam, se cristalizam em posições irreconciliáveis e reduzem drasticamente os espaços de diálogo, compromisso e cooperação institucional.
Nestes contextos, o adversário político deixa de ser visto como interlocutor legítimo e passa a ser tratado como obstáculo a neutralizar, com impactos negativos profundos na qualidade da democracia, na confiança institucional e na coesão social.
Em Cabo Verde, estes efeitos tornaram se cada vez mais visíveis. A relação entre o PAICV e o MpD, forças centrais do sistema partidário, tem sido marcada por dificuldades persistentes de convergência em matérias de interesse estratégico nacional.
Esta dinâmica traduz-se, com frequência, no bloqueio da agenda parlamentar, no adiamento de debates relevantes e na não eleição atempada de órgãos externos e independentes, muitos dos quais operam com mandatos expirados. Trata se de um sintoma claro de um sistema excessivamente condicionado pela lógica do confronto permanente.
Estes impasses não são meramente procedimentais. Produzem efeitos institucionais cumulativos, enfraquecem o princípio da renovação democrática e alimentam a perceção de que os cálculos partidários se sobrepõem ao interesse nacional. O resultado é um sentimento crescente de desencanto e afastamento da política, particularmente entre os mais jovens.
A polarização excessiva afecta também o discurso público. O espaço cívico, idealmente reservado à argumentação racional e ao confronto de ideias, tem sido progressivamente ocupado por narrativas simplificadoras, ataques pessoais e estratégias de deslegitimação do outro. O diálogo empobrece, os consensos mínimos tornam-se difíceis e a governação eficaz fica comprometida.
Enquanto membros da diáspora cabo verdiana, com vivências em democracias consolidadas como Portugal e os Estados Unidos, observamos estes sinais com particular atenção. A experiência nesses contextos demonstra que processos de polarização profunda tendem a gerar bloqueios institucionais, instabilidade governativa e erosão da confiança democrática.
Em Portugal, a fragmentação partidária e o agravamento do discurso político têm dificultado reformas estruturais. Nos Estados Unidos, a polarização extrema traduziu-se em paralisações governativas, impasses orçamentais e fragilização da coesão social.
Esta leitura comparada permite encarar os sinais actuais em Cabo Verde como um alerta precoce. Sem mecanismos eficazes de diálogo e cooperação institucional, o país corre o risco de reproduzir trajectórias já observadas noutras democracias, com custos elevados para a eficácia do Estado e para a confiança dos cidadãos.
A literatura especializada é clara ao demonstrar que democracias altamente polarizadas perdem capacidade colectiva para enfrentar desafios estruturais. Questões como o desemprego jovem, as desigualdades regionais, a sustentabilidade económica e a coesão territorial exigem visão estratégica e compromissos duradouros, incompatíveis com uma lógica permanente de confronto.
Importa sublinhar que o desacordo político não é, em si, uma ameaça à democracia. Pelo contrário, a divergência é sinal de vitalidade democrática. O perigo surge quando o conflito deixa de ser regulado por normas e práticas que promovam o respeito mútuo e a cooperação institucional, transformando se numa lógica de soma zero.
Num país de pequena dimensão como Cabo Verde, marcado por fortes laços comunitários e por uma diáspora numerosa, os custos da fragmentação política são particularmente elevados. Enfraquecem as instituições, dilaceram o tecido social, desincentivam o investimento e fragilizam a relação entre o país e os seus cidadãos no exterior.
A polarização excessiva pode ainda transformar a diáspora, potencial ponte de consenso, num espaço adicional de reprodução de clivagens internas.
Em síntese, os efeitos deletérios da polarização em Cabo Verde não se limitam a disputas circunstanciais entre partidos. Traduzem se numa perda gradual de capacidade institucional, coesão social e visão estratégica. A superação deste quadro não exige a eliminação do conflito, mas a sua gestão ética e institucional, assente num diálogo exigente, respeitoso e orientado para soluções, condição indispensável para a sustentabilidade da democracia cabo verdiana.



