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Opinião

Incúria em relação ao nosso património cultural

 

Por: Arsénio Fermino de Pina*

Por que volta e meia estou falando do nosso património cultural, do que nos deixaram os nossos pais e avós? Pelo culto da memória colectiva que oferece à humanidade um elo cúmplice; pela sofrida contemplação do crime da sua destruição, que é uma forma de revelação de que somos mais do que um macaco e algo menos do que um anjo, mas também por razões mais directas, práticas e didácticas, diria mesmo, como médico, propedeuticas. Frisei culto da memória por ela ser um capital político, porque os povos, tal como os indivíduos, necessitam de âncoras e raízes para não se perderem no caos do tempo.

Hoje, a minha indignação é contra a insensibilidade, mesmo crime, cometido contra o património arquitetónico cometido em S. Vicente, pelo actual presidente da Câmara Municipal (CM), Augusto César Neves, com quem tive bom relacionamento quando foi administrador do Hospital Baptista de Sousa, mandando destruir um dos mais antigos edifícios da cidade, o do velho consulado inglês, um marco da existência da cidade do Mindelo como burgo habitável propiciado pelos ingleses que criaram, na bela Baía do Porto Grande, depósitos de carvão para abastecimento de navios a caminho ou vindo da África, Ásia e América do Sul, estruturas para a sua gestão, incluindo oficinas para reparação de barcos e formação de pessoal nacional, de onde saiu um dos mestres mais talentosos da nossa terra, Teodoro Gomes (Mestre Cunco), que criou posteriormente uma escola de formação de artes e ofícios, na Pontinha, o embrião da futura Escola Técnica do Mindelo. Não satisfeito com isso, também se destruiu a Praça Dra Maria Francisca de Sousa (cujo terreno se presume ter sido vendido pela CM no tempo do autarca Doutor Onésimo Silveira), na proximidade do velho consulado inglês, que era uma homenagem a uma das médicas nacionais mais carismáticas da sua época e criadoura do Dispensário do Mindelo, onde vim, depois da independência, a ensaiar os primeiros passos para a criação da PMI/PF. Será que esta geração moderna nem lê os nossos jornais? Teria Augusto Neves lido o excelente artigo de Letícia Neves, no jornal A Nação, sobre a Dra Maria Francisca de Sousa?

O meu protesto é expresso num tom que não é de cólera, mas de indignação. Como é possível tamanha barbaridade, infelizmente com antecedentes no tempo da presidente Dra Isaura, quando se destruiu o Fortim d’ El Rei, o belo edifício de residência mandado construir pelo primeiro delegado de saúde em S. Vicente, Dr. Salis, no século XIX, posteriormente, residência da família Duarte Silva e ultimamente consultório do Dr. José Duarte Fonseca, e se permitiu a venda do cinema Eden Park para outros fins, quando a CM ou o Governo deveriam tê-lo comprado, até porque os herdeiros do proprietário (César Marques) davam preferência e facilidades à CM e Governo se estivessem interessados na sua aquisição; estou convencido de que até a população sanvicentina iria contribuir para a compra, se fosse solicitada, por o Eden Park ter tido um papel impar na formação e informação da população, funcionando como uma autêntica universidade popular. Uma desculpa para essas barbaridades é esses edifícios não terem sido oficialmente declarados patrimónios nacionais, o que me parece desculpa esfarrapada, dado que a população sempre os considerou como tal. Não creio que seja por ignorância desses autarcas, dado que tanto o Dr. Neves como a Dra Isaura Gomes e o Doutor Onésimo Silveira possuem informação e estudos superiores (dizia o nosso mestre Dr. Baltazar que quem não sabe pergunta ou estuda). Deixando de ser caridoso com eles por terem merecido a minha estima e caridade e não alimentar nenhuma animosidade pessoal contra eles, inclino-me para a estupidez como causa dessas barbaridades, porque a estupidez, baseada na desconfiança, em equívocos e no egocentrismo de quem atribui excessiva importância à sua pessoa a ponto de não atender às opiniões de outrem, mesmo com informação e estudos, é incurável por se inscrever no património genético de certas pessoas, ou então, por outros desígnios menos curiais, como alguns presumem, que me repugna admitir.

Bem, toda essa trapalhada poderá ser um sinal dos tempos em que vivemos. As pessoas vivem polarizadas, agarradas aos seus interesses e fracas convicções, sem grande capacidade para ouvir os outros, ponderar argumentos, equilibrar posições. Sem essa disponibilidade, perdem-se os consensos com que se constroem as comunidades saudáveis, em que deve imperar a capacidade de concertação, para lá de podermos ter opiniões e posições diferentes sobre os mais diversos assuntos. Entre nós – aqui refiro-me aos mindelenses – a população mal se manifestou, o que é intrigante, porque outrora era mais reivindicativa e irreverente, mormente a elite intelectual e comercial. Talvez essa apatia da população seja consequência do desânimo que se apossou das pessoas, dado o número de desempregados, carência de oportunidades e pobreza de grande parte da população, em consequência da polaridade financeira e de oportunidades concentradas, centralizadas na Praia, como se o poder central tivesse posto de quarentena o desenvolvimento de S. Vicente. A nossa sociedade civil e as suas organizações continuam débeis e hesitantes por várias razões que já descrevi noutros textos, razão por que raramente as vemos manifestar-se com a acutilância e acções necessárias e suficientes.

Na Europa comemora-se o Ano Europeu do Património Cultural, e vem a propósito relembrar algo da Convenção de Faro: “O património cultural constitui um conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam, independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução incluindo todos os aspectos do meio ambiente resultantes da interacção entre as pessoas e os lugares através do tempo”. Implica preservação de património cultural e a sua utilização sustentável.

O património cultural tem múltiplas componentes: monumentos, museus, edifícios históricos, arquivos, referências artísticas e arqueológicas – o património material -, tradições, costumes, línguas e dialetos, artesanato, música e danças, relações interculturais – património imaterial -, mas ainda o património natural, o meio ambiente, entre outros.

A valorização do património cultural abre, como diz o ex-ministro e ex-presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d´Oliveira Martins, num dos números do Jornal de Letras, Artes e ideias veredas atentas à dignidade humana. O património cultural liga-nos às gerações que nos antecederam e torna-nos responsáveis pelo valor que formos capazes de criar, melhorando o que legarmos a quem nos suceder.

Parede, Novembro de 2018                                                                                                                                                      

*Pediatra e sócio-honorário da Adeco

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