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Sociedade civil adormecida e “doutores clandestinos”. Desperta, Cabo Verde!

Por: João Serra*

Uma sociedade civil ativa e participativa é crucial para o fortalecimento da democracia, bem como para um desenvolvimento social e económico equitativo. A sua importância reside na capacidade de influenciar políticas públicas, promover a justiça social, garantir o respeito pelos direitos humanos e reforçar a estabilidade democrática. De facto, sem uma sociedade civil robusta e interventiva, o poder político governa com menos escrutínio e com menos contrapesos. As políticas públicas correm o risco de ser desenhadas e implementadas sem a devida auscultação e participação dos seus destinatários, afastandose das reais necessidades e aspirações da população.

Como tal, uma sociedade civil vibrante é um componente essencial de sociedades democráticas e de economias sustentáveis, inclusivas e bem governadas.

Em Cabo Verde, vivemos um paradoxo inquietante: um país que, na década de 1990, emergiu como exemplo de emancipação cívica e de participação democrática, vê agora a sua sociedade civil enfraquecida por um silêncio quase ensurdecedor. Nessa década, surgiram inúmeras organizações não-governamentais, associações culturais e fóruns de debate que fiscalizavam decisões governamentais, denunciavam irregularidades e mobilizavam cidadãos. Académicos e profissionais de diversas áreas uniram-se em redes informais para escrutinar as políticas públicas, cobrar transparência e defender direitos. Hoje, porém, essa energia coletiva foi substituída por uma letargia preocupante.

O mais confrangedor neste cenário é a aparente abdicação dos quadros mais qualificados do país – licenciados, mestres e doutores. Aqueles que, pela sua formação e capacidade analítica, deveriam estar na vanguarda do debate, da crítica construtiva e da proposição de soluções encontramse, em grande parte, ausentes. Recolhidos numa zona de conforto, transformaramse numa espécie de “doutores clandestinos”: existem, mas a sua voz não ecoa nas praças públicas, nos jornais nem nos fóruns de discussão que moldam o futuro do país. Em vez de se constituírem como contrapeso ao poder do Estado, muitos optam por um perfil “clandestino”, refugiando as suas ideias em ambientes restritos e longe do escrutínio público.

As razões para esta letargia cívica são complexas e multifacetadas, mas algumas sobressaem pela evidência e pelo impacto corrosivo. Em primeiro lugar, destacase a excessiva partidarização da administração pública e da vida social em geral. Instalouse uma cultura em que a afiliação ou simpatia partidária se sobrepõe, em larga medida, ao mérito, à competência e à liberdade de pensamento. Este fenómeno gera um ambiente de receio generalizado: o medo de perder o emprego, de ver goradas progressões na carreira ou de ser ostracizado profissional e socialmente, caso se ouse divergir da linha oficial ou criticar o poder instituído. A máquina estatal, em vez de ser um espaço de pluralismo e de serviço público isento, transformase, aos olhos de muitos, num campo minado onde a prudência excessiva se confunde com a simples sobrevivência.

Paralelamente, o espaço digital, que poderia funcionar como nova “ágora” democrática, converteuse num terreno hostil. No anonimato das redes sociais proliferam pseudoperfis e robôs ao serviço de milícias digitais – alguns dos seus integrantes são funcionários do Estado pagos a peso de ouro –, encarregados de difamar, caluniar e ameaçar quem se atreve a desafiar o status quo. A divulgação não autorizada de dados pessoais, o recurso a discursos de ódio e o assédio sistemático não só intoxicam o debate como visam silenciar, criando uma sensação de insegurança permanente. Um estudo recente da Universidade de Lisboa indicou que uma larga maioria de jornalistas caboverdianos (62 %) sofreu ameaças online nos últimos anos, mas a violência simbólica atinge também ativistas, académicos e funcionários públicos. A fragilidade do quadro legislativo contra crimes informáticos e a falta de estruturas de resposta rápida a estas ameaças agravam este ambiente de censura velada.

As consequências desta erosão da sociedade civil são profundas e diversificadas. Primeiro, a ausência de fiscalização crítica favorece desvios de recursos e práticas ineficientes, minando a confiança da população nas autoridades e corroendo a perceção de legitimidade do poder. Segundo, protestos ou manifestações pontuais carecem de estruturas de apoio organizadas, convertendose em episódios isolados que não conseguem influenciar efetivamente os decisores. Terceiro, a atomização do ativismo – disperso em iniciativas individuais sobretudo online – revelase incapaz de enfrentar problemas sistémicos como a corrupção ou a exclusão de grupos vulneráveis, perpetuando um ciclo de impotência cívica.

E quem parece estar mais cómodo com este quadro de passividade é o Governo, que, perante tal situação, não hesita em apoucar a inteligência dos cabo-verdianos ou deixar o INE “atamancar”, de forma descarada, dados estatísticos oficiais de maior relevância, como por exemplo, os relativos à pobreza, à inflação, ao PIB e à dívida pública. Julgo que sou o único economista a denunciar, de modo consistente, tal situação, escrevendo vários artigos de opinião que demonstram, com argumentos técnicos sólidos, por que não se pode confiar nesses dados.

Para reverter este quadro de apatia da sociedade civil, é imprescindível criar ambientes que incentivem a participação livre e informada. Em termos gerais, é necessário, em primeiro lugar, uma firme despartidarização da administração pública, de modo a que esta não seja percecionada como propriedade exclusiva de quem detém o poder. Simultaneamente, importa conferir estatutos de proteção aos funcionários, garantindolhes estabilidade e progressão na carreira e reduzindo, de forma significativa, o risco de discriminação, de assédio laboral ou de perseguição política. No domínio digital, urge reforçar o enquadramento jurídico dos crimes informáticos, criar protocolos de denúncia eficazes e dotar as forças de segurança de recursos especializados para responder em tempo útil a ameaças e campanhas de difamação.

É imperativo resgatar o espírito participativo e a coragem cívica em Cabo Verde. Os quadros do país, em particular, têm uma responsabilidade acrescida: a sua formação e o seu conhecimento não são um privilégio pessoal, mas um capital que deve servir a nação. Sair da zona de conforto e quebrar o ciclo do medo e da autocensura não é um ato de heroísmo, mas um dever cívico fundamental. É preciso reavivar associações, promover debates, escrever, falar e interpelar – de forma construtiva, mas firme.

A alternativa é a contínua erosão do espaço democrático, com uma cidadania cada vez mais apática e um poder cada vez menos fiscalizado. Cabo Verde merece mais. Merece uma sociedade civil vibrante, em que a inteligência coletiva, incluindo a dos seus “doutores”, não se esconda, mas floresça à luz do dia, contribuindo para um futuro mais justo, próspero e genuinamente democrático. O silêncio, neste contexto, não é de ouro; é o prenúncio de um défice que pode custar caro às futuras gerações.

Praia, 14 de junho de 2025

*Doutorado em Economia

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